100, 80, 30: as efemérides do futebol de mulheres em 2021
Atualizado: 13 de abr. de 2022
O leitor e a leitora que não estão muito familiarizados com a trajetória do futebol de mulheres no Brasil – e no mundo – certamente olharam com estranheza para o título deste artigo. Quais são, afinal, as comemorações mencionadas? Ao fim e ao cabo, nenhuma delas deve ser efetivamente comemorada. As datas se referem às proibições e cerceamentos aos quais foi submetido o futebol de mulheres ao longo do século XX – na Inglaterra, em 1921, e no Brasil, em 1941 – e à demora da regulamentação do esporte pela sua entidade suprema, a FIFA, que só organizou a primeira Copa do Mundo Feminina em 1991. Tais datas formam a trilogia de acontecimentos que deixaram legados importantes para o desenvolvimento e a prática da modalidade.
Esta coluna, intitulada História para além das quatro linhas, tentará trazer ao leitor e à leitora as interlocuções entre o futebol e a sociedade, considerando seus mais diversos cortes – de classe, gênero, orientação sexual, raça/etnia – e percebendo o esporte não só como parte da sociedade, mas como ambiente que permite entender as mais variadas manifestações sociais, culturais e políticas. Nesse sentido, esse texto buscará trazer reflexões sobre a prática do futebol de mulheres – incluindo suas proibições e limitações – através de apontamentos sobre as efemérides que intitulam este artigo e entender essas datas em um contexto mais amplo, que envolve o cerceamento ao corpo feminino e ao espaço que é considerado como pertencente à mulher, bem como a lógica machista que assume o futebol como um espaço masculino.
1921 – Campo de jogo em pé de guerra
A prática de esportes ganhou cada vez mais adeptos ao longo do século XX – incentivada, inclusive, por autoridades e médicos, como uma forma de manter o corpo saudável e forte para a construção de uma nação consistente. Aliás, desde o século XIX, as diversas práticas esportivas vinham sendo, pouco a pouco, incorporadas no currículo das escolas. Conforme o futebol foi ganhando cada vez mais adeptos em diferentes regiões do mundo, sua inserção foi se ampliando na vida social e esportiva dos países. Na Inglaterra, segundo Jean Williams (2013), o futebol passou a integrar o currículo das escolas de trabalhadores já no século XIX e, no início do século seguinte, as escolas de mulheres também começaram a ter o esporte em sua agenda.
Embora seja possível mencionar a crescente importância do futebol como um esporte praticado pela sociedade britânica, não é fácil encontrar as origens oficiais das partidas femininas, sobretudo porque os registros foram perdidos com o tempo. Ainda assim, segundo Williams (2014), o primeiro match feminino foi provavelmente uma partida não oficial disputada com algumas regras da federação inglesa entre dois times que se autonomeavam Inglaterra e Escócia, em 1881. A partir daí, o futebol praticado por mulheres começou a se expandir para diversas partes do globo – inclusive para o Brasil, como será mencionado adiante. Novamente de acordo com Williams:
"O futebol de mulheres também se desenvolveu na Alemanha e Áustria depois da Primeira Guerra Mundial e existem algumas evidências de jogos na Rússia. Os Estados Unidos e o Canadá possuíam programas de futebol para mulheres nas escolas desde pelo menos o início dos anos 1920 e há evidências de algumas jogadoras estudantes em Hong Kong. (Williams, 2014, p. 69. Tradução minha)."
Feito esse panorama, nos interessa centrar os olhares sobre o futebol de mulheres praticado na Inglaterra, principalmente aquele jogado durante o período da Primeira Guerra Mundial, e seu posterior banimento. As partidas se desenrolavam, principalmente, entre times de fábricas. Com a saída de grande parte da população masculina para a guerra, as mulheres inglesas – e as europeias, de maneira geral – acabaram ocupando os espaços deixados pelos homens, tanto nos postos de trabalho, quanto nas práticas sociais. De acordo com Williams (2013), foi criado um termo para se referir a essas mulheres que jogavam partidas com grande representação de público entre 1917 e 1921, na maioria das vezes visando a caridade: as Munitionettes. Esses times fabris aumentaram suas atividades sobretudo depois que a necessidade por munição e, dessa forma, o trabalho na fábrica começou a diminuir. Uma equipe feminina que ficou bastante conhecida e que seguiu disputando partidas mesmo depois do banimento, ainda que por pouco tempo, foi o Dick, Kerr’s Ladies.
O pano de fundo voltado para a caridade que envolvia as partidas na Inglaterra não era uma particularidade daquele país. Esse tipo de jogo também era comum entre os times femininos no Brasil, e funcionava inclusive como uma maneira de encontrar espaço no esporte, uma vez que a caridade e a benevolência estavam associadas ao papel maternal e feminino.
Contudo, ao longo do século XX, os discursos médicos começaram a se preocupar particularmente com a preservação do corpo feminino. Portanto, ao mesmo tempo que incentivavam algumas práticas esportivas como sadias, outras começaram a ser preteridas, vistas como prejudiciais ao corpo feminino e ao desenvolvimento de uma maternidade saudável. Além disso, com o fim da guerra e o retorno dos homens do front de batalha, os papéis considerados como masculinos começaram a ser novamente ocupados por eles, seja nas fábricas, ou em espaços de interação social, como os jogos de futebol. Nesse sentido, a participação feminina no mundo dos esportes começou a ser cada vez mais delimitada.
Diante disso, a Federação Inglesa de Futebol, FA, publicou, em 1921, um documento redigido pelo seu Conselho, a partir do qual questionava o uso do dinheiro adquirido nos jogos de caridade, argumentando que as quantias estavam sendo usadas para outros fins, e que o esporte não era considerado compatível com as mulheres. Dessa forma, a determinação aconselhava que os clubes não possuíssem times de futebol de mulheres nem permitissem partidas oficiais em seus campos. A partir daí, a prática do futebol de mulheres foi banida de maneira oficial na Inglaterra por algumas décadas.
941- Cerceamento em verde e amarelo: a proibição do futebol de mulheres no Brasil
No período em que o futebol de mulheres foi banido pela Federação Inglesa, no Brasil, o esporte caminhava por outros campos. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, os circos se tornaram locais onde diversas apresentações de futebol de mulheres eram realizadas. Tais apresentações circulavam por todo o país e levavam os jogos femininos aos mais diversos cantos. Segundo Aira Bonfim:
"De acordo com as fontes pesquisadas, dos primeiros fenômenos presenciados no teatro de revista do Rio de Janeiro, em 1921, até o ano de 1930, foi possível comprovar a presença do futebol feminino nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A partir da década de 1930, a geografia desses deslocamentos ganhará a amplitude das regiões Norte e Nordeste. (...) Além do estado do Paraná. (Bonfim, 2019, p. 104-105)"
No início dos anos 1940, o futebol de mulheres no Brasil começou a ganhar cada vez mais destaque, sendo noticiado por jornais de grande circulação, sobretudo no eixo Rio-São Paulo. O Jornal dos Sports, por exemplo, trouxe em diversas edições informações sobre partidas de futebol de mulheres acontecendo sobretudo no subúrbio do Rio de Janeiro. Em um de seus números, o periódico apresentou informações sobre a partida entre o S.C Brasileiro e o Casino de Realengo, realizado no campo do Casino e que contava com o intermédio do jornal para a convocação de suas jogadoras.
Com o aumento da prática do futebol por mulheres no país, sobretudo em regiões mais centrais, como Rio de Janeiro e São Paulo, discursos médicos que entendiam a prática do esporte como prejudicial ao corpo feminino começaram a ganhar cada vez mais voz. Esses discursos, que se apresentavam na imprensa, em revistas médicas especializadas e em manuais de educação física, contribuíram para espalhar a noção de que a prática do futebol e a função social da mulher – a maternidade – eram incompatíveis.
Os argumentos que buscavam associar a mulher à maternidade e, por conseguinte, acabavam limitando e cerceando os espaços os quais o corpo feminino podia ocupar, não são novidade do século XX. Contudo, com o incentivo dado ao exercício físico, sobretudo após o início do Governo Vargas, e o interesse das mulheres por esportes como o futebol, os discursos de cerceamento ao corpo feminino e a associação da mulher ao papel fundamental da maternidade para a criação de cidadãos fortes para o país ganhou cada vez mais preponderância.
Tudo isso levou à publicação, em abril de 1941, do Decreto-Lei 3.199, que criava o Conselho Nacional de Desportos (CND) e que, em seu artigo 54, determinava que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Dentre os esportes incompatíveis com as condições da natureza feminina, figurava, é claro, o futebol.
Além disso, existia o medo de que a prática de esportes considerados “violentos” ou de contato, com o futebol e o boxe – também proibido pelo decreto – acabassem modificando o corpo feminino, tornando-o mais musculoso e masculino. Isso tornaria menos demarcadas as barreiras de gênero, assentadas em estereótipos associados ao feminino – delicadeza e graça – e ao masculino – força e músculos.
1991 – Enfim, o reconhecimento
Por longos anos, o futebol de mulheres seguiu acontecendo no Brasil e no mundo, seja encontrando meandros e subterfúgios no meio das proibições e banimentos, seja buscando possibilidades de realizar competições e campeonatos oficiais. Mesmo depois que as proibições deixaram de existir, a oficialização e regulamentação por parte das entidades gestoras ainda demorou para acontecer.
No Brasil, embora o decreto proibitivo tenha sido revogado em 1979, a CBF só regulamentou a modalidade em 1983, fazendo com que o esporte permanecesse por quatro anos em um limbo entre a liberação e a não regulamentação. Na Europa, algumas federações começaram a permitir e incentivar jogos de mulheres já na década de 1960 e 1970, começando uma pressão sobre a FIFA para o reconhecimento da modalidade.
Em 1970 e 1971, foram realizadas Copas do Mundo femininas financiadas por iniciativas particulares e sem a chancela da FIFA, nas quais o Brasil não pôde participar, pois aqui a modalidade ainda era proibida. Mesmo assim, ambos os eventos foram bem noticiados em periódicos brasileiros. Na década de 1980, a pressão de algumas federações, como a alemã, aumentou. Tal pressão levou a FIFA, logo em janeiro de 1981, no editorial da edição nº 212 do jornal FIFANews, assinado pelo então presidente João Havelange, a enfatizar o desejo da entidade de colocar sob seus cuidados as modalidades que estavam se desenrolando fora de sua alçada, citando, nominalmente, o futebol feminino.
Por medo de que a gerência do futebol de mulheres acabasse ficando sobre o domínio de empresas e iniciativas particulares – que já vinham organizando e financiando campeonatos – e levando em consideração toda a pressão sofrida pelas federações e pela sociedade em favor da inclusão da mulher em diversos âmbitos, a FIFA assumiu, por fim, a gestão da modalidade. Assim, a primeira Copa do Mundo Feminina FIFA foi realizada em 1991 e vencida pela seleção dos Estados Unidos.
Algumas considerações finais
Como visto, os cerceamentos, banimentos e proibições, além da demora no reconhecimento e regulamentação por entidades gestoras do futebol, legaram ao futebol de mulheres uma trajetória de muita luta e enfrentamentos. Ainda hoje, a modalidade está longe de receber a mesma visibilidade e o mesmo patrocínio do futebol masculino; ademais, as jogadoras e outras mulheres envolvidas na prática e na gestão do esporte ainda precisam lidar com uma série de preconceitos, barreiras e estereótipos.
O cerceamento sobre o corpo feminino e as limitações sobre os espaços que esse corpo podia frequentar – bem como a associação da mulher à maternidade – contribuíram sobremaneira para o silenciamento e a invisibilização desse esporte, que ainda hoje precisa ganhar, partida a partida, espaço e reconhecimento.
Women’s football also developed in Germany and Austria after the First World War and there is some evidence of a game in Russia. The United States and Canada had college-based soccer programmes for women since the early 1920s, at least, and there is some evidence of female college players in Hong Kong.
The Football Association 1921:3 apud Williams, 2014, p. 66.
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 03 de mar. de 1940, p.6.
BRASIL. Decreto-Lei 3.199 de 14 de abril de 1941.
FIFANews, nº 212, janeiro de 1981, p.5
Referências.
BONFIM, Aira. Football feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução a proibição (1951-1941). Dissertação (Mestrado em História Política e bens culturais), Centro de Pesquisa e documentação de história contemporânea do Brasil, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2018.
EISENBER, Christina et al. Fifa (1904-2004): 100 years of football. Londres: Weidenfeld & Nicolson. The Orion Publishing Group, 2004.
GOELLNER, Silvana. Mulheres e futebol no Brasil: entra sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física. São Paulo, v.19, n.2, p.143-51, abr./jun. 2005
WILLIAMS, Jean. A Beautiful game. International perspectives on Women’s football. Berg, editorial officers. Oxford, 2007
WILLIAMS, Jean. Globalising Women’s football. Europe, Migration and Professionalization. Peter Lang AG, International Academic Publishers, Bern, 2013.
WILLIAMS, Jean. The gendered governance of Association Football. In: HARGREAVES, Jennifer; ANDERSON, Eric (Orgs). Routhledge handbook of sport, gender and sexuality. Routhledge, New York, 2014.
Crédito da imagem destacada: Photo by Jeffrey F Lin on Unsplash
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