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Foto do escritorDavid Netto

1972, 2022 e a Independência do Brasil: o “país do futuro” repete o passado?

Atualizado: 3 de ago. de 2022

O dia 7 de setembro de 2022 marca os 200 anos da Independência do Brasil. Em contextos democráticos, as comemorações seriam, digamos, dialéticas. De um lado, poderíamos avançar na desconstrução da História oficial, ou seja, apontar que a Independência não apresentou um novo projeto político de nação, mas, em grande medida, foi a continuação do projeto colonizador. De outro, seria necessário discutir a paulatina integração das populações historicamente marginalizadas, salientando suas diversas formas de contribuição para a formação do Brasil.


No atual contexto autoritário, as disputas pela memória e pela mobilização política estão acirradas. Grupos políticos de direita e extrema direita estimulam seus simpatizantes e militantes em defesa da manutenção oficial da História do Brasil e de seus mitos, como a democracia racial. Nesse sentido é que revisitamos as comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil, realizadas em 1972.


O ano de 1972 – e toda a década de 1970 – só pode ser compreendido na sua complexidade quando conseguimos analisar a passagem do tempo nas suas diversas formas. Desta maneira, a análise do tempo deve ir além da cronologia, ou seja, pessoas e grupos experimentam a passagem do tempo de maneiras diferentes e, portanto, sua memória não será igual, especialmente, quando perdem a dimensão social do período e se concentram apenas na experiência individual ou, no máximo, local. Um exemplo desse movimento é a ideia do senso comum de que, durante a ditadura, só houve repressão e violência nos grandes centros urbanos.


Dito isso, é possível dividir este tempo em dois. O primeiro é o tempo da morte. Da maturidade do aparato repressivo, da Operação Bandeirantes e que deixou de herança um sem número de cemitérios clandestinos, cuja vala clandestina de Perus é o exemplo mais bem acabado. Contudo, a ditadura não inaugura a repressão e a violência. Ambas, infelizmente, são marcas de origem e estruturação do Estado brasileiro. Em suma, este Estado se especializou em governar os mortos e fazer desaparecer pessoas das maneiras mais perversas possíveis, seja no extermínio de populações autóctones, na escravidão e na manutenção das diversas formas de racismo até fazê-las desaparecer nas franjas da burocracia dos IML (Instituto Médico Legal) e dos arquivos policiais. O segundo tempo, por mais estranho que possa parecer, foi um tempo de comemoração que começou com a vitória da Seleção no Mundial do México, em 1970. O jingle virou febre nacional: com “todos ligados na mesma emoção”, Pelé comandou a vitória da Seleção Canarinho ao mesmo tempo em que se consagrava como o maior futebolista da História. Toda essa euforia pôde ser condensada na imagem icônica do abraço entre Pelé e Jairzinho.


Pelé abraça Jairzinho após o título da Copa de 1970. Divulgação/FIFA.

O que a ditadura procurou fazer foi reforçar a linearidade da história do Brasil, tal qual a ditadura Vargas havia pretendido em 1940 com a criação do Museu Imperial. O regime inaugurado com o golpe de 1964 realçou o caráter único, inevitável, quase natural, da trajetória nacional com características escolhidas e reforçadas por um tipo de leitura histórica: o apaziguamento, a não violência e as saídas negociadas que singularizavam a nação brasileira frente a outras do mundo. Aqui não haveria uma guerra a ser lembrada, uma revolução a ser comemorada e, muito menos, a lâmina que havia cortado a cabeça de algum rei ou rainha exposta em algum museu. Em suma, comemorava-se o que sempre existiu, para que tudo continuasse como estava.


A marca da construção de uma trajetória linear foi reforçada com um acordo entre Brasil e Portugal que permitiu o envio dos restos mortais de dom Pedro I que, atualmente, estão depositados numa cripta imperial no Museu do Ipiranga. Mas o que deveria ser uma grande celebração ficou marcado pela anedota, daquelas que só o Brasil pode produzir. Segundo O Estado de São Paulo (02/09/1972):

O conjunto formado por um caixão de chumbo com as armas de Portugal colocado dentro de outro caixão esse de madeira, era oito centímetros maior do que o sarcófago que deveria contê-lo, e como as autoridades portuguesas não autorizaram sua redução foi preciso desmontar o sarcófago da cripta e aumentá-lo.

Na abertura para a visitação pública, em 1976, o jornal deu a manchete: “O retorno do imperador”. A República – proclamada por um monarquista – festejava o retorno do “imperador” para marcar a comemoração de uma ditadura.

A publicidade também fazia sua parte. Especialmente após a promulgação da lei 4.680/1965, que regulamentou a profissão de publicitário e garantiu a comissão de 20% sobre o valor das contas. Contudo, a aproximação já vinha de antes. Como Denise Assis e René Dreifuss demonstraram, um amplo esquema de propaganda para desestabilizar o governo João Goulart foi construído com financiamento privado de diversas empresas por meio da rede IPÊS – IBAD, produzindo vídeos que foram exibidos nos cinemas das grandes cidades e em cinemas itinerantes.

O campo publicitário ocupou o vácuo da comunicação da ditadura pelo menos até 1968, com a criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), primeiro com anúncios esparsos de agências ou anunciantes e, depois, de maneira organizada a partir da criação do Conselho Nacional de Propaganda. O objetivo era divulgar “campanhas cívicas” que procuravam ora explicar o que estava acontecendo, ora demonstrar confiança no projeto da ditadura.

Não se trata aqui de fazer uma exposição exaustiva das campanhas publicitárias, mas apenas demonstrar que o rol de material histórico que agências e profissionais da propaganda dispunham ajudou a consolidar uma “memória festiva” sobre a ditadura. Memória que, durante algum tempo, ficou submersa e retornou em 2013, no contexto das manifestações de junho e da orientação à direita que as ruas ganharam no desenrolar dos protestos.

O período foi tão intenso que, em algumas memórias, se sobrepõe à própria cronologia da ditadura. Desta forma, consolidou-se uma memória, segundo a qual a ditadura havia terminado em 1979, com a promulgação da Lei de Anistia. O corte temporal não é de todo estranho: até o final da década de 1970, a promessa do país do futuro parecia consistente e a projeção parecia sair do papel. As obras (estradas, hidrelétricas, pontes etc.), o destaque esportivo e a riqueza da cultura nacional (ou pelo menos de um tipo específico de cultura nacional) pareciam encher de esperança o futuro de parte da população. A certeza era tanta que campanhas como as da agência gaúcha MPM para o “Grupo de Petróleo Ipiranga” se adiantaram no diagnóstico.

Na sequência, vieram uma profunda crise econômica, que abriu os anos 1980 com uma taxa de inflação de 300% ao ano; uma crise política que aparentemente colocaria fim ao projeto de abertura; o fracasso da emenda Dante de Oliveira, que previa a realização de eleições diretas em 1985; e a trajetória entre a eleição indireta e a morte de Tancredo Neves, depositário das esperanças de um novo recomeço, pareciam abrir caminho para a melancolia e a desesperança com o futuro do Brasil.


Nesse ponto, não é exagero dizer que a memória social fez um trabalho de seleção que parece ter encerrado o período da ditadura num espaço de tempo mais curto do que a cronologia histórica apontava. Todo aquele clima de otimismo foi manipulado de muitas maneiras. O aparente sucesso econômico parecia ser a confirmação de que a administração técnica, misturada com a disciplina e a hierarquia das Forças Armadas estavam gerando resultados positivos num curto espaço de tempo.


Em 1975, por ocasião da comemoração dos onze anos de golpe, a Agência Nacional produziu um filme propaganda que se propunha a fazer um balanço do período. Intitulado “Brasil: ontem, hoje, amanhã”, o documentário abre com a voz grave do locutor falando sobre a geografia do país, procurando demonstrar as inquietações vividas pela “influência” das ditaduras comunistas durante o governo João Goulart (1961-1964).


Numa outra perspectiva, as peças de propaganda da AERP e de sua sucessora ARP caiam no gosto do público. Uma propaganda aparentemente despolitizada tratava de temas cotidianos e banais, tais como tomar banho e escovar os dentes, criando personagens que caíram no gosto do público: Sujismundo e seu filho, Sujismundinho. As campanhas procuravam realçar a necessidade de união entre os brasileiros, convicção no trabalho e, sobretudo, fé no futuro.


Talvez cause estranheza pensar em como tais sentimentos puderam e podem ser utilizados como veículo de propaganda e/ou de mobilização política. Contudo, é preciso recuperar o momento histórico. Não se trata de banalizar questões complexas como a violência e o desrespeito aos Direitos Humanos (a campanha da OBAN deixava isso bem claro), mas de tentar compreender não apenas a longuíssima duração da ditadura brasileira, mas, também os tipos diferentes de memória que se formaram.



Propaganda OBAN. Wikimedia Commons.

O exercício do poder não pode ser feito exclusivamente com base na violência física, como Hannah Arendt e Norbert Elias já demonstraram. É necessário contar com alguma base de legitimidade e consentimento de setores sociais que convergem, por caminhos diferentes, para a base da ditadura. Tais afirmações estão longe de sugerir que toda a sociedade apoiou a ditadura, tanto não é assim que a extensão do aparato repressivo e as constantes mudanças na legislação eleitoral – como a criação do senador biônico – são exemplos que demonstram a tensão não resolvida numa ditadura que pretendia construir uma aparência democrática. O que proponho aqui é demonstrar que é preciso fugir dos extremos na análise. Em suma, nem toda sociedade apoiou, assim como nem toda a sociedade foi contra. Devemos nos perguntar sobre os mecanismos que esta sociedade desenvolveu que permitiram não apenas a longevidade da ditadura como também o seu desfecho melancólico, sustentado numa Lei de Anistia limitada e, ainda, sob a tutela dos militares.


É no rastro do autoritarismo que o Brasil mergulhou após o golpe de 2016, que procuramos levantar a maneira a partir da qual o revisionismo ideológico faz uso da História do Brasil e, de maneira anacrônica, propositalmente a faz confundir com os tipos diferentes de memória com o objetivo de produzir um “novo sentido histórico”. Este, travestido do nacionalismo estúpido do “Deus acima de tudo e Brasil acima de todos”, camufla o projeto neoliberal que visa destruir o Estado com privatizações realizadas em condições esdrúxulas e potencializar a superexploração do trabalho com a continuidade da retirada criminosa de todas as leis trabalhistas.


Esse projeto também tem objetivos culturais. Ou seja, naturalizar processos de exploração que estavam colocados em questão pela série de movimentos sociais que ganham o espaço público desde o final dos anos 1970 e se fizeram presentes nos debates que geraram a Constituição de 1988. Assim, não deve causar estranheza a bizarra solicitação do governo brasileiro junto ao governo português para o empréstimo do coração de Pedro I para ser exibido como parte das comemorações dos 200 anos de Independência.


Por fim, nunca é demais reafirmar que a disputa política pelo “futuro do Brasil” ainda está longe de ser resolvida. Parte considerável desta disputa irá dialogar com o passado, embora não seja necessariamente o passado que a academia informa.


Assim, historiadores foram jogados no campo de batalha e precisam dialogar com a pressão de parte considerável da sociedade que, a despeito do considerável investimento em pesquisas, publicações, livros, filmes etc. – que apontam as mazelas sociais do nosso passado histórico – não consegue se olhar no espelho, encarar este o passado e seus problemas não resolvidos. Esse grupo viu no bolsonarismo uma oportunidade de garantir a continuidade não apenas da história oficial e suas deturpações, mas, também, a continuidade de um modo de existência e de agir.


Portanto, a comemoração dos 200 anos da Independência provavelmente ocorrerá com estes objetivos. Não deixarão de ser exploradas a presença do “coração do imperador” e toda a simbologia que isso pode carregar. Possivelmente, dom Pedro I será louvado como um líder de massas que não foi. A coincidência com o período eleitoral também não deixará de ser um elemento de tentativa de sobreposição do passado inventado sobre o presente.


Como citar este artigo:

CASTRO NETTO, David A.1972, 2022: O “país do futuro” repete o passado? História da Ditadura, 18 jul. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/1972-2022eaindependenciadobrasilopaisdofuturorepeteopassado. Acesso em: [inserir data].


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