50 anos de "Milagre dos Peixes": Milton Nascimento e a censura
Efemérides são momentos estimulantes para revisitarmos acontecimentos, obras e personagens. A passagem do tempo nos confere um olhar aguçado que, não raro, evidencia a grandeza, o pioneirismo e a ousadia daquilo que foi produzido no passado. Ou, ao contrário, pode revelar que aquilo já considerado relevante em outros tempos pode ter envelhecido mal, não reunindo os atributos necessários para ser alçado ao panteão dos clássicos. Certamente, estes últimos aspectos não se aplicam ao disco Milagre dos Peixes, lançado por Milton Nascimento em 1973, no auge da ditadura militar. Passadas cinco décadas desde o seu lançamento, faço o convite para revisitarmos essa obra, avaliando não apenas seu potencial artístico, mas o que ela representou em um contexto histórico marcado pela censura e pela perseguição àqueles que desafiaram o regime.
A censura às artes durante a ditadura
Durante a ditadura militar, as manifestações artísticas consideradas subversivas foram alvo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), cujos censores avaliavam aquilo que poderia ou não ser publicado. É verdade que a censura não foi propriamente uma invenção dos militares, pois já vinha sendo praticada desde antes. No caso do regime implantado em 1964, tratava-se muito mais de uma adequação e não de uma criação (FICO, 2020).
Diversos artistas tiveram seus trabalhos censurados no todo ou em parte; houve também aqueles que precisaram deixar o país em função da sistemática perseguição empreendida pelos órgãos de repressão – a exemplo do que ocorreu com Caetano Veloso e Gilberto Gil, que partiram para o exílio em Londres, no final dos anos 1960, por determinação dos militares (VELOSO, 2017). Aqueles que ficaram, como foi o caso de Milton Nascimento, amargaram a realidade de um país que sufocava cada vez mais os contrários à ordem vigente, tornando o seu ofício uma atividade que oferecia riscos não apenas às suas produções artísticas propriamente, mas também à sua própria integridade física.
Depois do sucesso do álbum duplo Clube da Esquina, lançado em 1972 em parceria com Lô Borges – e eleito recentemente o maior álbum brasileiro de todos os tempos (ALEXANDRE et al., 2022) –, Milton começou a elaborar seu próximo disco, o Milagre dos Peixes, cujo título evidencia traços de oposição ao “milagre econômico” da ditadura. Naquele momento, a ditadura buscava embevecer a sociedade através de sua propaganda ufanista: “Brasil, ame-o ou deixe-o!” e “Ninguém segura esse país!”. O regime vendia, por meio da televisão – que havia pouco tinha passado a transmitir em cores –, a imagem de um país grande, que estava a pleno vapor sob o comando dos militares (MARTINS, 2009). O engodo, no entanto, era denunciado, implicitamente, pelos versos de Fernando Brant, na faixa-título do disco:
Telas falam colorido De crianças coloridas De um gênio televisor E no andor de nossos novos santos O sinal de velhos tempos Morte, morte, morte ao amor Eles não falam do mar e dos peixes Nem deixam ver a moça, pura canção Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o Sol E eu apenas sou um a mais, um a mais A falar dessa dor, a nossa dor
Na avaliação do historiador Bruno Viveiro Martins,
A modernização promovida pelos militares deveria ser silenciosa e sem questionamentos. Entregues ao autoritarismo, os cidadãos estariam vivendo em uma realidade exterior a eles próprios, realidade mitológica na qual os homens perdem o controle do uso de suas vidas. Em lugar do suposto ‘milagre econômico’ brasileiro, o Clube da Esquina, em 1973, propunha seu ‘Milagre dos Peixes’, signo de fecundidade, prosperidade e da renovação da vida; sempre associado à regeneração humana e ao nascimento de um tempo. (Ibidem, p. 167)
A música, contrariando as expectativas, acabou sendo liberada. O carimbo da censura, datado de 22 de outubro de 1971, liberava “Milagre dos Peixes” para gravação, seguido da assinatura de “Odette”. Ao que tudo indica, trata-se de Odette Martins Lanziotti, técnica de censura durante quase toda a década de 1970 e que analisou músicas de artistas como o próprio Milton Nascimento e Gilberto Gil. Este e outros documentos estão disponíveis no fundo da DCDP, no Arquivo Nacional.
O mesmo, contudo, não ocorreria com outras letras escritas para fazerem parte de Milagre dos Peixes. Das onze faixas do disco, cinco foram pensadas para serem apenas instrumentais, mas esse número acabou sendo elevado a oito, uma vez que três letras foram vetadas praticamente em sua integridade, “Os escravos de Jó” e “Hoje é dia de El-Rey” sofreram cortes; já “Cadê” foi vetada na íntegra. As que não sofreram cortes foram “Sacramento” e “Pablo”, além da já citada “Milagre dos Peixes”.
Ou seja, por força da censura, a concretização desse disco teria sido seriamente comprometida, não fosse a inventividade de Milton Nascimento, que combinada à raiva e à teimosia do artista, levou a um disco com experimentalismos sem precedentes em sua carreira, quiçá na música nacional. Entre se resignar e enfrentar a ditadura, Milton escolheu a segunda opção: “Vou gravar de qualquer jeito. Vou botar no som tudo o que eles tiraram na letra. Eles vão ver comigo…” (citado por BORGES, 2019, p. 306).
Milton e a censura
As letras censuradas pelo regime seriam substituídas por vocalizes, falsetes, gritos, sussurros e outros efeitos sonoros. Contornando a censura, Milton se utilizou desses artifícios para expressar aquilo que a ditadura o proibira de cantar. Com a virtuose que lhe é peculiar, usou entonações que buscaram traduzir aquilo que estava contido nas letras que a ditadura ocultou à força. Em termos rítmicos, criou uma miscelânea do regional ao afro, passando pelo latino-americano, pelo jazz, elevando Milagre dos Peixes a patamares da música brasileira que faziam de Milton Nascimento um dos principais artistas da geração que despontou em plena ditadura.
Entre as músicas censuradas e que acabaram entrando no disco apenas com melodia, está “Hoje é dia de El-Rey”. A letra, de autoria de Fernando Brant, um dos principais parceiros de Milton Nascimento, foi inspirada em “História dos pescadores”, de Dorival Caymmi (HERDY, 2015), e buscava retratar o conflito de gerações a partir de um diálogo entre pai e filho. A proposta inicial era que fosse gravada por Nascimento, a quem caberia cantar os versos correspondentes aos diálogos do filho, enquanto Caymmi se encarregaria de fazer a parte do pai. A censura, no entanto, viu na letra um “conteúdo nitidamente político” e decidiu proibi-la. Além disso, Milton foi “convidado” a depor no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) (BORGES, 2019).
Os únicos versos liberados foram “Filho meu” e “Meu filho”, e Milton fez questão de cantá-los na gravação, deixando claro que havia ali uma canção cujo conteúdo completo fora censurado. Aliás, conforme veremos ao longo deste texto, deliberadamente Milton Nascimento se utilizou de recursos a partir dos quais seu público perceberia que Milagre dos Peixes havia sido alvo da censura. Por exemplo, durante a execução da música instrumental “A chamada”, é possível ouvir Milton gritar “Eu tou cansado! Me salva!”. Uma denúncia diante da censura, mas também um pedido socorro. Os militares, claro, não deixaram essas atitudes por menos.
A estratégia de trazer à canção apenas os poucos versos liberados se repetiu em “Escravos de Jó”, cantados por Clementina de Jesus. Contendo um quê de denúncia ao racismo, os versos liberados dizem: “Saio do trabalho-ei/Volto para cas-ei/Não lembro de canseira maior/Em tudo é o mesmo suor”. O restante da música foi preenchido com vocalizes, gritos e uma potente instrumentalização, cuja percussão remete a sons afro de terreiros. A justificativa da censura para a interdição foi que, além de “contestação política, sátira e protesto”, havia pornografia nos versos que diziam “A vaca Vitória lambeu, lambeu, mexeu, mexeu e remexeu/Quem falar primeiro, quem falar primeiro/Vai ser aquele que comeu”.
Já a letra de “Cadê”, de autoria do cineasta Ruy Guerra, parceiro de Milton em outras canções de sua carreira, também foi censurada por conter “ironia política” e “contestação”, segundo o parecer da censora Marina de Almeida Brum Duarte. Em seus versos, Guerra questiona: “E a tua esperança, Branca de Neve/ Cadê, quem levou?/ Quem levou?”. Os versos da canção, aparentemente despolitizados, denotam em seu conjunto um ambiente de desesperança, comum àqueles tempos.
É válido registrar que a música “Cadê” seria gravada com letra original somente em 1978, por Gal Costa, em seu disco Água Viva. Mas antes disso, em 1976, a letra dessa canção foi novamente submetida à análise censória a pedido da gravadora EMI-Odeon. Na ocasião, foram encaminhadas três cópias da letra e uma gravação em fita cassete. Embora a letra tenha sido aprovada nessa ocasião pela censora Jeanete Maria de Oliveira Farias, no parecer final, assinado por Cleusa Maria Ferreira Barros, a DCDP alega ter sido impossível uma análise acurada. O motivo: “a fita cassete apresentada para exame censório contém, apenas, a parte musical sem a letra gravada”, razão pela qual solicitou que fosse encaminhada a gravação completa. Milton também gravaria a música, mas em uma versão em inglês intitulada “Fairy tale song”, no disco Milton, de 1976.
Denunciando a censura através dos encartes
Outras das estratégias utilizadas por Milton Nascimento para evidenciar que Milagre dos Peixes havia sido alvo da censura podia ser vista nos encartes do disco, que trazem a ficha técnica completa das gravações. Nas músicas cujas letras foram censuradas, embora a letra não esteja presente, existe a referência ao autor. Por exemplo, em “Hoje é dia de El-Rey”, além da ficha técnica, vê-se: “Música: Milton Nascimento/Letra: Marcio Borges”. Ou seja, aquela canção repleta de vocalizes e outros recursos sonoros com que o ouvinte se deparava tinha, sim, uma letra.
As inovações do disco, aliás, não ficaram apenas por conta de seu caráter essencialmente instrumental e do experimentalismo a que Milton fora levado pela censura. À diferença do que era comum na indústria dos discos, Milagre dos Peixes tinha um material dobrável que virava capa e contracapa. Quando aberto por completo, era possível ver, de um lado, em close, uma mão segurando um bebê e, de outro, uma fotografia de Milton Nascimento quando criança, em trajes de marinheiro. Os encartes eram coloridos, com cores chamativas, e traziam a ficha técnica completa de todas as músicas – foi a mais completa até então na história brasileira dos discos, incluindo até os técnicos, costumeiramente deixados de fora (DOLORES, 2022). Dentro dessa dobradura que virava uma embalagem, estavam um LP e um compacto. O projeto da produção gráfica do álbum foi autoria do designer Hélcio Mário Noguchi (COAN, 2020), que também criaria outras capas de discos para Milton Nascimento.
Milagre dos Peixes ao vivo
Com prestígio em sua gravadora, que estava disposta a investir no artista, Milton gravaria Milagre dos Peixes ao vivo no Theatro Municipal de São Paulo, nos dias 7 e 8 de maio de 1974. Acompanhado de uma orquestra sinfônica e da banda Som Imaginário, Milton executou várias músicas de sua carreira em um show sofisticado. Pela primeira vez na história do teatro, foi permitida a presença de pessoas sem traje a rigor. Na plateia, jovens de calça jeans e camisetas; alguns dos quais sequer pagaram ingresso, mas tiveram a entrada liberada pela direção do teatro depois de implorarem (DOLORES, 2022). Após executar “Hoje é dia de El-Rey”, Milton cantou “Sabe você”, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra. Parecia uma nova provocação aos militares: “(…) Sabe você o que é amor?/ Não sabe, eu sei/ (...) Você não tem alegria/ Nunca fez uma canção/ Por isso, minha poesia/Ah, você não rouba não”.
Depois do sucesso no Municipal, Milton se apresentou ao ar livre no domingo seguinte, na Faculdade de Arquitetura da USP. A apresentação fazia parte do circuito universitário. Segundo publicou o jornalista Nelson Motta em sua coluna no jornal O Globo, em pleno meio-dia, seis mil pessoas se reuniram para ver Milton. A plateia estava emocionada, cantando em coro, e algumas músicas precisaram ser bisadas (MOTTA, 1974).
Entretanto, o show na USP não foi de completa alegria: Milagre dos Peixes colocou Milton na mira da ditadura. Enquanto lá dentro a multidão cantava em uníssono, do lado de fora, o campus estava cercado por camburões do DOPS e tropas de choque (BORGES, 2019). Entretanto, tal ato mais pareceu uma tentativa de intimidação, uma vez que os militares não invadiram a USP.
Milton já estava na mira dos militares mesmo antes da gravação de Milagre dos Peixes. Há indícios de que era observado pelo menos desde 1968, quando participou, segundo a ditadura, de um show de “cunho subversivo” (SÁ, 2023). Existem relatórios dos Serviço Nacional de Informações (SNI), também disponíveis no Arquivo Nacional, que demonstram a vigilância à qual Milton estivera submetido durante a ditadura.
Em relatório de 1972 classificado como “confidencial”, Milton foi arrolado junto a outros artistas – como Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Gilberto Gil e Nara Leão – como sendo um cantor que, além de hostil ao governo e com tendências de esquerda, promovia, apresentações com grande receptividade no meio estudantil, “(…) mantendo os estudantes em permanente expectativa política e sob influência de um proselitismo desagregador” (SNI, 1972).
A ditadura não deixaria por menos a realização de Milagre dos Peixes e toda sua repercussão. Após isso, a perseguição se acentuou e Milton chegou a ser proibido de circular por São Paulo. O então secretário de Segurança Pública, coronel Erasmo Dias – o mesmo que comandou a invasão à PUC-SP, em 1977 – havia deixado claro que não queria Milton circulando por lá. As ameaças são se restringiram a Milton, mas também a seu filho adotivo, Pablo. Tanto ele quanto sua mãe biológica e então namorada de Milton, Káritas, residiam em São Paulo. As autoridades sabiam não apenas da existência de Pablo, mas sua idade, endereço e telefone. Se Milton tentasse se aproximar de São Paulo, o menino poderia sofrer as consequências. Além disso, ninguém poderia ficar sabendo desse “acordo” e Milton sofreu calado durante muito tempo (DOLORES, 2022). Nas palavras do próprio cantor, “fui proibido de ver o meu filho. Se eu me encontrasse com ele, falavam que iam matá-lo. Fiquei quase 20 anos [sem vê-lo]”.
A repressão se intensifica
Milton enfrentou a ditadura gravando Milagre dos Peixes, apesar de todas as restrições impostas pela censura. A resposta veio não apenas na intensificação da perseguição ao artista, mas atingiu o que de mais precioso Milton tinha: sua família. Acabou voltando para o Rio, perdeu o contato com Káritas e Pablo e não conseguiu recuperá-lo mesmo depois de ter voltado a São Paulo, no contexto da abertura política (DOLORES, 2022). Até hoje, esse é um assunto doloroso e pouco explorado por Milton. É uma ferida aberta pela ditadura, da qual o artista jamais se curou.
Muitos artistas enfrentaram a ditadura. Mesmo sob intensa censura e perseguição, conseguiram produzir trabalhos que se tornaram símbolos da resistência cultural. Milagre dos Peixes não foi apenas um disco importante naquele contexto político por ter sido um grito diante da censura: sua qualidade artística é atemporal. Foi eleito, pela revista Rolling Stone Brasil, em 2007, um dos 100 maiores discos da música brasileira. Trata-se de um trabalho que ocupa lugar central na vida cultura brasileira, sendo útil para compreendermos como atuou a ditadura diante das artes e como muitos artistas lidaram com isso.
Referências:
ALEXANDRE, Ricardo et al. Os 500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos. Porto Alegre: Jambô, 2022.
BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 2019.
COAN, Emerson Ike. Milagre dos Peixes: a censura e a voz de Milton Nascimento na sociedade do espetáculo brasileira. Revista Alterjor, ano 10, v. 2, ed. 22, jul./dez. 2020.
DOLORES, Maria. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Record, 2022.
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: O Brasil republicano: o tempo do regime autoritário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
HERDY, Thiago. Censura vetou dueto de Milton Nascimento e Dorival Caymmi. O Globo, 26 jul. 2015.
MOTTA, Nelson. As peripécias de Bituca. O Globo, 13 jun. 1974.
SÁ, Gabriel de. Milton Nascimento foi observado pelo Serviço Nacional de Informações. Estado de Minas, 9 jul. 2023.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. Edição comemorativa de 20 anos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Fontes:
Fundo documental da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) – Arquivo Nacional.
Fundo documental do Serviço Nacional de Informações (SNI) – Arquivo Nacional.
Disponíveis em: https://sian.an.gov.br/.
Como citar este artigo:
TEÓFILO, João. 50 anos de "Milagre dos Peixes": Milton Nascimento e a censura. História da Ditadura, 23 out. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/50-anos-de-milagre-dos-peixes-milton-nascimento-e-a-censura. Acesso em: [inserir data].