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Foto do escritorThiago Mourelle

70 anos da morte de Getúlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais

Há 70 anos, Getúlio Vargas encerrava uma trama política intensa e desgastante com um tiro no peito, tirando a própria vida. O final trágico causou comoção nacional, em especial aos trabalhadores e milhões de admiradores que cultivou após cerca de 18 anos governando o Brasil. Em sua carta-testamento, ele se colocou como um mártir do povo brasileiro, que resistiu bravamente à sanha de seus adversários que, como anti-heróis, queriam escorraçá-lo do poder e fazer uso da política para benefícios privados.


Primeira página do jornal varguista Última Hora, noticiando a morte de Getúlio Vargas. Rio de Janeiro – 1954 – Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Acervo Última Hora.
Primeira página do jornal varguista Última Hora, noticiando a morte de Getúlio Vargas. Rio de Janeiro – 1954 – Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Acervo Última Hora.

Obviamente, ele não escreveu nenhuma linha sobre os anos ditatoriais de seu governo, regime em que violência e censura foram impostas e que teve como grande marca a propaganda sobre ele mesmo como um governante infalível, predestinado e bondoso. Seu sacrifício, quase análogo ao de Jesus Cristo, teria sido pelo bem dos humildes, inclusive tendo a consciência dos desdobramentos de tal ato para a posteridade, na frase final: "saio da vida para entrar na História".


Como um dos líderes do "Grupo de Pesquisa Dimensões do Regime Vargas e seus desdobramentos" (CNPq), me interessa muito essa palavrinha final: "desdobramentos". Nas disputas sobre a memória, na ressignificação que esta recebe de tempos em tempos pelas novas gerações, qual o lugar que os fatos ocorridos naquela época ocupam hoje na História do Brasil? De certo modo, sua ditadura é muito menos lembrada do que a de 1964. Não apenas por nosso último período ditatorial ser mais recente, mas também pelo fato de que muitas figuras políticas contemporâneas se engajaram nessa briga memorial a fim de exaltar o período de 1964 a 1985 como algo positivo e benéfico ao país, o que, consequentemente, despertou também o movimento contrário que visa rememorar os absurdos e crimes cometidos pela nossa última ditadura.


Relações entre as ditaduras de 1937 e 1964


Filinto Müller, homem-forte de Getúlio Vargas. Imagem: Agência Nacional/ Arquivo Nacional.
Filinto Müller, homem-forte de Getúlio Vargas. Imagem: Agência Nacional/ Arquivo Nacional.

Como pesquisador do período Vargas há mais de 20 anos, posso afirmar: estudar 1937 nos ajuda a compreender 1964. A segunda ditadura aproveitou (e muito!) do aparato repressivo construído durante o Estado Novo (1937-1945), inclusive as técnicas de tortura e de vigilância, muitas capitaneadas por Filinto Müller (1900-1973), homem-forte do presidente entre 1933 e 1942 na preparação e execução de políticas repressivas. Muller, aliás, se tornou senador e foi presidente da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de apoio à ditadura militar, no período que talvez tenha sido o de maior opressão do regime, entre 1969 e 1973.


As correlações não param por aí. Francisco Campos, autor da Constituição de 1937, ajudou na concepção de atos institucionais no imediato pós-golpe de 1964. E outras diversas figuras de destaque no governo Vargas apoiaram e/ou tiveram lugar no governo militar durante a ditadura seguinte. Além disso, de forma mais abrangente, é claro que o aparelhamento, a maior profissionalização e a valorização financeira e técnica das Forças Armadas brasileiras, desde 1930, as tornaram mais fortes e bem-preparadas a ponto de conseguirem tomar o poder das mãos de João Goulart alguns anos depois, em um golpe de Estado contra um presidente eleito democraticamente. Assim como o anticomunismo, que teve um protagonismo, a partir de 1930, que ainda não tivera anteriormente, e que serviu como mote para o golpe de 1937 e, igualmente, para o de 1964.


Mas se, por um lado, tivemos o "varguismo vencedor" na figura de uma ideologia autoritária, violenta e repressora; por outro, também tivemos outra faceta, o "varguismo derrotado", o que demonstra o enorme grau de complexidade que é estudar os períodos em que Getúlio Vargas governou o país. A conjuntura e seus aliados em 1930 são totalmente diferentes dos de 1934, que também se diferem daqueles de 1937 e, mais uma vez, mudaram completamente em 1951. Voltando aos "derrotados": é lógico que o golpe militar, que em 2024 completou 60 anos, se colocou frontalmente contra as reformas políticas e sociais que se desenvolveram desde os primeiros governos Vargas. João Goulart, que chorou e discursou no enterro de Getúlio, em 1954, era um dos admiradores e herdeiros do ex-presidente, e grande parte dos que se opuseram ao seu governo e apoiaram o golpe de 1964 tinha o trabalhismo e as políticas sociais como grandes adversários.


Permanências no tempo presente: políticos como “heróis salvadores”


Setenta anos depois do suicídio que parou o Brasil, levando uma multidão de pessoas emocionadas às ruas, o legado e os desdobramentos dos anos 1930, 1940 e 1950 subsistem até hoje, em diversos aspectos, uns com maior e outros em menor força. É chamada por alguns de "Era Vargas", expressão que evitamos usar por entendermos chancelar uma visão sacralizadora do presidente e que reforça a tal "história dos grandes homens" da qual tentamos nos dissociar.


Toda história é história contemporânea, disse Benedetto Croce. Algo similar também foi falado por José Honório Rodrigues e outros intelectuais brasileiros e estrangeiros. No sentido de que olhamos para o passado com as preocupações do presente, impelidos pelo que nos chama a atenção a partir dos dias de hoje. E assim é, muitas vezes, revisitado o período em que o Brasil teve Vargas como mandatário, sob o olhar do presente, na tentativa de compreender temáticas como o fascismo no Brasil, as leis trabalhistas, as grandes estatais, entre outras.


Nesse sentido, é possível perceber uma série de situações contemporâneas que se assemelham às vividas 70, 80, 90 anos atrás. Algumas delas, são hoje ainda desdobramentos daquela época. Um ponto que cabe citar é a "exaltação do líder", uma das características do nazifascismo e muito utilizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) na estratégia de divulgação e sacralização da figura de Getúlio Vargas. Ao líder era atribuída a pecha de alguém inquestionável, sempre correto e que fazia o melhor pela nação.


Carro de som do DIP no morro da Mangueira, Rio de Janeiro. Reprodução.
Carro de som do DIP no morro da Mangueira, Rio de Janeiro. Reprodução.

Esse trabalho contínuo realizado pela ditadura de 1937 conseguiu construir um capital simbólico a Vargas como "pai dos pobres" que se perpetua até hoje na memória de muitos brasileiros. Não à toa, houve uma mudança no rumo das campanhas eleitorais no período liberal-democrático (1945-64) e até a União Democrática Nacional (UDN), organização partidária de oposição a Vargas, utilizou do mesmo expediente na propaganda política que elegeu Jânio Quadros como o herói que iria varrer a corrupção, usando como símbolo a vassoura.


Podemos citar diversos outros exemplos, como Fernando Collor, até chegar aos bolsonaristas que atribuíram ao ex-presidente uma aura antipolítica e antissistema, como se ele estivesse acima dos partidos políticos (não esqueçamos das palavras de ordem: “meu partido é o Brasil”) para resolver os problemas do país por meio de suas supostas características míticas. E mesmo alguns grupos de apoiadores de Lula, que o colocaram como figura imaculada, imune a qualquer crítica durante seu terceiro mandato.


Nacionalismo, estatais, leis trabalhistas... As marcas, hoje, dos anos de 1930, 1940 e 1950


Outro ponto muito desenvolvido pela propaganda do DIP, intensificado na Ditadura Militar (1964-1985) e valorizado, ainda hoje, pelos adeptos da educação conservadora é a questão da hierarquia e da disciplina. Traço presente na educação militar e transportado intensamente para os civis durante nossas duas ditaduras. Como dito por Gonzaguinha na música "Comportamento Geral", é como se impelissem à população a busca pelo "diploma de bem-comportado".



Mais um traço que permanece presente décadas a fio é o nacionalismo exacerbado, estimulado institucionalmente nos períodos ditatoriais e diretamente ligado ao autoritarismo e à imposição da hierarquia que citamos anteriormente. Nele, inclui-se como parte indissociável a luta anticomunista, vista como uma batalha contra uma ideologia estrangeira aos ideais nacionais, conforme foi também amplamente divulgado nos anos 1930 e 1940. A ideia de "Brasil, ame-o ou deixe-o", presente no marketing oficial nos anos 1960 e 1970, também se enquadra na mesma visão. Portanto, são vínculos bem nítidos entre 1937, 1964 e hoje.


Um debate também muito atual e necessário é a questão da privatização das grandes estatais, muitas das quais criadas durante o governo Vargas, como a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Petrobras. É impossível falar da importância delas para o desenvolvimento do país e os projetos que a elas foram vinculados, relacionados à industrialização e ao desenvolvimento nacional, sem voltarmos aos anos 1930 e 1940. Se queremos discutir o Brasil contemporâneo e o que pretendemos para o futuro, é essencial resgatar as origens e os objetivos traçados quando da criação dessas empresas nacionais. Muitas permanências são ainda mais visíveis e gritantes, de enorme simbolismo, como quando Lula imita Vargas e tira um retrato com as mãos sujas de Petróleo, logicamente se vinculando à imagem de protagonista na busca pelo desenvolvimento nacional autossustentável.


Outro exemplo é a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assunto urgente e de primeira ordem. É igualmente improdutivo debater o significado e a importância das leis trabalhistas sem recordar o passado histórico e a luta dos trabalhadores pela sua implementação. Inclusive as interferências estatais e a forma como foi conduzida sua promulgação, aplicação e limites.


Por fim, entre outros tantos exemplos de assuntos de suma importância a serem pesquisados, que perpassam o governo de Getúlio Vargas e chegam até os dias atuais, cabe citar a música popular e o samba. Nos anos 1930, 1940 e 1950 ocorreu uma transformação cujos desdobramentos chegam até o Brasil de hoje. Vejamos a importância do samba atualmente, seja pela sua popularização internamente, seja como imagem do Brasil no exterior. Protagonismo que se deu a partir da oficialização (e mudança de características) do desfile das escolas de samba e da forma como o governo se relacionava com o carnaval de rua, que passou a ser fortemente apoiado, processo iniciado já nos primeiros anos após a Revolução de 1930.


Todos esses temas são passíveis de estudos pela História do Tempo Presente. A investigação dos períodos em que Getúlio Vargas foi presidente e ditador são de gigantesca importância para a História do Brasil, para a compreensão de quem somos, o que nos tornamos e como se construiu nossa memória, nossos hábitos, nossa cultura, nosso modo de ser. É imprescindível que a historiografia não deixe tais debates morrerem, em especial no ano em que se completam 70 anos da morte de Getúlio Vargas, por meio de um suicídio impactante para toda a sociedade, lembrado e debatido até hoje.


Afinal, cabe ao historiador lembrar o que a sociedade quer esquecer ou, muitas vezes, o que grupos específicos querem que a sociedade esqueça. Porque rememorar traz à tona o debate sobre assuntos como fascismo, estatais, leis trabalhistas, uso político do anticomunismo, exaltação ao líder... Assuntos que estão na ordem do dia, imprescindíveis para a compreensão de nosso país.


 

Como citar este artigo:

MOURELLE, Thiago. 70 anos da morte de Getúlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuaisHistória da Ditadura, 27 ago. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/70-anos-da-morte-de-getulio-vargas-um-ensaio-sobre-1937-1964-e-os-tempos-atuais. Acesso em: [inserir data].

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