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70 anos da morte de GetĂșlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais

  • Foto do escritor: Thiago Mourelle
    Thiago Mourelle
  • 28 de ago. de 2024
  • 7 min de leitura

HĂĄ 70 anos, GetĂșlio Vargas encerrava uma trama polĂ­tica intensa e desgastante com um tiro no peito, tirando a prĂłpria vida. O final trĂĄgico causou comoção nacional, em especial aos trabalhadores e milhĂ”es de admiradores que cultivou apĂłs cerca de 18 anos governando o Brasil. Em sua carta-testamento, ele se colocou como um mĂĄrtir do povo brasileiro, que resistiu bravamente Ă  sanha de seus adversĂĄrios que, como anti-herĂłis, queriam escorraçå-lo do poder e fazer uso da polĂ­tica para benefĂ­cios privados.


Primeira pĂĄgina do jornal varguista Última Hora, noticiando a morte de GetĂșlio Vargas. Rio de Janeiro – 1954 – Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Acervo Última Hora.
Primeira pĂĄgina do jornal varguista Última Hora, noticiando a morte de GetĂșlio Vargas. Rio de Janeiro – 1954 – Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Acervo Última Hora.

Obviamente, ele nĂŁo escreveu nenhuma linha sobre os anos ditatoriais de seu governo, regime em que violĂȘncia e censura foram impostas e que teve como grande marca a propaganda sobre ele mesmo como um governante infalĂ­vel, predestinado e bondoso. Seu sacrifĂ­cio, quase anĂĄlogo ao de Jesus Cristo, teria sido pelo bem dos humildes, inclusive tendo a consciĂȘncia dos desdobramentos de tal ato para a posteridade, na frase final: "saio da vida para entrar na HistĂłria".


Como um dos lĂ­deres do "Grupo de Pesquisa DimensĂ”es do Regime Vargas e seus desdobramentos" (CNPq), me interessa muito essa palavrinha final: "desdobramentos". Nas disputas sobre a memĂłria, na ressignificação que esta recebe de tempos em tempos pelas novas geraçÔes, qual o lugar que os fatos ocorridos naquela Ă©poca ocupam hoje na HistĂłria do Brasil? De certo modo, sua ditadura Ă© muito menos lembrada do que a de 1964. NĂŁo apenas por nosso Ășltimo perĂ­odo ditatorial ser mais recente, mas tambĂ©m pelo fato de que muitas figuras polĂ­ticas contemporĂąneas se engajaram nessa briga memorial a fim de exaltar o perĂ­odo de 1964 a 1985 como algo positivo e benĂ©fico ao paĂ­s, o que, consequentemente, despertou tambĂ©m o movimento contrĂĄrio que visa rememorar os absurdos e crimes cometidos pela nossa Ășltima ditadura.


RelaçÔes entre as ditaduras de 1937 e 1964


Filinto MĂŒller, homem-forte de GetĂșlio Vargas. Imagem: AgĂȘncia Nacional/ Arquivo Nacional.
Filinto MĂŒller, homem-forte de GetĂșlio Vargas. Imagem: AgĂȘncia Nacional/ Arquivo Nacional.

Como pesquisador do perĂ­odo Vargas hĂĄ mais de 20 anos, posso afirmar: estudar 1937 nos ajuda a compreender 1964. A segunda ditadura aproveitou (e muito!) do aparato repressivo construĂ­do durante o Estado Novo (1937-1945), inclusive as tĂ©cnicas de tortura e de vigilĂąncia, muitas capitaneadas por Filinto MĂŒller (1900-1973), homem-forte do presidente entre 1933 e 1942 na preparação e execução de polĂ­ticas repressivas. Muller, aliĂĄs, se tornou senador e foi presidente da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de apoio Ă  ditadura militar, no perĂ­odo que talvez tenha sido o de maior opressĂŁo do regime, entre 1969 e 1973.


As correlaçÔes não param por aí. Francisco Campos, autor da Constituição de 1937, ajudou na concepção de atos institucionais no imediato pós-golpe de 1964. E outras diversas figuras de destaque no governo Vargas apoiaram e/ou tiveram lugar no governo militar durante a ditadura seguinte. Além disso, de forma mais abrangente, é claro que o aparelhamento, a maior profissionalização e a valorização financeira e técnica das Forças Armadas brasileiras, desde 1930, as tornaram mais fortes e bem-preparadas a ponto de conseguirem tomar o poder das mãos de João Goulart alguns anos depois, em um golpe de Estado contra um presidente eleito democraticamente. Assim como o anticomunismo, que teve um protagonismo, a partir de 1930, que ainda não tivera anteriormente, e que serviu como mote para o golpe de 1937 e, igualmente, para o de 1964.


Mas se, por um lado, tivemos o "varguismo vencedor" na figura de uma ideologia autoritĂĄria, violenta e repressora; por outro, tambĂ©m tivemos outra faceta, o "varguismo derrotado", o que demonstra o enorme grau de complexidade que Ă© estudar os perĂ­odos em que GetĂșlio Vargas governou o paĂ­s. A conjuntura e seus aliados em 1930 sĂŁo totalmente diferentes dos de 1934, que tambĂ©m se diferem daqueles de 1937 e, mais uma vez, mudaram completamente em 1951. Voltando aos "derrotados": Ă© lĂłgico que o golpe militar, que em 2024 completou 60 anos, se colocou frontalmente contra as reformas polĂ­ticas e sociais que se desenvolveram desde os primeiros governos Vargas. JoĂŁo Goulart, que chorou e discursou no enterro de GetĂșlio, em 1954, era um dos admiradores e herdeiros do ex-presidente, e grande parte dos que se opuseram ao seu governo e apoiaram o golpe de 1964 tinha o trabalhismo e as polĂ­ticas sociais como grandes adversĂĄrios.


PermanĂȘncias no tempo presente: polĂ­ticos como “herĂłis salvadores”


Setenta anos depois do suicĂ­dio que parou o Brasil, levando uma multidĂŁo de pessoas emocionadas Ă s ruas, o legado e os desdobramentos dos anos 1930, 1940 e 1950 subsistem atĂ© hoje, em diversos aspectos, uns com maior e outros em menor força. É chamada por alguns de "Era Vargas", expressĂŁo que evitamos usar por entendermos chancelar uma visĂŁo sacralizadora do presidente e que reforça a tal "histĂłria dos grandes homens" da qual tentamos nos dissociar.


Toda história é história contemporùnea, disse Benedetto Croce. Algo similar também foi falado por José Honório Rodrigues e outros intelectuais brasileiros e estrangeiros. No sentido de que olhamos para o passado com as preocupaçÔes do presente, impelidos pelo que nos chama a atenção a partir dos dias de hoje. E assim é, muitas vezes, revisitado o período em que o Brasil teve Vargas como mandatårio, sob o olhar do presente, na tentativa de compreender temåticas como o fascismo no Brasil, as leis trabalhistas, as grandes estatais, entre outras.


Nesse sentido, Ă© possĂ­vel perceber uma sĂ©rie de situaçÔes contemporĂąneas que se assemelham Ă s vividas 70, 80, 90 anos atrĂĄs. Algumas delas, sĂŁo hoje ainda desdobramentos daquela Ă©poca. Um ponto que cabe citar Ă© a "exaltação do lĂ­der", uma das caracterĂ­sticas do nazifascismo e muito utilizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) na estratĂ©gia de divulgação e sacralização da figura de GetĂșlio Vargas. Ao lĂ­der era atribuĂ­da a pecha de alguĂ©m inquestionĂĄvel, sempre correto e que fazia o melhor pela nação.


Carro de som do DIP no morro da Mangueira, Rio de Janeiro. Reprodução.
Carro de som do DIP no morro da Mangueira, Rio de Janeiro. Reprodução.

Esse trabalho contínuo realizado pela ditadura de 1937 conseguiu construir um capital simbólico a Vargas como "pai dos pobres" que se perpetua até hoje na memória de muitos brasileiros. Não à toa, houve uma mudança no rumo das campanhas eleitorais no período liberal-democråtico (1945-64) e até a União Democråtica Nacional (UDN), organização partidåria de oposição a Vargas, utilizou do mesmo expediente na propaganda política que elegeu Jùnio Quadros como o herói que iria varrer a corrupção, usando como símbolo a vassoura.


Podemos citar diversos outros exemplos, como Fernando Collor, atĂ© chegar aos bolsonaristas que atribuĂ­ram ao ex-presidente uma aura antipolĂ­tica e antissistema, como se ele estivesse acima dos partidos polĂ­ticos (nĂŁo esqueçamos das palavras de ordem: “meu partido Ă© o Brasil”) para resolver os problemas do paĂ­s por meio de suas supostas caracterĂ­sticas mĂ­ticas. E mesmo alguns grupos de apoiadores de Lula, que o colocaram como figura imaculada, imune a qualquer crĂ­tica durante seu terceiro mandato.


Nacionalismo, estatais, leis trabalhistas... As marcas, hoje, dos anos de 1930, 1940 e 1950


Outro ponto muito desenvolvido pela propaganda do DIP, intensificado na Ditadura Militar (1964-1985) e valorizado, ainda hoje, pelos adeptos da educação conservadora Ă© a questĂŁo da hierarquia e da disciplina. Traço presente na educação militar e transportado intensamente para os civis durante nossas duas ditaduras. Como dito por Gonzaguinha na mĂșsica "Comportamento Geral", Ă© como se impelissem Ă  população a busca pelo "diploma de bem-comportado".



Mais um traço que permanece presente décadas a fio é o nacionalismo exacerbado, estimulado institucionalmente nos períodos ditatoriais e diretamente ligado ao autoritarismo e à imposição da hierarquia que citamos anteriormente. Nele, inclui-se como parte indissociåvel a luta anticomunista, vista como uma batalha contra uma ideologia estrangeira aos ideais nacionais, conforme foi também amplamente divulgado nos anos 1930 e 1940. A ideia de "Brasil, ame-o ou deixe-o", presente no marketing oficial nos anos 1960 e 1970, também se enquadra na mesma visão. Portanto, são vínculos bem nítidos entre 1937, 1964 e hoje.


Um debate tambĂ©m muito atual e necessĂĄrio Ă© a questĂŁo da privatização das grandes estatais, muitas das quais criadas durante o governo Vargas, como a Vale do Rio Doce, a Companhia SiderĂșrgica Nacional e a Petrobras. É impossĂ­vel falar da importĂąncia delas para o desenvolvimento do paĂ­s e os projetos que a elas foram vinculados, relacionados Ă  industrialização e ao desenvolvimento nacional, sem voltarmos aos anos 1930 e 1940. Se queremos discutir o Brasil contemporĂąneo e o que pretendemos para o futuro, Ă© essencial resgatar as origens e os objetivos traçados quando da criação dessas empresas nacionais. Muitas permanĂȘncias sĂŁo ainda mais visĂ­veis e gritantes, de enorme simbolismo, como quando Lula imita Vargas e tira um retrato com as mĂŁos sujas de PetrĂłleo, logicamente se vinculando Ă  imagem de protagonista na busca pelo desenvolvimento nacional autossustentĂĄvel.


Outro exemplo Ă© a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assunto urgente e de primeira ordem. É igualmente improdutivo debater o significado e a importĂąncia das leis trabalhistas sem recordar o passado histĂłrico e a luta dos trabalhadores pela sua implementação. Inclusive as interferĂȘncias estatais e a forma como foi conduzida sua promulgação, aplicação e limites.


Por fim, entre outros tantos exemplos de assuntos de suma importĂąncia a serem pesquisados, que perpassam o governo de GetĂșlio Vargas e chegam atĂ© os dias atuais, cabe citar a mĂșsica popular e o samba. Nos anos 1930, 1940 e 1950 ocorreu uma transformação cujos desdobramentos chegam atĂ© o Brasil de hoje. Vejamos a importĂąncia do samba atualmente, seja pela sua popularização internamente, seja como imagem do Brasil no exterior. Protagonismo que se deu a partir da oficialização (e mudança de caracterĂ­sticas) do desfile das escolas de samba e da forma como o governo se relacionava com o carnaval de rua, que passou a ser fortemente apoiado, processo iniciado jĂĄ nos primeiros anos apĂłs a Revolução de 1930.


Todos esses temas sĂŁo passĂ­veis de estudos pela HistĂłria do Tempo Presente. A investigação dos perĂ­odos em que GetĂșlio Vargas foi presidente e ditador sĂŁo de gigantesca importĂąncia para a HistĂłria do Brasil, para a compreensĂŁo de quem somos, o que nos tornamos e como se construiu nossa memĂłria, nossos hĂĄbitos, nossa cultura, nosso modo de ser. É imprescindĂ­vel que a historiografia nĂŁo deixe tais debates morrerem, em especial no ano em que se completam 70 anos da morte de GetĂșlio Vargas, por meio de um suicĂ­dio impactante para toda a sociedade, lembrado e debatido atĂ© hoje.


Afinal, cabe ao historiador lembrar o que a sociedade quer esquecer ou, muitas vezes, o que grupos específicos querem que a sociedade esqueça. Porque rememorar traz à tona o debate sobre assuntos como fascismo, estatais, leis trabalhistas, uso político do anticomunismo, exaltação ao líder... Assuntos que estão na ordem do dia, imprescindíveis para a compreensão de nosso país.


 

Como citar este artigo:

MOURELLE, Thiago. 70 anos da morte de GetĂșlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais. HistĂłria da Ditadura, 27 ago. 2024. DisponĂ­vel em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/70-anos-da-morte-de-getulio-vargas-um-ensaio-sobre-1937-1964-e-os-tempos-atuais. Acesso em: [inserir data].

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