70 anos da morte de GetĂșlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais
- Thiago Mourelle
- 28 de ago. de 2024
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HĂĄ 70 anos, GetĂșlio Vargas encerrava uma trama polĂtica intensa e desgastante com um tiro no peito, tirando a prĂłpria vida. O final trĂĄgico causou comoção nacional, em especial aos trabalhadores e milhĂ”es de admiradores que cultivou apĂłs cerca de 18 anos governando o Brasil. Em sua carta-testamento, ele se colocou como um mĂĄrtir do povo brasileiro, que resistiu bravamente Ă sanha de seus adversĂĄrios que, como anti-herĂłis, queriam escorraçå-lo do poder e fazer uso da polĂtica para benefĂcios privados.

Obviamente, ele nĂŁo escreveu nenhuma linha sobre os anos ditatoriais de seu governo, regime em que violĂȘncia e censura foram impostas e que teve como grande marca a propaganda sobre ele mesmo como um governante infalĂvel, predestinado e bondoso. Seu sacrifĂcio, quase anĂĄlogo ao de Jesus Cristo, teria sido pelo bem dos humildes, inclusive tendo a consciĂȘncia dos desdobramentos de tal ato para a posteridade, na frase final: "saio da vida para entrar na HistĂłria".
Como um dos lĂderes do "Grupo de Pesquisa DimensĂ”es do Regime Vargas e seus desdobramentos" (CNPq), me interessa muito essa palavrinha final: "desdobramentos". Nas disputas sobre a memĂłria, na ressignificação que esta recebe de tempos em tempos pelas novas geraçÔes, qual o lugar que os fatos ocorridos naquela Ă©poca ocupam hoje na HistĂłria do Brasil? De certo modo, sua ditadura Ă© muito menos lembrada do que a de 1964. NĂŁo apenas por nosso Ășltimo perĂodo ditatorial ser mais recente, mas tambĂ©m pelo fato de que muitas figuras polĂticas contemporĂąneas se engajaram nessa briga memorial a fim de exaltar o perĂodo de 1964 a 1985 como algo positivo e benĂ©fico ao paĂs, o que, consequentemente, despertou tambĂ©m o movimento contrĂĄrio que visa rememorar os absurdos e crimes cometidos pela nossa Ășltima ditadura.
RelaçÔes entre as ditaduras de 1937 e 1964

Como pesquisador do perĂodo Vargas hĂĄ mais de 20 anos, posso afirmar: estudar 1937 nos ajuda a compreender 1964. A segunda ditadura aproveitou (e muito!) do aparato repressivo construĂdo durante o Estado Novo (1937-1945), inclusive as tĂ©cnicas de tortura e de vigilĂąncia, muitas capitaneadas por Filinto MĂŒller (1900-1973), homem-forte do presidente entre 1933 e 1942 na preparação e execução de polĂticas repressivas. Muller, aliĂĄs, se tornou senador e foi presidente da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de apoio Ă ditadura militar, no perĂodo que talvez tenha sido o de maior opressĂŁo do regime, entre 1969 e 1973.
As correlaçÔes nĂŁo param por aĂ. Francisco Campos, autor da Constituição de 1937, ajudou na concepção de atos institucionais no imediato pĂłs-golpe de 1964. E outras diversas figuras de destaque no governo Vargas apoiaram e/ou tiveram lugar no governo militar durante a ditadura seguinte. AlĂ©m disso, de forma mais abrangente, Ă© claro que o aparelhamento, a maior profissionalização e a valorização financeira e tĂ©cnica das Forças Armadas brasileiras, desde 1930, as tornaram mais fortes e bem-preparadas a ponto de conseguirem tomar o poder das mĂŁos de JoĂŁo Goulart alguns anos depois, em um golpe de Estado contra um presidente eleito democraticamente. Assim como o anticomunismo, que teve um protagonismo, a partir de 1930, que ainda nĂŁo tivera anteriormente, e que serviu como mote para o golpe de 1937 e, igualmente, para o de 1964.
Mas se, por um lado, tivemos o "varguismo vencedor" na figura de uma ideologia autoritĂĄria, violenta e repressora; por outro, tambĂ©m tivemos outra faceta, o "varguismo derrotado", o que demonstra o enorme grau de complexidade que Ă© estudar os perĂodos em que GetĂșlio Vargas governou o paĂs. A conjuntura e seus aliados em 1930 sĂŁo totalmente diferentes dos de 1934, que tambĂ©m se diferem daqueles de 1937 e, mais uma vez, mudaram completamente em 1951. Voltando aos "derrotados": Ă© lĂłgico que o golpe militar, que em 2024 completou 60 anos, se colocou frontalmente contra as reformas polĂticas e sociais que se desenvolveram desde os primeiros governos Vargas. JoĂŁo Goulart, que chorou e discursou no enterro de GetĂșlio, em 1954, era um dos admiradores e herdeiros do ex-presidente, e grande parte dos que se opuseram ao seu governo e apoiaram o golpe de 1964 tinha o trabalhismo e as polĂticas sociais como grandes adversĂĄrios.
PermanĂȘncias no tempo presente: polĂticos como âherĂłis salvadoresâ
Setenta anos depois do suicĂdio que parou o Brasil, levando uma multidĂŁo de pessoas emocionadas Ă s ruas, o legado e os desdobramentos dos anos 1930, 1940 e 1950 subsistem atĂ© hoje, em diversos aspectos, uns com maior e outros em menor força. Ă chamada por alguns de "Era Vargas", expressĂŁo que evitamos usar por entendermos chancelar uma visĂŁo sacralizadora do presidente e que reforça a tal "histĂłria dos grandes homens" da qual tentamos nos dissociar.
Toda histĂłria Ă© histĂłria contemporĂąnea, disse Benedetto Croce. Algo similar tambĂ©m foi falado por JosĂ© HonĂłrio Rodrigues e outros intelectuais brasileiros e estrangeiros. No sentido de que olhamos para o passado com as preocupaçÔes do presente, impelidos pelo que nos chama a atenção a partir dos dias de hoje. E assim Ă©, muitas vezes, revisitado o perĂodo em que o Brasil teve Vargas como mandatĂĄrio, sob o olhar do presente, na tentativa de compreender temĂĄticas como o fascismo no Brasil, as leis trabalhistas, as grandes estatais, entre outras.
Nesse sentido, Ă© possĂvel perceber uma sĂ©rie de situaçÔes contemporĂąneas que se assemelham Ă s vividas 70, 80, 90 anos atrĂĄs. Algumas delas, sĂŁo hoje ainda desdobramentos daquela Ă©poca. Um ponto que cabe citar Ă© a "exaltação do lĂder", uma das caracterĂsticas do nazifascismo e muito utilizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) na estratĂ©gia de divulgação e sacralização da figura de GetĂșlio Vargas. Ao lĂder era atribuĂda a pecha de alguĂ©m inquestionĂĄvel, sempre correto e que fazia o melhor pela nação.

Esse trabalho contĂnuo realizado pela ditadura de 1937 conseguiu construir um capital simbĂłlico a Vargas como "pai dos pobres" que se perpetua atĂ© hoje na memĂłria de muitos brasileiros. NĂŁo Ă toa, houve uma mudança no rumo das campanhas eleitorais no perĂodo liberal-democrĂĄtico (1945-64) e atĂ© a UniĂŁo DemocrĂĄtica Nacional (UDN), organização partidĂĄria de oposição a Vargas, utilizou do mesmo expediente na propaganda polĂtica que elegeu JĂąnio Quadros como o herĂłi que iria varrer a corrupção, usando como sĂmbolo a vassoura.
Podemos citar diversos outros exemplos, como Fernando Collor, atĂ© chegar aos bolsonaristas que atribuĂram ao ex-presidente uma aura antipolĂtica e antissistema, como se ele estivesse acima dos partidos polĂticos (nĂŁo esqueçamos das palavras de ordem: âmeu partido Ă© o Brasilâ) para resolver os problemas do paĂs por meio de suas supostas caracterĂsticas mĂticas. E mesmo alguns grupos de apoiadores de Lula, que o colocaram como figura imaculada, imune a qualquer crĂtica durante seu terceiro mandato.
Nacionalismo, estatais, leis trabalhistas... As marcas, hoje, dos anos de 1930, 1940 e 1950
Outro ponto muito desenvolvido pela propaganda do DIP, intensificado na Ditadura Militar (1964-1985) e valorizado, ainda hoje, pelos adeptos da educação conservadora Ă© a questĂŁo da hierarquia e da disciplina. Traço presente na educação militar e transportado intensamente para os civis durante nossas duas ditaduras. Como dito por Gonzaguinha na mĂșsica "Comportamento Geral", Ă© como se impelissem Ă população a busca pelo "diploma de bem-comportado".
Mais um traço que permanece presente dĂ©cadas a fio Ă© o nacionalismo exacerbado, estimulado institucionalmente nos perĂodos ditatoriais e diretamente ligado ao autoritarismo e Ă imposição da hierarquia que citamos anteriormente. Nele, inclui-se como parte indissociĂĄvel a luta anticomunista, vista como uma batalha contra uma ideologia estrangeira aos ideais nacionais, conforme foi tambĂ©m amplamente divulgado nos anos 1930 e 1940. A ideia de "Brasil, ame-o ou deixe-o", presente no marketing oficial nos anos 1960 e 1970, tambĂ©m se enquadra na mesma visĂŁo. Portanto, sĂŁo vĂnculos bem nĂtidos entre 1937, 1964 e hoje.
Um debate tambĂ©m muito atual e necessĂĄrio Ă© a questĂŁo da privatização das grandes estatais, muitas das quais criadas durante o governo Vargas, como a Vale do Rio Doce, a Companhia SiderĂșrgica Nacional e a Petrobras. Ă impossĂvel falar da importĂąncia delas para o desenvolvimento do paĂs e os projetos que a elas foram vinculados, relacionados Ă industrialização e ao desenvolvimento nacional, sem voltarmos aos anos 1930 e 1940. Se queremos discutir o Brasil contemporĂąneo e o que pretendemos para o futuro, Ă© essencial resgatar as origens e os objetivos traçados quando da criação dessas empresas nacionais. Muitas permanĂȘncias sĂŁo ainda mais visĂveis e gritantes, de enorme simbolismo, como quando Lula imita Vargas e tira um retrato com as mĂŁos sujas de PetrĂłleo, logicamente se vinculando Ă imagem de protagonista na busca pelo desenvolvimento nacional autossustentĂĄvel.
Outro exemplo Ă© a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assunto urgente e de primeira ordem. Ă igualmente improdutivo debater o significado e a importĂąncia das leis trabalhistas sem recordar o passado histĂłrico e a luta dos trabalhadores pela sua implementação. Inclusive as interferĂȘncias estatais e a forma como foi conduzida sua promulgação, aplicação e limites.
Por fim, entre outros tantos exemplos de assuntos de suma importĂąncia a serem pesquisados, que perpassam o governo de GetĂșlio Vargas e chegam atĂ© os dias atuais, cabe citar a mĂșsica popular e o samba. Nos anos 1930, 1940 e 1950 ocorreu uma transformação cujos desdobramentos chegam atĂ© o Brasil de hoje. Vejamos a importĂąncia do samba atualmente, seja pela sua popularização internamente, seja como imagem do Brasil no exterior. Protagonismo que se deu a partir da oficialização (e mudança de caracterĂsticas) do desfile das escolas de samba e da forma como o governo se relacionava com o carnaval de rua, que passou a ser fortemente apoiado, processo iniciado jĂĄ nos primeiros anos apĂłs a Revolução de 1930.
Todos esses temas sĂŁo passĂveis de estudos pela HistĂłria do Tempo Presente. A investigação dos perĂodos em que GetĂșlio Vargas foi presidente e ditador sĂŁo de gigantesca importĂąncia para a HistĂłria do Brasil, para a compreensĂŁo de quem somos, o que nos tornamos e como se construiu nossa memĂłria, nossos hĂĄbitos, nossa cultura, nosso modo de ser. Ă imprescindĂvel que a historiografia nĂŁo deixe tais debates morrerem, em especial no ano em que se completam 70 anos da morte de GetĂșlio Vargas, por meio de um suicĂdio impactante para toda a sociedade, lembrado e debatido atĂ© hoje.
Afinal, cabe ao historiador lembrar o que a sociedade quer esquecer ou, muitas vezes, o que grupos especĂficos querem que a sociedade esqueça. Porque rememorar traz Ă tona o debate sobre assuntos como fascismo, estatais, leis trabalhistas, uso polĂtico do anticomunismo, exaltação ao lĂder... Assuntos que estĂŁo na ordem do dia, imprescindĂveis para a compreensĂŁo de nosso paĂs.
Como citar este artigo:
MOURELLE, Thiago. 70 anos da morte de GetĂșlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais. HistĂłria da Ditadura, 27 ago. 2024. DisponĂvel em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/70-anos-da-morte-de-getulio-vargas-um-ensaio-sobre-1937-1964-e-os-tempos-atuais. Acesso em: [inserir data].