A arte sob ofensiva: a censura entre permanências e transformações
Apesar de você, famosa canção de Chico Buarque, completou 50 anos em 2020. Em dezembro do mesmo ano, a cantora Daniela Mercury reuniu dezenas de artistas e regravou a música, juntamente com um videoclipe. Ao longo de pouco mais de cinco minutos, o “vídeo manifesto”, conforme sua descrição no YouTube o intitula, destaca 35 manchetes de jornais que noticiam episódios recentes de censura às artes, de ataques aos direitos humanos, ao jornalismo e a grupos minoritários realizados, sobretudo, pelo aparato estatal. Além de Daniela Mercury, participaram do projeto nomes como Elza Soares, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Margareth Menezes, Céu, Adriana Calcanhoto, Raquel Virgínia, Assucena Assucena, dentre outros. Ao chamar atenção para uma série de arbitrariedades promovidas ou incentivadas por agentes do governo, o clipe denuncia os retrocessos das liberdades e defende a necessidade de resistir a tal ameaça.
Este texto, que inaugura a coluna Censura, entre a ditadura e a democracia, se propõe a analisar, ainda que brevemente, a recorrente emergência de casos evolvendo práticas censórias nos últimos anos, sobretudo no âmbito da cultura. A ideia é traçar um paralelo com o contexto da ditadura militar brasileira, com o objetivo de compreender a recorrência desses impulsos autoritários entre nós. Nesse sentido, cabe situar, desde já, o conceito de censura no qual me apoio.
Robert Darnton (2016), ao problematizar a ideia de censura, nos alerta sobre os riscos de se adotar uma definição por demais rígida, levando a entendê-la como fenômeno autônomo, que opera em toda parte e da mesma forma, a despeito do contexto. Ou seja, uma coisa em si. O historiador americano pontua que a censura não pode ser banalizada, no entanto, a considera como essencialmente política, sendo, portanto, operada pelo Estado. Defende, assim, uma visão mais abrangente em torno do conceito, a partir de uma perspectiva etnográfica, na qual percebe a censura “como um sistema de controle que permeia as instituições, colore as relações humanas e alcança as engrenagens ocultas da alma” (DARNTON, 2016, p. 291).
No Brasil, foi somente a Constituição de 1988, e não propriamente o fim do regime militar, que pôs fim ao funcionamento censório que vigorou no país por várias décadas. O Art. 220 da Carta Magna pontua que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto [na] Constituição”. Em seguida, o parágrafo segundo desse artigo determina que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. A partir de então, a estrutura censória que existia foi completamente desmantelada. A Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão subordinado à Polícia Federal, teve suas atividades encerradas e os censores, servidores públicos de carreira, foram realocados para outros órgãos e funções.
O fim institucional desse aparato, entretanto, não sepultou anseios oriundos de parcelas da sociedade que legitimavam sua atividade. Como questiona o historiador Carlos Fico, em artigo no qual analisa um conjunto de correspondências enviadas por pessoas comuns à Censura Federal, “para onde seriam enviadas as cartas dos guardiões da reta moral e dos costumes elevados?” (2002, p. 278). Nesse sentido, qual seria, na Nova República, o lugar dos discursos baseados no temor à flexibilização de comportamentos? E, ao mesmo tempo, em que medida a democracia que surgiu com a última Constituição está preparada para lidar com possíveis ameaças às liberdades, sobretudo no campo da cultura? Quais as garantias da inviolabilidade desse princípio? Episódios recentes de censura têm alçado ao debate público tais questionamentos.
Um dos argumentos centrais que embasou a censura vigente no Brasil ao longo do século XX foi a defesa da “moral” e dos “bons costumes”. Essa preocupação atravessou diferentes governos e tipos de regime, fossem democráticos ou autoritários. Desde o Estado Novo, por meio da institucionalização do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), passando pelo intervalo liberal democrático de 1946 a 1964, com a atuação do Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP), até a apropriação desse instrumento pelo regime militar como um dos pilares de seu sistema repressivo, o tema da moral assumiu papel crucial no controle estatal sobre os comportamentos. Ancoradas na mobilização do medo como estratégia de legitimação, tais políticas marcaram a República de diferentes formas.
A ascensão da extrema direita no país, sobretudo após a eleição de Bolsonaro à Presidência, em 2018, tem ensejado forte intervenção sobre produções artísticas e culturais. Amparado em intenso discurso conservador, defendido por parte significativa de seus apoiadores, dentro e fora da política institucional, o governo tem empregado grande esforço no combate a produções que abordem criticamente temas como racismo e homofobia, ou que discutam questões como o feminismo, por exemplo. A dita “pauta dos costumes” parece garantir a popularidade do governo entre certas parcelas da sociedade e, por essa razão, ocupa recorrentemente a agenda pública.
A investida neste campo iniciou logo no primeiro dia após a posse da atual gestão, com a extinção do Ministério da Cultura, uma de suas promessas de campanha. A transformação da pasta em uma secretaria pertencente ao Ministério da Cidadania foi alvo de inúmeras críticas da classe intelectual e artística, que também havia protestado quando Michel Temer (PMDB) tomou a mesma medida após assumir interinamente a Presidência em 2016. A decisão foi revertida dias depois, o que não se repetiu com Bolsonaro.
Na sequência, uma série de atos administrativos do Executivo foram denunciados como evidente exercício censório, tais como a intervenção na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), entidade pública federal que gerencia um conglomerado de mídia estatal. Relatos de funcionários da empresa mencionam a censura a termos como “golpe” e “ditadura militar” para se referir ao regime de exceção que tomou o poder em 1964 e se estendeu por 21 anos. Conforme matéria publicada na UOL, as restrições se dirigem a todos os temas que incomodam o governo.
Em maio de 2019, houve intervenção direta da Presidência na retirada de uma propaganda do Banco do Brasil do ar. A peça incentivava a abertura de conta, abordando a diversidade por meio de imagens de homens e mulheres de diferentes raças, gêneros e idades. Na época, Bolsonaro se pronunciou sobre a decisão alegando “respeito à família”. Meses depois, o banco divulgou um edital para o financiamento de obras de longa-metragem, o qual indagava, já em seu formulário de inscrição, se a produção possuía cunho político ou religioso, se abordava crimes, prostituição ou nudez. Ao que tudo indica, a identificação prévia de determinadas abordagens objetivava filtrar o apoio a obras cujo roteiro não se adequasse a critérios morais e políticos preliminares.
O campo do cinema foi alvo de censura em outras ocasiões. Por meio da Agência Nacional de Cinema (Ancine), foram vetados investimentos em filmes com temática LGBT. Em pronunciamento em redes sociais, o próprio presidente afirmou que realizou um “garimpo” nessas produções, a fim de evitar a aplicação de recursos através da Lei do Audiovisual. Além disso, o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, que estava com estreia prevista para 20 de novembro de 2019, Dia da Consciência Negra, no Brasil, teve seu lançamento adiado em virtude de entraves criados pela Ancine para a comercialização da obra. Em entrevista, Moura afirmou que o governo usa instrumentos burocráticos para dificultar produções das quais discorda. Em suas palavras: “é uma censura diferente, mas é censura”.
Outro caso ocorreu durante a realização da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em setembro do mesmo ano. O então prefeito Marcelo Crivella determinou que a HQ Vingadores, a Cruzada das Crianças, da Marvel Comics, fosse recolhida, proibindo sua venda no evento. Crivella, na época bispo licenciado da Igreja Universal, alinhado com Governo Federal, afirmou, em suas redes sociais, que a medida visava “proteger nossas crianças”, pois considerava o tema da HQ “impróprio para menores”. Ressaltou também que o material deveria “estar em plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo”.
Entretanto, a organização da Bienal se recusou a cumprir a ordem do prefeito e, no dia seguinte, fiscais da Prefeitura foram até o local para realizar a apreensão de exemplares à venda. O episódio repercutiu bastante na imprensa e nas redes sociais e gerou uma onda de repúdio à censura imposta por Crivella. Diante da situação, diversas editoras criticaram duramente o prefeito e denunciaram o caráter intolerante e discriminatório da ação. A Folha de S. Paulo, em reação ao arbítrio, estampou em sua capa a imagem utilizada pelo prefeito para justificar a censura: o beijo entre os personagens Wiccano e Hulkling.
Por fim, a autoridade municipal foi desautorizada pela Justiça estadual do Rio de Janeiro e o caso foi discutido, inclusive, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), que classificou o gesto como incompatível com o princípio democrático.
Em novembro de 2019, o mesmo STF convocou uma audiência pública para discutir uma ação movida pelo partido Rede Sustentabilidade, que acusava o governo Bolsonaro de promover censura contra a cultura. A representação judicial contestava, especificamente, a transferência do Conselho Superior de Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil e o acentuado corte de verbas em agências públicas de fomento à arte. Na ocasião, Caetano Veloso, um dos artistas a discursar, comparou a interferência do atual governo à época da ditadura:
O governo dirá que não proíbe arte, que não está prendendo ou interrogando autores, que artistas são perfeitamente livres para expressarem suas ideias, sua sexualidade, suas religiões. Não existe mais um departamento de censura, não existe mais o cargo de censor, que o Estado não pretende impedir a difusão de obra alguma. Ao contrário do passado, o Estado apenas se reserva o direito de não financiar artistas e temáticas que estejam em desacordo com o projeto eleito nas urnas pela maioria do povo.
Nesse sentido, é crucial apreendermos as diferentes maneiras como a censura é exercida e materializada, em conformidade com as demandas e os mecanismos do tempo em que emerge.
As contribuições de Meize Lucas nos auxiliam nessa direção. A historiadora considera ser fundamental entender a censura como “uma ação articulada com instâncias governamentais, setores da sociedade civil e baseada em um pensamento que fundamentava a ideologia de Estado. Ideologia esta, em considerável medida, calcada na ideia da existência de um inimigo interno a ser combatido” (2020, p. 385). Por um lado, é necessário demarcar as distinções entre o exercício do veto vigente durante a ditadura, conduzido por um órgão público a serviço do regime, e as tentativas de interdição advindas do aparato estatal hoje. Por outro, a estratégia de eleger um inimigo e enfrentá-lo por vias institucionais parece ser um elemento em comum entre ambas as experiências. Além, é claro, de encontrarem ressonância em segmentos da sociedade, nos dois contextos.
Durante a ditadura, a ofensiva contra o comunismo foi um dos principais argumentos norteadores da política de segurança nacional e da atividade do aparelho repressivo. Para os agentes do regime, a guerra contra esse inimigo deveria ser travada também no campo dos costumes, tendo em vista que a infiltração de ideias e valores ditos comunistas poderiam “destruir a família” e, por conseguinte, “desagregar a sociedade”.
A revitalização do ímpeto censório nos últimos anos, embora mobilizado por retórica semelhante, personifica-se, por sua vez, sobretudo em pautas dos movimentos sociais e no modo como elas se expressam na arte. A mobilização de esforços para coibir determinados comportamentos ou ideologias supostamente contrários ao “interesse nacional” almeja construir legitimidades e dar coesão a bandeiras conservadoras com histórico lastro social. Do ponto de vista da forma, o sufocamento financeiro de produções consideradas indesejadas toma o lugar da verificação prévia realizada outrora.
Como nos lembra Eni Orlandi (2007), a interdição que advém da censura impede o sujeito de ocupar certos lugares e posições. O ataque à cultura, mediante seu cerceamento, desnuda, em suma, os limites da própria democracia. Diante disso, o papel da História, portanto, é não só compreender as diversas apropriações desses recursos ao longo do tempo, problematizando seus usos e sentidos, mas também nos fazer questionar sobre os riscos que essa recente escalada do arbítrio nos impõe.
Créditos da imagem destacada: Reprodução.
Referências
DARNTON, Robert. Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FICO, Carlos. “Prezada Censura”: Cartas ao Regime Militar. Topoi – Revista de História, Rio de Janeiro: UFRJ. n. 5, p. 251-286, set. 2002.
LUCAS, Meize. Imagens sob suspeita: a censura e suas negociações no Brasil em tempos de ditadura (1964-1985). Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Porto, v. 60, p. 383-397, 2020.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Link
MADEIRO, Carlos. Nova TV Brasil é marcada por denúncias de censura e “overdose de governo”. UOL, 25 de abril de 2019. Disponível em: Link
Bolsonaro nega censura a propaganda do BB: “É respeito com a população”. Jovem Pan, 4 de abril de 2019. Disponível em: Link
MOTTA, Danilo. Começa a censura à arte no governo Bolsonaro. SP Bancários, 12 de agosto de 2019. Disponível em: Link
Bolsonaro diz que ‘garimpou’ e vetou filmes com temática LGBT. Folha de São Paulo, 16 de agosto de 2019. Disponível em: Link
MOURA, Wagner. “Mariguella” não é caso isolado, Cultura está sob censura, diz Wagner Moura. Entrevista concedida a Leonardo Sakamoto. UOL, 14 de janeiro de 2020. Disponível em: Link
GRELLET, Fábio. Crivella tenta censurar HQ com personagens homossexuais. Terra, 6 de setembro de 2019. Disponível em: Link
Editoras repudiam ordem de Crivella para recolher livro na Bienal. G1, 6 de novembro de 2019. Disponível em: Link
JIMÉZES, Carla. STF proíbe censura de livros no Rio e dá recado contra discriminação. El País, 9 de setembro de 2019. Disponível em: Link
SOUZA, Renata. Artistas reclamam ao STF que decreto de Bolsonaro é censura. Correio Brasiliense, 5 de novembro de 2019. Disponível em: Link
Interessante essa síntese desses eventos, Thiago. Eu mesmo não lembrava que em tão pouco tempo tinha havido tantos episódios de censura.
Reflexão maravilhosa!! Em especial, ao unir os episódios da atualidade com o entendimento que Darnton tem sobre censura.
Sou fã número 1.