A Coleção Contos Rápidos – Parte II: A Pulga (1914)
Nesta edição da coluna A história pelo buraco da fechadura, dou continuidade a uma série de seis textos dedicados aos números remanescentes da Coleção Contos Rápidos, publicada entre 1914 e 1916 pelo jornal carioca O Rio Nu (1898-1916). No primeiro desses textos, tratei do conto O Menino do Gouveia, sexto volume da coleção, cuja trama acompanha o despertar da sexualidade de um jovem homossexual no Rio de Janeiro do começo do século XX. Nele, também expliquei o que foi a Coleção Contos Rápidos e por que ela é tão importante para a história das sexualidades e suas representações no Brasil. Portanto, se você é novo ou nova por aqui, não deixe de conferir o primeiro texto da série!
Já o tema desta edição é o conto A Pulga, sétimo da coleção, que começou a ser anunciado em 28 de março de 1914 e é assinado por Lúcio D’Amour.[1] A trama é ambientada no Rio de Janeiro e descreve as estratégias adotadas por Dona Zizi para seduzir Ambrósio Minhoca, um jovem que seu esposo, um capitão de navios, havia contratado para vigiá-la durante suas longas ausências. Inicialmente, o plano de Zizi consistiu em insinuar-se diante de Ambrósio com roupas e poses provocativas, na esperança de que ele tomasse a iniciativa de cortejá-la. Como o rapaz se manteve impassível, ela adotou uma estratégia mais incisiva: alegando estar sendo atacada por pulgas, chamou o empregado até seu quarto, onde encontrava-se sensualmente vestida, e solicitou seu auxílio para caçar o inseto imaginário. No decorrer do processo, Zizi foi se despindo e orientando as mãos, a língua e, finalmente, o pênis de Ambrósio por todo o seu corpo, o que culminaria na tão ansiada penetração.
A Pulga é um livreto de 15 páginas no formato ½ ofício, e entre os remanescentes da Coleção Contos Rápidos talvez seja o que tenha um potencial cômico mais evidente. Isso não o impede, contudo, de ensejar reflexões muito interessantes sobre questões sociais e imaginários sexuais latentes no Brasil do começo do século XX – muitos dos quais persistem até os nossos dias. Nas linhas seguintes, meus objetivos serão pontuar brevemente algumas dessas questões – em especial, as que se relacionam aos fantasmas do adultério feminino e à sexualidade dos homens não brancos – e destacar a inusitada presença das pulgas em narrativas pornográficas brasileiras naquele período.
Esposas melindrosas
Todo o enredo de A Pulga gira em torno da tentativa, por parte de Dona Zizi, de levar a cabo um caso extraconjugal, e as circunstâncias que facilitaram o sucesso dessa empreitada ilustram de maneira exemplar alguns dos fantasmas que habitavam – e ainda habitam – determinado imaginário em torno do adultério feminino. O primeiro deles diz respeito à desconfiança da qual as mulheres eram alvo, em particular aquelas consideradas bonitas e vaidosas, como Dona Zizi é representada no conto. Seus atributos físicos são descritos detalhadamente e, segundo o narrador, eles seriam a prova cabal de um temperamento libidinoso: bastaria olhá-la para adivinhar que “ali estava uma mulher nascida para os espasmos loucos do amor, para as vibrações doidas da lubricidade” (D’AMOUR, 1914, p. 4). Além de jovem e bonita, Zizi é uma mulher abastada, que vive rodeada de empregadas e dedica seu tempo a constantes toilettes, trajando-se de corpinhos, meias rendadas, camisas “decotadíssimas” e sapatos de salto alto, “que a tornavam mais elegante” (D’AMOUR, 1914, p. 9).
A personagem encarna, portanto, a figura da “melindrosa”, que se popularizou no começo do século XX: uma mulher burguesa, urbana e modernizada, antagônica a outro arquétipo feminino estereotipado da época: as matronas coloniais. Como ressaltou Margareth Rago (1991, p. 58), a desconfiança e a censura em relação às melindrosas – mulheres consideradas fúteis, que se preocupavam apenas com a própria aparência e que davam uma importância exacerbada às roupas, joias e penteados da moda – tinham um evidente fundo moral. Sobretudo numa época em que as mulheres – e entre elas, as trabalhadoras sexuais – se tornavam mais presentes e visíveis no espaço público dos centros urbanos, o receio era de que não fosse mais possível distinguir entre aquelas que a moral predominante definia como “honestas” e as “decaídas”. O conto, portanto, joga com essa confusão, reforçando a ideia de que mulheres vaidosas, como Dona Zizi, não seriam confiáveis.
Maridos ausentes
Outros fantasmas evocados pelo conto são o do marido ausente e o de que não seria prudente permitir ou facilitar a sociabilidade da mulher com outros homens. É interessante notar, nesse sentido, que o narrador faz questão de ressaltar que o Capitão possuía as virtudes e a disposição necessárias para satisfazer sexualmente a esposa. Essa habilidade é atribuída, em parte, à sua virilidade e potência, mas também ao fato de que ele “guardava fidelidade” à companheira, retornando das longas viagens com um apetite sexual “formidável” (D’AMOUR, 1914, p. 4). Desse modo, o conto subverte a “dupla moral” que regia as expectativas comportamentais de gênero no começo do século XX (e que, é importante dizer, vinha de longa data e não está completamente superada ainda hoje), segundo a qual o adultério masculino seria mais aceitável e até compreensível, enquanto a mulher adúltera tendia a ser moral e socialmente rechaçada, quando não agredida ou assassinada pelo esposo (ARAÚJO, 1993, p. 134).
De toda forma, a narrativa evidencia que, por mais exuberante que fosse a libido de Dona Zizi, o Capitão estava apto a satisfazê-la. O problema era que a cada oito dias que passava na companhia da esposa, seguiam-se viagens que poderiam durar dois ou três meses. A solução encontrada por ele para precaver-se dos rivais foi introduzir Ambrósio Minhoca no lar conjugal, com o objetivo de vigiar e proteger a esposa, o que acabou por surtir o efeito contrário.
“Para a desonra, bala!”: a naturalização da violência contra a mulher
A ausência do marido e o acesso de outros homens à intimidade doméstica são dois elementos muito presentes em narrativas – pornográficas ou não – que abordam a infidelidade feminina e também nos relatos de adultério publicados pela imprensa brasileira no começo do século XX. Um exemplo trágico aconteceu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1915, quando o padeiro Fernando Pinto Torres flagrou a esposa Leonor com seu amigo Altamiro Mattos, assassinando os dois a tiros. A cobertura do crime reforçava o fato de que Fernando trabalhava dia e noite no seu comércio, passando muito tempo fora de casa; como Altamiro era sócio, vizinho e padrinho de uma filha do casal, o padeiro não desconfiava da “insistência” com que o amigo frequentava o domicílio, permitindo inclusive que ele levasse a esposa e os filhos para passear de vez em quando.[2]
Segundo alguns jornalistas, a confiança advinha também da diferença geracional entre Altamiro, que tinha vinte anos, e Leonor, que contava trinta e cinco quando foi assassinada, idade que seria “precisa para compenetrar-se nos seus deveres” de esposa.[3] Para outros jornalistas, no entanto, Leonor estaria numa “idade crítica, em que, não se sendo mais moça, se tem o pavor de chegar à velhice sem uma aventura galante de adultério requintado”,[4] o que demandaria uma vigilância mais acirrada do marido.
Embora Fernando tenha cometido e confessado prontamente o duplo homicídio, prevaleceu na imprensa a ideia de que ele seria a verdadeira vítima da tragédia. Seu principal erro, de acordo com esses relatos, teria sido o de confiar na sólida amizade que nutria com Altamiro e acreditar que os trinta e cinco anos de Leonor a tornavam insuscetível ao desejo sexual, admitindo e até facilitando a convivência de sua esposa com outro homem. Assim, o caso seria “consequência da facilidade com que muitos admitem em sua casa, no recesso do seu lar, na intimidade de sua família, indivíduos estranhos”, provando assim que “se os maridos confiassem desconfiando, talvez fosse menor o número de adultérios”.[5]
Os jornais desse período – e ainda hoje – estão repletos de histórias como a de Leonor, em que a infidelidade feminina foi punida com violência e morte. Na época, estava em vigor o Código Penal de 1890, que não previa a defesa da honra como atenuante nesses casos. Mas a lei, amparada pelos costumes, possuía brechas que tornavam possível – e frequente – a redução ou supressão da pena de homens que se vingavam das companheiras dessa forma (CAUFIELD, 2000, p. 83). A possibilidade de uma mulher adúltera ser agredida ou assassinada não escapou ao narrador de A Pulga: ao comentar sobre os motivos que haviam levado Zizi a ser manter sexualmente fiel ao Capitão até aquele momento, ele enfatiza que prevaleceu o receio de que um amante indiscreto a comprometesse, “como a outras havia acontecido” (D’AMOUR, 1914, p. 5). Assim, Zizi teria eleito Ambrósio Minhoca não apenas por sua boa aparência e fácil acesso, mas sobretudo pela impressão de que ele seria um homem tímido e ignorante, qualidades que, na sua avaliação, o tornariam menos propenso à indiscrição.
A sexualidade dos homens não brancos
Nesse sentido, é importante destacar que Ambrósio Minhoca, um jovem de dezoito anos e natural da região Norte do país, de onde havia sido “desencavado” pelo Capitão em uma de suas viagens, não era um homem branco. Num primeiro momento, ele é descrito como um homem alto e forte, de “faces vermelhas, beiços grossos e um formidável nariz” – o que seria um indicativo seguro das dimensões avantajadas de seu pênis; nos momentos de intimidade, Dona Zizi se referia a ele como “meu negro” (D’AMOUR, 1914, p. 4; 15). Ambrósio é também descrito, de maneira reiterada, como um homem “burro como uma porta e acanhado como uma menina” (D’AMOUR, 1914, p. 5), e tanto seu corpo quanto a sua potência sexual são constantemente comparados aos de um animal.
Esse personagem nos permite refletir sobre alguns dos estereótipos mais persistentes atribuídos às masculinidades negras: a hiper sexualização e o tamanho descomunal do pênis – que seria, além disso, inversamente proporcional à sua inteligência. Recorrendo a Franz Fanon, o antropólogo Rolf Ribeiro de Souza (2009, p. 100) destaca que, no imaginário ocidental, antes de ser um homem, o homem negro é negro e, como tal, não possui sexualidade, mas sexo: “um sexo que desde muito cedo foi descrito no Brasil com um atributo que o emasculava ao mesmo tempo em que o assemelhava a um animal em contraste com o homem branco”.
É importante ainda destacar que Ambrósio habitava a casa de Dona Zizi na condição de empregado, ironicamente contratado pelo capitão para que matasse qualquer um que ousasse encostar em sua esposa. Este foi, inclusive, o argumento mobilizado pelo jovem quando, inicialmente, se recusou a tocar a patroa para procurar a pulga inventada. A resposta de Zizi, no entanto, foi imperativa, ressaltando o papel subalterno de Ambrósio: “Já te disse! Apanha a pulga porque o capitão está longe e quem manda sou eu! Anda!” (D’AMOUR, 1914, p. 10).
Assim, a narrativa inverte hierarquias de gênero, raciais e sociais em voga: é a patroa, uma mulher mais velha e branca, que deseja e toma a iniciativa de seduzir o empregado, um homem mais jovem e não branco. Ao fazer isso, no entanto, o narrador não deixa de reproduzir – e, bem ao contrário, reforça – estigmas tanto em relação às mulheres sexualmente (pró)ativas quanto à sexualidade dos homens não brancos.
O potencial erótico das pulgas
Por fim, merecem destaque nesse conto a presença da pulga imaginária e seu protagonismo enquanto instrumento da realização do desejo de Dona Zizi. É curioso notar que estes insetos não parecem ter sido personagens extraordinários nas narrativas pornográficas brasileiras daquele período. Nas páginas do jornal O Rio Nu, são frequentes as anedotas, versinhos e contos nos quais personagens femininas se despem diante de amantes e voyeurs enquanto catam pulgas. Uma cena assim é descrita também em O Menino do Gouveia, quando Bembem observa, por um buraco na parede, o momento em que o tio se excita vendo a esposa, em mangas de camisa, caçando os insetos pelo corpo.
Em 1911, o jornal já havia publicado uma história bastante parecida com a de Dona Zizi, sob o sugestivo título Um Velho Ardil. Nela, a personagem Lizinha recebia com muito entusiasmo um hóspede de seu esposo que, tal como Ambrósio, foi descrito como um jovem do interior, com ares de desligado. Negligenciada pelo marido, que passava as noites a jogar poker no clube, Lizinha tentou seduzir o rapaz, mas foi igualmente confrontada com o fato de que “o hóspede não se resolvia a lhe faltar com o respeito”. Lizinha então “lançou mão de um truc muito conhecido”, que consistia em solicitar ajuda para ciscar uma pulga.[6]
As pulgas também aparecem nessas narrativas como criaturinhas invejáveis, que acessam as partes mais reservadas e desejadas do corpo feminino, como vemos na imagem a seguir, que ilustrou uma capa de O Rio Nu em julho de 1911.
Nela, uma mulher completamente nua parece observar alguma coisa no próprio corpo, segurando uma das nádegas com a mão. O poema que acompanha a imagem, intitulado Pulga Feliz, nos informa que a mulher está à procura de uma pulga que, depois de picá-la, havia se escondido. Nos versos finais, o autor expressa a inveja que se sente do inseto: “Malgrado a sorte que a espera/ de ser ali liquidada/ Ser a pulga, ai, quem me dera!/ Só para dar-lhe uma picada”.[7]
Evidentemente, a presença desses insetos em textos pornográficos não basta para que se chegue à conclusão de que, de fato, brasileiras e brasileiros do começo do século XX se excitavam catando pulgas. Mas, ao que tudo indica, os bichinhos eram numerosos no Rio de Janeiro deste período e faziam parte do cotidiano da população. Na imprensa diária, eram frequentes os anúncios de venenos que prometiam exterminá-los, como o Sabão Sarnol e o Pó da Pérsia, por exemplo. Além disso, os inconvenientes causados pelas pulgas, incluindo a ginástica empregada para caçá-las, eram ironizados em outros gêneros periódicos da época, como a Revista Fon-Fon, na qual um colunista, em texto publicado em 1914, queixava-se dos confetes carnavalescos, comparando-os a estes insetos. Segundo ele, livrar-se de confetes era uma tarefa inglória: “Além de penoso, é deselegante, porquê obriga-nos a uma série de situações grotescas, a uns movimentos de dedos, que bem parecem com o que as senhoras empregam para apanhar pulgas”.[8]
Assim, talvez a pulga inventada de Dona Zizi, bem como muitas outras que alegraram e aguçaram a imaginação dos leitores e leitoras de O Rio Nu, possa indicar que os redatores do jornal buscavam no Rio de Janeiro de seu tempo os personagens e situações que retratavam.
Para finalizar...
A Coleção Contos Rápidos chegou a ter vinte números publicados. A Pulga é um dos seis que sobreviveram ao tempo e hoje podem ser consultados gratuitamente no setor de Obras Raras da Fundação Biblioteca Nacional. Assim como seus congêneres, a obra é um livrinho curto que, à primeira vista, não teria outra função além de excitar o leitor. Porém, como nos alertou Robert Darnton (1996, p. 21), “sexo dá o que pensar”. Desse modo, Dona Zizi, Ambrósio Minhoca, o Capitão e a pulga inventada podem nos ajudar a compreender as fantasias, os desejos, tabus e violências que habitavam ruas, lares e o imaginário sexual no Rio de Janeiro dos anos 1910. Nesse texto, abordei apenas algumas das questões que o conto pode inspirar: como sempre, a ideia não é esgotar o assunto, mas despertar a curiosidade em torno do tema para que ele seja cada vez mais objeto de interesse acadêmico.
Na próxima edição da coluna A história pelo buraco da fechadura, continuo a apresentação da Coleção Contos Rápidos com Na Zona..., o décimo primeiro volume da coletânea, cuja trama acompanha as peregrinações de um sujeito pelas zonas de prostituição do Rio de Janeiro.
Notas: [1] Lúcio D’Amour parece ter sido o protagonista de outro romance publicado pelo Rio Nu, intitulado Casta Suzana. O Rio Nu, 24/01/1914, p. 4.
[2] Correio da Manhã, 18/02/1915, p. 3.
[3] A Época, 18/02/1915, p. 2.
[4] Correio da Manhã, 18/02/1915, p. 3.
[5] Gazeta de Notícias, 18/02/1915, p. 2.
[6] O Rio Nu, 12/04/1911, p. 7.
[7] O Rio Nu, 12/07/1911, capa.
[8] Fon-Fon, 07/12/1914, p. 4.
Referências:
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.
D’AMOUR. A Pulga. Ilha de Vênus: Casa Editorial Cupido e Comp., 1914.
DARNTON, Robert. Sexo dá o que pensar. In: NOVAES, Adalto (Org.). Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
SOUZA, Rolf Ribeiro. As representações do homem negro e suas consequências. Revista Forum Identidades, ano 3, v. 6, p. 97-115, 2009.
Como citar este artigo:
CARDOSO, Erika. A Coleção Contos Rápidos – Parte II: A Pulga (1914). História da Ditadura, 12 jun. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-cole%C3%A7%C3%A3o-contos-r%C3%A1pidos-parte-ii-a-pulga-1914. Acesso em: [inserir data].
Comments