A ditadura militar entregou o estigma da menoridade
Nossa memória histórica está inundada por imagens da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem). Desde 1989, quando foi oficialmente extinta, a Funabem vem sendo rememorada em alusão à violência. Tudo o que cabe de nefasto na realidade atual dos adolescentes em privação de liberdade e no seu tratamento no interior das unidades de internação parece remontar a um mal de origem, um passado ainda vivo que habita nosso presente (KOSELLECK, 2014).
A tecnoburocracia e o desrespeito aos Direitos Humanos que marcaram o regime militar brasileiro avançaram sobre as infâncias e juventudes pobres pelas mãos de um aparato socioassistencial que prometeu redimir essa população, qualificar profissionais, estabelecer métodos científicos de tratamento “terapêutico” e gerir de forma centralizada as políticas sociais. Desenvolveu-se, no entanto, terrivelmente.
Em que se baseou a promessa de redenção das infâncias e juventudes brasileiras pelo regime militar? Como foi possível pensá-la com tamanho “potencial”? Este texto trata sobre isso. Pelas lentes do saber histórico, analiso a produção de subjetividades por meio das quais a Funabem pôde mostrar-se legítima e promissora, processo este que envolveu um conjunto de partícipes em diferentes instâncias a pensá-la e defendê-la como espelho da ditadura no campo das ações sociais.
Revista Brasil Jovem: autoadulação do projeto Funabem
A Revista Brasil Jovem foi um dos espaços de propagação do discurso oficial da Funabem, a partir dos quais se projetaram horizontes de normatização das infâncias e juventudes sob a perspectiva do regime militar. Esta revista foi editada pelo setor de Comunicação Social da entidade entre 1966 e 1978, com diferentes periodicidades. A autoadulação do projeto Funabem era a razão de ser da revista, bem como a celebração dos próprios militares como gestores preocupados com as questões sociais.
Brasil Jovem também tinha em mente, de forma objetiva, construir um vocabulário comum ao trabalho socioassistencial, promovendo a formação das equipes técnicas que atuavam na rede Funabem por todo Brasil. Compunha-se por matérias produzidas pela redação, um pequeno grupo de profissionais que exerciam funções junto ao seu setor de Comunicação Social, sediado na Rua Visconde de Itaúna, na cidade do Rio de Janeiro. Boletim oficial dissimulado de periódico leigo, Brasil Jovem veiculava também matérias nas quais a sua atuação tivesse sido narrada pelas mídias impressas comerciais. Aceitava, ainda, a colaboração de profissionais engajados nos campos do direito, da assistência social, da medicina e da criminologia.
O Projeto Funabem se queria nacional. Isto significava alcançar capilaridade pelo território do país, permitindo constituir-se como a única entidade a gerenciar toda a política socioassistencial brasileira no campo das infâncias e famílias. Dessa singularidade adviria, conforme se pensava, a sua eficiência, já que a falta de unidade e abrangência das ações sociais federais vinham sendo historicamente denunciadas nas entidades que a antecederam. Tal como os processos de mecanização industrial seguiam um padrão que otimizava o processo produtivo, a Funabem se pensou igualmente eficiente. Acreditava que, ao normatizar o processo de tratamento das infâncias pobres através da sua governança institucionalizada, conseguiria resolver esse “problema”: crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e parental.
Assim, os “delicados serviços de amparo e reeducação de menores” deveriam pautar-se por métodos, conceitos, procedimentos padrão que o técnico iria executar para um bom aproveitamento, sem dar lugar a personalismos, mas com a atenção que o trabalho desse tipo requeria (O nascer da Fundação. Brasil Jovem, ano I, n. 02, dezembro de 1966, p. 43).
Enquanto foi promessa de redenção das infâncias irregulares, menorizadas, a Funabem se apresentou como obra de uma política interna excepcionalmente preocupada com o futuro das infâncias e juventudes, e como face social do empreendimento militar iniciado em 1964. As suas condições de possibilidade e projeção, no entanto, são anteriores ao regime. Pôde apresentar-se promissora de futuros porque era o produto ideal de um longo processo de edificação em que diversos artífices tiveram lugar e que oportunamente veio a consolidar-se como Funabem.
Antecedentes da Funabem
Os trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar irregularidades no Serviço de Assistência a Menores (SAM), iniciados em 1956, deram início ao lento processo de sua extinção. Entidade criada em 1941 para gerir as infâncias desassistidas, maltrapilhas, carentes, perambulantes, infratoras etc., desde os anos 1950, o SAM vinha paulatinamente sendo desacreditado pela opinião pública em razão do notório paradoxo entre seus princípios e o tratamento dado à população assistida. Embora a referida CPI não tenha finalizado os trabalhos, ela colocou o SAM no centro do debate sobre a situação das infâncias brasileiras.
Em 1961, sob forte pressão de diferentes agentes, o presidente Jânio Quadros assinou uma portaria dando continuidade aos trabalhos iniciados pela CPI e designou uma Comissão de Sindicância que concluiu, em face da irremediável realidade do SAM, a necessidade de um novo modelo de entidade. Quando ainda estavam em curso os trabalhos da Comissão de Sindicância, o Supremo Tribunal Federal julgou o habeas corpus de um adolescente evadido do SAM. Seu defensor entrou com uma representação eloquente, cujo desfecho se expressa pelo parecer do então ministro do STF Nelson Hungria:
[...] É isto que se quer evitar a esse menor: o constrangimento de internação num reformatório falido, que, ao invés de reabilitá-lo, apenas o aviltará irremediavelmente...(...). Fez ele muito bem. Fugiu a uma sucursal do inferno. Todos os internados do SAM deveriam fazer o mesmo, pois fora dele, sua recuperação seria muito mais provável... (Anteprojeto de criação da Funabem. BRASIL JOVEM, ano I, n. 2, 1966, p. 31)
Como a situação exemplifica, era crescente o apelo a uma mudança na atenção às infâncias e juventudes institucionalizadas. O presidente João Goulart designou, no mesmo ano, uma Comissão de Anteprojeto para construir o desenho de uma entidade que viesse a substituir o SAM. Esta comissão, contudo, entregou o anteprojeto para o novo governo, em meados de 1964.
Os militares, tão pronto receberam o anteprojeto, assumiram a responsabilidade de edificar a entidade, incorporando integralmente a síntese dos fracassos precedentes e trazendo para dentro do regime grande parte da Comissão de Anteprojeto, um conjunto de experts que agora comporia o Conselho Nacional da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, criada por meio da Lei n. 4.513, de 1º de dezembro de 1964.
Isto é muito significativo. O regime ilegítimo se apropriou da proposta, tomando a frente do processo levado a cabo havia cerca de uma década, como indício da sua boa vontade de trazer a colaboração civil para o governo e, ao mesmo tempo, com este ato, produzir, em relação a si mesmo e à Fundação vindoura, um discurso legitimador. Quer dizer, entre tantos mandatários, foram os militares que ouviram os anseios da sociedade brasileira e dos “amigos da juventude” – os empresários, a burocracia estatal, os técnicos, os parlamentares, o próprio STF – e colocaram em ação o projeto, longamente elaborado, de redenção das infâncias e juventudes menorizadas (Anteprojeto de criação da FNBEM. Brasil Jovem, ano I, n. 2, dezembro de 1966, p. 30).
Seria aquela, portanto, uma Fundação de tipo federativo, nacional, subordinada diretamente à presidência da República. Ela seria autônoma e contaria com a expertise de um corpo de profissionais responsáveis pela formação de quadros especializados no próprio Centro Piloto da Funabem em Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro. Seria, enfim, uma entidade voltada para a menoridade, aquela parcela populacional que realmente necessitava do Estado e, sobretudo, aqueles entendidos como um problema para este Estado que ansiava disciplinar, normatizar, manipular as condutas para o bom adestramento social. Ao invés de egressos versados no crime, dos complexos da Funabem sairiam cidadãos brasileiros, o que a menoridade, por definição, não era.
A promessa: redimir as infâncias
Como demonstrou o historiador Carlos Fico (1996), a ditadura soube mobilizar na ordem do discurso um imaginário social que propalava o Brasil como um país destinado a ser uma grande nação, esperança que residia num personalismo quase heroico, salvador. Para que a Funabem se projetasse como promessa foi preciso que se movimentasse no sentido de uma leitura conjuntural, estratégica, aproveitando processos anteriores ao regime, mas operando-os com imaginários de longa duração na cultura brasileira, sabiamente utilizados para construir consensos e horizontes otimistas em relação aos projetos em curso.
Neste sentido, foi um empreendimento razoável mobilizar o potencial dos gestores na construção de um projeto socioassistencial novo, até o início dos anos 1970, quando o vento, soprado pela censura e pela mobilização dos medos sociais, estava a favor de uma leitura da ditadura como saneadora, e, a partir dela, das infâncias como redimidas pelo regime.
A entidade elencou os menores e a menoridade como alvo de suas políticas, mobilizando-os a partir de critérios cunhados pela lógica da família nuclear. Como foi se dando conta ao longo do processo de sua construção, gerir através do abrigamento, compulsório ou não, a totalidade das infâncias e juventudes em situação de vulnerabilidade consistia em um trabalho hercúleo, que demandava muito mais do que propaganda e imaginários otimistas. Como podia desenvolver-se exitosamente, tendo em vista os métodos empregados, se, de uma população com pouco mais de 93 mil habitantes, por exemplo, em 1976, 52% eram crianças e adolescente e destes, 1⁄3 poderia considerar-se em estado de marginalização (Vogel, 2011)?
Estudos pioneiros sobre as instituições de abrigamento da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor paulista demonstraram que o seu “público” não era o filho-família das classes em que os homens proviam e as mulheres cuidavam, crianças e adolescentes desobrigados do trabalho cuja única responsabilidade é a dedicação aos estudos (GUIRADO, 1980; QUEIROZ, 1987). O menor era a irregularidade dessa criança e desse jovem inscrito no modelo nuclear burguês.
As infâncias e juventudes marcadas por clivagens raciais, sociais e geográficas foram alvos de uma política preconceituosa em relação às suas dinâmicas e sociabilidades. Pretas e pardas, em sua maioria, periféricas e em situação de vulnerabilidade social, foram consideradas abandonadas, “de rua”, “trombadinhas”. Num conceito: estavam em situação irregular em relação ao “modelo”. Suas existências atestavam, aos olhos da instituição, a incapacidade de suas famílias em provê-las e mantê-las consigo – quando não eram os próprios responsáveis quem demandavam a sua institucionalização, a fim de garantir-lhes a sobrevivência, o que de qualquer maneira comprovava a leitura opaca dos agentes do Estado.
A entrega: estigma da menoridade
Crianças, adolescentes e jovens não são menores. São submetidos, por definição, à condição de menoridade: dispositivo que convoca o controle, a correção e a violência como instrumento de sujeição. Ao reforçar, portanto, o dispositivo da menoridade que vinha sendo gestado ao longo do século XX, criador de uma distinção depreciativa entre “criança” e “menor”, a Funabem acabou construindo, também, um poderoso instrumento de estigmatização das infâncias e juventudes pobres: irregulares, raptadas pela institucionalização, judicializadas. Moldadas pela violência das instituições de abrigamento e internação, não estariam cada vez mais longe de serem crianças e jovens, cada vez mais “distintos”, menores, portanto?
A tortura e o encarceramento como práticas ordinárias, a formação dos esquadrões da morte que visava eliminá-los, o descaso com as crianças sendo violentadas de todas as formas possíveis no cotidiano das redes institucionais. Esta foi a entrega da ditadura militar no campo das infâncias e juventudes. Funabem dolorosamente longeva, que continua viva nas práticas do menorismo nosso de cada dia (MIRANDA, 2018).
Referências
DAMINELLI, Camila Serafim. Uma Fundação para o Brasil Jovem: Funabem, Menoridade e Políticas Sociais para infância e juventude no Brasil (1964-1979). Tese (Doutorado em História) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
GUIRADO, Marlene. A criança e a FEBEM. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1980.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014.
MIRANDA, Humberto. Menorismo nosso de cada dia. Empório do Direito, 01/10/2019.
QUEIROZ, José J. (Org.). O mundo do menor infrator. 3ª ed. São Paulo: Cortez - Editores Associados, 1987.
VOGEL, Arno. Do Estado ao Estatuto: Propostas e vicissitudes da política de atendimento à infância e adolescência no Brasil contemporâneo. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (Orgs.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 2011, p. 287-321.
Como citar este artigo:
DAMINELLI, Camila Serafim. A ditadura militar entregou o estigma da menoridade. História da Ditadura, 3 abr. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-ditadura-militar-entregou-o-estigma-da-menoridade. Acesso em: [inserir data].