A entrevista do general – e o que as/os historiadora/es têm a ver com isso?
A entrevista do general Eduardo Villas Boas para o pesquisador Celso Castro, publicada em livro pela editora FGV em fevereiro deste ano, já se tornou um documento histórico incontornável. O depoimento é especialmente importante para aqueles interessados em entender as origens do momento em que vivemos, quando a longa tradição de intervenção militar na política voltou a se manifestar. Grande parte da sua repercussão girou em torno do tweet escrito por Villas Boas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 2018. Mas muitos outros fios ainda podem ser puxados a partir do material.
Neste texto, quero explorar uma dimensão da entrevista diretamente relacionada com a prática das historiadoras e dos historiadores. Ao analisar o que Villas Boas chama de “ajuste histórico”, argumento que o depoimento do militar é um indício da força que determinadas agendas de pesquisa podem ter na luta contra a memória de apologia à ditadura que as Forças Armadas tentam construir.
Intitulado “Anistia, Comissão da Verdade e memória histórica”, o décimo capítulo do livro é dedicado às opiniões do general sobre as políticas de memória, verdade e reparação levadas adiante nas últimas décadas. Dentre elas, ganha mais destaque a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ainda que haja espaço suficiente para que Villas Boas dispare sua metralhadora também contra a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Em determinado momento do capítulo, Celso Castro faz a seguinte pergunta:
"Sua sensação é de que esses atos que envolveram a Comissão da Verdade, de Anistia, essa promoção [de Carlos Lamarca] e outros fatos que ocorreram eram uma espécie de revanchismo ou era, vamos dizer, um ajuste histórico, que isso ia passar? Qual era o sentimento?"
Copio na íntegra a resposta do general:
"Já abordamos o tema do que chamei de revanchismo ao contrário. Decorridos os governos Temer, e agora Bolsonaro, temos esperança de que essas questões fiquem para serem retomadas com maior isenção quando as gerações que os viveram já tenham passado. Me preocupa uma eventual volta ao poder pela esquerda e que ocorra o que disse Tayreland sobre os Bourbon: “Não aprendem e também não esquecem”.
Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais.Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações. Como você disse, adquirem um caráter de ajuste histórico.'" No início da resposta de Villas Boas, aparece a perspectiva de que as graves violações de direitos humanos cometidas na ditadura teriam sido tratadas, ao longo da Nova República, sem a devida “isenção”. Trata-se de uma consequência da ideia amplamente compartilhada entre os militares, de que com o fim da ditadura a esquerda teria sido capaz de impor a sua versão sobre o passado no debate público. Assim, uma narrativa enviesada sobre o período teria sido construída, na qual apenas os crimes dos militares ganharam destaque. Como contraponto a essa perspectiva, as Forças Armadas e seus representantes, da ativa e da reserva, sempre defenderam que seria preciso ver os “dois lados” da história. Essa crítica ganhou força durante os trabalhos da CNV, incessantemente acusada de “parcialidade”. Como essa questão não faz parte da proposta deste artigo, vou evitar entrar na discussão.
O que quero destacar é que o general retoma a ideia de “falta de isenção” na segunda parte de sua resposta. Aqui, porém, ele a vincula a um aspecto que até esta entrevista nunca tinha aparecido diretamente em falas públicas de militares: as pesquisas que se dedicam a estudar a ditadura para além da repressão política em seu sentido estrito (isto é, que vão para além de temas consagrados, como o movimento estudantil e a luta armada). Ao lado do argumento da “falta de isenção”, aparece a ideia de que esses novos relatos sobre o período “carecem de verossimilhança”.
Proponho que interpretemos esse comentário como indício do potencial que essas pesquisas têm de se contrapor à memória que os militares buscam defender sobre a ditadura – uma memória que não apenas relativiza, mas também legitima e até celebra a violência. No trecho, Villas Boas faz referência direta à investigação jornalística do repórter Eduardo Reina sobre crianças sequestradas pelo regime, que originou o livro Cativeiro sem fim. De maneira indireta, também traz à tona trabalhos que têm iluminado as violências do regime contra os povos indígenas – tema que ganhou relativo destaque durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, e que tem sido desenvolvido tanto por antropólogos quanto por historiadores.
E por que o general mobiliza a ideia de “falta de verossimilhança”? Ora, a afirmação de que indígenas foram alvos de um genocídio durante aquele período poderia parecer, a princípio, pouco verossímil, exatamente porque ela rompe com a memória historicamente construída sobre a ditadura. Na grande narrativa sobre o regime ditatorial, consolidada ao longo da Nova República por meio de filmes, documentários e testemunhos – mas também pela historiografia e pelas políticas de memória –, os indígenas não são personagens centrais. Ou nem mesmo são personagens. Assim como não o são a população negra, os moradores de favelas e periferias, as mulheres, as/os LGBTQIA+, os trabalhadores do campo. Isso porque nas memórias mais consagradas sobre a ditadura, todo o período de 1964-1985 acaba sendo resumido a um combate entre militares e militantes da luta armada.
Durante a democracia, a esquerda sempre caracterizou aquele momento como uma ditadura que deveria ser repudiada. Para direita – os militares inclusive – tratou-se de um período que exigiu a supressão de liberdades em nome da defesa da ordem. Contudo, mesmo com essa divergência fundamental, o fato é que essas duas grandes perspectivas se assentam sobre uma mesma noção limitada sobre quem foram os personagens do período. E foi precisamente essa memória limitada que abriu espaço para o surgimento de mitos como o da “ditabranda”.
Com isso, podemos voltar à fala do general Villas Boas. A despeito das enormes diferenças entre o tipo de trabalho que o jornalismo, a antropologia e a história se propõem a fazer, há algo em comum entre as pesquisas que ele ataca em seu depoimento. Todas mobilizam fontes pouco exploradas – sejam documentais, sejam testemunhais – para construir visões mais complexas sobre aspectos a ditadura que, até então, conhecíamos muito pouco. Como esses, são inúmeros os trabalhos que têm surgido nessa mesma direção, impactando positivamente a nossa historiografia do período.
Mas para além do impacto propriamente historiográfico, essas pesquisas e investigações que apresentam novas narrativas e novas histórias têm um efeito também sobre a memória social acerca do período. Quando se demonstra que milhares de indígenas foram assassinados no contexto das políticas de desenvolvimento e que milhares de camponeses foram mortos nos conflitos de terra; que esquadrões da morte e grupos de extermínio deixaram incontáveis corpos periféricos nas beiras de rios e estradas; que jovens negros eram presos, torturados e mortos pelas forças de segurança e seu racismo institucional; que sexualidades dissidentes foram perseguidas e violentadas; enfim, que os sujeitos e os grupos atingidos pela ditadura e por seus muitos tentáculos é muito maior do que o que conhecemos até hoje, então se torna mais difícil falar em “ditabranda”. Torna-se mais difícil, também, manter o silêncio e a apatia coletivos sobre esse passado.
Por isso, quando Villas Boas sugere que a essas pesquisas falta “isenção” e “verossimilhança”, ele deixa transparente, na realidade, um receio de que essas questões até agora pouco explorados sobre a ditadura comecem a vir à tona com mais força. Nesse sentido, quero sugerir para os colegas historiadores que nós tomemos a fala do militar como um sinal de qual caminho devemos seguir se queremos fazer uma história politicamente situada e interessada em disputar as narrativas sobre o passado a partir de um conhecimento sólido, embasado em análises criteriosas de fontes. Afinal, é um bom sinal quando desagradamos os generais que tanto fazem para manter sob o véu do esquecimento e da impunidade as violências que eles cometeram no passado.
Nós, pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam a investigar aquilo que parece “inverossímil”, precisamos ter certeza de que produzir esse incômodo naqueles que defendem a tortura e os torturadores é dar um sentido político aos nossos trabalhos. Revelar o que os donos do poder querem que seja esquecido é o caminho para que consigamos definitivamente construir uma memória sobre a ditadura que não mais tolere mitos.
Caso contrário, podemos imaginar a seguinte cena no futuro. O ano é 2070, e um ex-comandante do Exército é entrevistado. Fala, então, que são profundamente inverossímeis as pesquisas que tentam apontar como um capitão do Exército, no longínquo ano de 2020, nomeou para o Ministério da Saúde um general que não sabia a diferença entre o Amazonas e o Amapá, e que ambos haviam sido diretamente responsáveis pela catástrofe que deixou centenas de milhares de mortos naquele período. Para que Pazuellos e Bolsonaros não se tornem herois no futuro, é preciso desde já derrubar as estátuas ainda hoje existentes para Castellos Brancos, Médicis, Ustras e afins.
Crédito da imagem destacada: O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, participa de audiência pública na Comissão de Relações Exteriores do Senado. Geraldo Magela/Agência Senado. Wikimedia Commons.