Por uma história da segunda prateleira
Atualizado: 29 de abr. de 2021
Em A Origem do Mundo, Gustave Courbet transgrediu as convenções artísticas de sua época representando o sexo feminino em close, sem álibis, disfarces ou modéstia. Muito do que conhecemos hoje a respeito da história desse quadro é circunstancial e, embora novas teorias não cessem de surgir, a mais aceita é a de que ele teria sido encomendado em 1866 por um antigo embaixador turco chamado Khalil-Bey. De acordo com alguns relatos da época, a obra era mantida em um cômodo de seu apartamento em Paris, mal disfarçada sob um translúcido véu verde, até que a iminente falência o levasse a vendê-la. A partir daí, a tela teria seguido um percurso incerto, entre galerias e colecionadores, até ser adquirida por Jacques Lacan, em 1955. Na casa de campo do psicanalista, ela permaneceu numa moldura de fundo duplo, escondida sob uma versão surrealista elaborada por André Masson e intitulada Terre Érotique.
A primeira exibição pública do quadro viria a acontecer somente em 1988, em uma exposição no Museu do Brooklyn, em Nova York. Em 1995, com Lacan e Sylvia Bataille-Lacan já falecidos, a obra seria incorporada ao acervo do Musée d’Orsay, onde permanece até hoje, em um lugar de destaque.
A Origem do Mundo (1866) – Divulgação
A Origem do Mundo é uma obra icônica em muitos sentidos e sua trajetória, entre véus e porões até os holofotes do Musée d’Orsay, é bastante ilustrativa. Ela testemunha o quão fluídos podem ser os limites do moralmente tolerável nas sociedades ditas ocidentais e o quão determinantes são estes limites para o lugar que as representações do sexo e da sexualidade ocupam nas hierarquias sociais e estéticas.
Por mais ilustrativa que seja essa trajetória, no entanto, ela não é incomum. Assim como a polêmica tela de Courbet, por muito tempo, inúmeros textos, imagens e objetos eventualmente percebidos como imorais foram mantidos em fundos falsos e cômodos ocultos de discretos colecionadores, mas também em alguns dos mais importantes museus e bibliotecas do mundo. Eram os chamados museus secretos ou infernos. A Private Case, da Biblioteca Britânica, o Gabinete Secreto, do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, e o L’Enfer, da Biblioteca Nacional da França, são apenas alguns exemplos de acervos obscenos que foram mantidos a salvo do olhar público até muito recentemente. Foi a partir dos anos 1990 que boa parte dessas coleções – tal como A Origem do Mundo – se tornou acessível a qualquer pessoa que pudesse pagar pela entrada ou aceder aos acervos digitais pela internet, onde são facilmente encontradas.
Frontispício de uma edição de 1690 de A Academia das damas, Private Case (Biblioteca Britânica – Divulgação)
Primeiro catálogo do L’Enfer da Biblioteca Nacional da França, compilado por Apollinaire em 1911
A origem dessas coleções remonta ao século XIX, quando bibliotecários e compiladores se viram diante de um dilema: era preciso preservar o acervo mais completo possível de impressos e artefatos históricos, mas, ao mesmo tempo, convinha proteger a sociedade dos efeitos perniciosos atribuídos a alguns deles. O momento coincide com o que Lynn Hunt chamou de “a invenção da pornografia”: quando essa nova categoria classificativa surgiu e passou a ser empregada para designar as representações sexuais consideradas intoleráveis do ponto de vista moral ou estético. Nesse sentido, muito embora os objetos mantidos nos infernos e museus secretos pudessem ser de épocas, origens e materiais muito distintos, eles tinham em comum o fato de terem sido percebidos como potencialmente pornográficos em determinado momento.
Portanto, a ideia de pornografia é imprescindível para que possamos compreender o lugar reservado às representações e discursos sobre o sexo desautorizados pela moralidade vigente em determinada conjuntura histórica. Nesse sentido, cabe lembrar que a pornografia tem uma história. Pelo menos duas, para sermos exatos: há, por um lado, sua história enquanto categoria classificativa, que tem como palco a Europa do século XIX e, por outro lado, a das coisas percebidas como pornográficas, que antecede o termo. Ambas são capazes de nos revelar aspectos muitas vezes insuspeitos acerca das sociedades que produziram, consumiram e condenaram como pornográficos determinados materiais, discursos e comportamentos. Embora o rótulo da pornografia frequentemente remeta às representações de práticas e hábitos sexuais, sua análise nos permite refletir sobre questões muito além das relacionadas a gênero e sexualidade. Afinal, a cultura da obscenidade não é um fenômeno à margem, que se desenvolve à revelia de outras dinâmicas culturais, sociais e políticas, mas parte integrante delas.
Apesar disso, por muito tempo também os historiadores relegaram o tema a uma segunda prateleira, quando não ao silêncio absoluto. No decorrer do século XX, enquanto o debate público em torno da pornografia atraía escritores, críticos literários, sexólogos e legisladores, as pesquisas historiográficas sobre o tema seguiram pouco numerosas ou, na melhor das hipóteses, mal divulgadas. Felizmente, esse cenário vem se transformando nas últimas décadas. Talvez o exemplo mais conhecido seja o trabalho de Robert Darnton com os livros proibidos da França pré-revolucionária, mas grandes nomes como Carlo Ginzburg e Lynn Hunt já se dedicaram ao tema, sem contar as importantes pesquisas desenvolvidas nos campos da antropologia, da teoria literária e da linguística. Ainda assim, há muito por ser feito, especialmente quando pensamos que entre os trabalhos mais conhecidos prevalecem as análises circunscritas às experiências francesa, inglesa e, em menor escala, estadunidense e alemã. Disso resulta o silêncio em torno do que foi produzido, consumido e condenado como pornográfico em outras sociedades e a crença generalizada de que elas simplesmente importaram ou copiaram as tradições pornográficas mais conhecidas.
Compreender melhor o fenômeno da pornografia, inscrevendo-o em uma perspectiva histórica mais ampla, nos ajuda a refletir sobre questões ainda hoje muito atuais. Afinal, os limites do tolerável seguem em constante disputa e fluidez, como também demonstra a célebre A Origem do Mundo. Como vimos, foram necessários mais de cem anos para que a tela saísse das sombras para ornar um dos mais importantes museus do mundo. Isso foi possível porque uma série de transformações sociais e tecnológicas resultaram na flexibilização dos limites morais, abrandando o potencial obsceno da obra.[i]
No entanto, que a vagina realista de Courbet seja autorizada no museu, não significa que todas as vaginas por consequência também o sejam. Em 2014, a artista plástica Deborah de Robertis realizou uma performance sentando-se em frente ao famoso quadro e exibindo sua própria vagina diante do público. A polícia foi imediatamente acionada para interromper a apresentação e, enquanto a aguardavam, os seguranças tentaram evacuar a sala e criar uma barreira humana entre a artista e a plateia. Segundo Deborah, um deles chegou a perguntar se ela não achava a cena muito chocante para as crianças.[ii]
Deborah de Robertis, 2014 (Divulgação)
Esse episódio ilustra de maneira a exemplar a premissa de Walter Kendrick, para quem a história da pornografia, que se desenvolve no compasso dos limites morais de cada época e lugar, é um melodrama constantemente encenado: se novos atores substituem os antigos, os papéis prosseguem mais ou menos inalterados. Os contornos que determinam o lugar permitido ao sexo e suas representações em cada época e lugar são fluídos, mas persistentes, e fornecem matéria inesgotável para aqueles que pretendem compreender melhor as sociedades que os estabelecem.
Sobre a coluna
A coluna ‘A história pelo buraco da fechadura’ é dedicada à história do sexo, da sexualidade e suas representações. Neste espaço, vamos compartilhar reflexões, divulgar pesquisas, livros e filmes, além de documentos e fontes relacionados a esses assuntos. A ideia é fomentar no debate público questões ainda hoje envoltas em tabus, silêncios, polêmicas e, quem sabe, poder contribuir para que mais e mais historiadores se interessem pelo tema.
Notas
[i] Não o anularam completamente, uma vez que em alguns espaços ela ainda é alvo de interdito, como é o caso do Facebook, por exemplo, que não permite sua reprodução.
[ii] Artista fica nua em museu, em frente ao quadro ‘A Origem do Mundo’. Folha de São Paulo, São Paulo, 04/06/2014. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/06/1465157-artista-fica-nua-em-museu-em-frente-ao-quadro-a-origem-do-mundo.shtml. Acesso em 09/05/2020.
Referências
Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo, Cia das Letras: 1997.
Lynn Hunt. A invenção da pornografia: Obscenidade e as Origens da Modernidade. São Paulo: Hedra, 1999.
Peter Gay. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Walter Kendrick. El museo secreto: La pornografia em la cultura moderna. Colombia: Tercer Mundo, 1995.
Thierry Savatier. L’Origine du monde : histoire d’un tableau de Gustave Courbet. Bartillat, Paris : 2007.
Crédito da imagem destacada: Pã copulando com uma cabra, Gabinete Secreto – Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.
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