"A invenção do trabalhismo", 35 anos depois
Atualizado: 15 de ago. de 2023
Em 2023, uma das mais brilhantes obras de História Política do século XX completa 35 anos: A invenção do trabalhismo, defendida como tese por Angela de Castro Gomes em 1987, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do IUPERJ, e orientada por um dos maiores cientistas políticos do Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos, falecido em 2019.
Tal efeméride não poderia passar despercebida, pois o livro, reverenciado por acadêmicos especializados e vencedor de um prêmio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) em 1989, oferece um panorama rico para boas discussões em um âmbito não restrito ao meio universitário.
O objetivo da obra é discutir as bases do pacto social contido na ideia de “trabalhismo”. Angela de Castro Gomes rompe com a tese clássica, mas problemática, de “populismo”. O conceito pressupõe a ideia de um Estado como ente todo-poderoso que subjugava uma população atrasada e inconsciente de seu papel, necessitada de um tutor que pudesse guiá-la (Ianni, 1975; Weffort, 1978).
Em A invenção do trabalhismo, a preocupação da autora, que, habilidosamente, mescla seus conhecimentos em História e em Ciência Política, consiste em mostrar que as relações entre o Estado – especificamente os governos de Getúlio Vargas – e as massas vão além de uma visão unilateral e maniqueísta. Para Angela de Castro Gomes, havia um contrato implícito entre governo e trabalhadores, que consistia em uma troca material para estes (legislação trabalhista) e simbólica para aquele (visto e legitimado como “doador”).
O aspecto mais interessante do livro é observar que o reconhecimento dado a Vargas é resultado de uma política muito bem empreendida pelo Estado Novo (1937-1945), que mobilizou demandas e discursos construídos por trabalhadores brasileiros desde o início da República (1889), ao mesmo tempo em que procurava apagar essa autoria, vendendo uma imagem de originalidade.
A obra é dividida em duas partes. Na primeira, o período abarcado vai de 1889 a 1934, quando a “voz” estava com os trabalhadores, que procuravam meios de se organizar, ora apostando na via sindical ora na via partidária. Na segunda, que é a parte mais importante do livro, a análise recai sobre três anos apenas, de 1942 a 1945, trazendo uma abordagem rica e inovadora, que explica os fundamentos do “trabalhismo”.
A parte I é dividida em três capítulos. No primeiro, vê-se a força da doutrina socialista entre os trabalhadores, desde os primeiros anos da República até o início do século XX, com suas tentativas frustradas de criação de um partido político. No segundo capítulo, é a influência do anarquismo no movimento trabalhista que se torna a principal preocupação da autora, que detecta seu domínio até o começo da década de 1920, quando esta ideologia sofre uma violenta repressão, física – por meio da prisão e tortura dos anarquistas –, e simbólica – por meio da Igreja –, tema que ganha destaque no terceiro capítulo. O que mais chama a atenção nessa primeira parte é a tentativa de construção de um modelo de trabalhador como sinônimo de honestidade e representante do que seria o legítimo cidadão brasileiro, imagem buscada durante toda a Primeira República, tanto por socialistas como por anarquistas, e que seria retomada pelo Estado Novo anos mais tarde.
Já no capítulo IV, o primeiro da segunda parte, Angela de Castro Gomes delineia seu principal ponto de vista: pensar nos ganhos simbólicos do Estado Novo, obtidos pela ressignificação de uma política e de um discurso construídos pelos trabalhadores no período anterior. A autora se afasta das visões mais simplistas que só enxergavam uma relação de dominantes-dominados entre Estado e trabalhadores. A historiadora torna a análise mais complexa, mostrando que a adesão ao regime comandado por Vargas não veio só por meio da repressão, mas por incentivos de mobilização do trabalhador, principalmente nos sindicatos. Trecho significativo para o entendimento da proposta é reproduzido abaixo:
Não havia, neste sentido, mera submissão e perda de identidade. Havia pacto, isto é, uma troca orientada por uma lógica que combinava os ganhos materiais com os ganhos simbólicos da reciprocidade, sendo que era esta segunda dimensão que funcionava como instrumento integrador de todo o pacto (2005, p.180).
No capítulo seguinte, a historiadora e cientista política apresenta alguns fundamentos da ideologia buscada pelo Estado Novo. Dentre estes, o mais significativo é a insistência com que o projeto varguista procurou narrar o golpe de 1937: uma espécie de “recomeço” para o Brasil, completando o processo revolucionário iniciado em 1930, dando a ele um acabamento e uma finalidade.
O livro mostra como esse novo governo procurava se apresentar como uma alternativa tanto aos regimes totalitários como aos liberais, combatendo com veemência as ideias de “classe” e “partido”.
O capítulo VI é central para o livro, daí ser intitulado com o mesmo nome da obra: “A invenção do trabalhismo”. De forma minuciosa, Angela de Castro Gomes mostra como se criou a imagem de Getúlio Vargas como “pai”, “clarividente” e “doador”, que sabia das necessidades do povo Tal representação era muito veiculada nas rádios, principal veículo de transmissão de propaganda do governo. A autora também lança mão do conceito de “dádiva”, recorrente em trabalhos de antropologia, para explicar o pacto que havia entre trabalhadores e governo, que estabelecia implicitamente que “o povo tinha o direito de receber, e, portanto, o dever de retribuir” (2005, p. 232). De forma bastante pedagógica, o parágrafo final resume todas as “cláusulas” contidas nesse “contrato”. Segundo a autora:
“(...) o grande ‘segredo’ está na lógica que articulava este discurso [oficial]. Ele releu o passado das lutas dos trabalhadores sem ao menos mencioná-lo, estruturando-se a partir de uma ética do trabalho e da valorização da figura do trabalhador nacional. Era a esta figura – novo modelo de cidadão – que o discurso se destinava e era a ela que os benefícios sociais eram oferecidos como uma dádiva” (2005, p. 233).
Esse “novo modelo de cidadão” é apresentado no capítulo VII como aquele que rejeita a ociosidade. O trabalho era dignificador do homem, discurso que, como vimos, não era uma novidade do Estado Novo. É importante destacar que o trabalhador a quem o Estado se dirigia era, sobretudo, o brasileiro, em um governo marcado por políticas de limitação ao imigrante. Assim, o “cidadão brasileiro” deveria ser protegido, o que explica o surgimento da chamada “medicina social”, com cuidados da saúde e garantias contra acidentes no ambiente de trabalho, por exemplo.
O último capítulo mostra a derrocada do Estado Novo, que, submetido a uma forte pressão interna e externa, tornou iminente a necessidade da abertura democrática. A autora apresenta ao leitor um documento até então inédito: a descoberta de um “plano B” no arquivo de Getúlio Vargas, que mostrava a tentativa de controle do regresso à democracia por parte do governo. No “plano B” estava delineado cuidadosamente como deveria se dar a questão eleitoral, inclusive preocupando-se com o alistamento de votantes, o que desembocaria, no final, na reeleição de Vargas. Como se sabe, isso não chegou a acontecer, pois com o avanço das oposições nacionais e internacionais ao seu governo, o próprio Vargas seria alvo de um golpe que o retiraria do poder.
Assim, o livro oferece uma leitura de fácil acesso a pessoas que não estão inseridas no mundo acadêmico, sem jamais perder seu rigor intelectual. Ele é importante também por ajudar a combater diversas ideias presentes no senso comum, que vê o Brasil como o país do “atraso”, sujeito a governos “populistas”, sendo integrado por um povo “bestializado” ou, ainda pior, “sem povo” (Carvalho, 1987). É por isso que, 35 anos depois, o conceito de “trabalhismo” continua se reinventando em novas leituras e abordagens, e mostra-se cada vez mais instrumentalizável, sendo essencial para se conhecer boa parte da História do Brasil no século XX.
Referências:
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Como citar este artigo:
RIBEIRO, Guilherme Leite. "A invenção do trabalhismo", 35 anos depois. História da Ditadura, 14 ago. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-inven%C3%A7%C3%A3o-do-trabalhismo-35-anos-depois. Acesso em: [inserir data].