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A inviabilidade do Marco Temporal: uma análise a partir das políticas indigenistas da ditadura

Atualizado: 14 de dez. de 2023

Entre agosto e setembro de 2023, os juízes do Supremo Tribunal Federal se reuniram em Brasília para a votação sobre a aprovação ou não da tese jurídica do Marco Temporal, que acabou sendo rejeitada. Na prática, a tese defende que as populações indígenas só poderiam reivindicar o direito à ocupação e à demarcação de suas terras caso as ocupassem ou disputassem legalmente em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal.


STF abre sessão e retoma julgamento sobre marco temporal
STF abre sessão e retoma julgamento sobre marco temporal (30/08/2023). Autor: Carlos Moura. Fonte: Supremo Tribunal Federal. Wikimedia Commons.

Sob diversos aspectos, que apelam para as reflexões de Ciências Humanas como a Antropologia e a História, o Marco Temporal constitui nada menos do que uma aberração. Apesar do histórico de violências sofridas pelas comunidades indígenas, que pode ser rastreado até a chegada dos primeiros colonizadores europeus nas Américas, proponho ater-me aos pontos principais da política indigenista da ditadura militar. Estes contribuem para invalidar a tese do Marco Temporal, apontando como as ações do Estado brasileiro, entre os anos de 1964 e 1985, produziram uma grande distorção ao distribuir várias comunidades indígenas em seus territórios originais, impactando gravemente seus contingentes populacionais.


O projeto modernizador e o discurso oficial sobre os indígenas


O primeiro grande plano de ação destinado a implementar as reformas modernizantes no período da ditadura foi o Programa de Integração Nacional (PIN), aprovado em junho de 1970. O PIN resultava da compreensão quanto à necessidade de acelerar o desenvolvimento econômico do país, aliando o incentivo às grandes obras do regime – através da destinação de recursos financeiros – aos interesses em solucionar os problemas sociais brasileiros. Inicialmente, o PIN destinava recursos para incentivar a construção de rodovias e de outros sistemas de transporte, como portos fluviais.


Entre os primeiros passos necessários para viabilizar a implementação do projeto, estava a organização de uma campanha capaz de transmitir sua importância para o país. Nesse sentido, filmetes da Agência Nacional assumiram posição de destaque: obras de curta-metragem que retratavam aspectos fundamentais da política da ditadura. As películas só retratavam temas que fossem relevantes para o regime, apelando constantemente para um discurso de exaltação quanto à atuação do governo.


Fila para distribuição de sopão em terra indígena de Nonoai, na década de 1970. “Índios, Memória de uma CPI”, de Hermano Penna (Reprodução/Youtube)
Fila para distribuição de sopão em terra indígena de Nonoai, na década de 1970. “Índios, Memória de uma CPI”, de Hermano Penna (Reprodução/Youtube)

Curiosamente, os filmetes tornaram as comunidades indígenas invisíveis ao tratarem do projeto modernizador da ditadura e de suas grandes obras. Ao contrário do que se poderia supor, a quase inexistência de representações dos indígenas, durante a década de 1970, nos diz muito acerca do lugar atribuído pela ditadura a esses grupos em uma sociedade em plena transformação. Existem peças nas quais os indígenas são representados, mas sua presença, mesmo nestas películas, é marginal. Sendo que, em geral, sua aparição não dura mais do que alguns segundos e costuma ocorrer em condições de assistência médica fornecida pelo governo, em um claro esforço de demonstrar a ação social do regime sobretudo na região amazônica. Os indígenas são comumente apresentados como parte do ambiente e desprovidos de qualquer foco tanto nos textos quanto nas imagens integrantes dos filmetes.


A presença indígena nas películas, quando existia, era inconstante e secundária. Além disso, a narrativa presente nos filmetes produziu um discurso legitimador das obras de desenvolvimento que contrastava com os direitos dos povos originários. Eram comuns frases como “Amazônia, terra sem gente”, “vazio demográfico só comparável ao das desoladas regiões polares”, entre outras. Essa abordagem insistia na retórica de que a Amazônia seria uma região despovoada, aguardando os colonos para ocuparem-na. Contudo, ignora-se a existência de diversas etnias indígenas historicamente habitantes daquelas áreas, cujas demandas e direitos foram suprimidos em meio à defesa da modernização.


A opção por retratar os indígenas de forma superficial, fazendo uso de sua dependência em relação à assistência prestada pelo Estado, atendia a três demandas do regime no período: demonstrar sua função assistencialista, justificar o esforço modernizador e colonizador da Amazônia, e amenizar o problema surgido com as investigações da Comissão de Inquérito de 1967. Os indígenas foram transformados em parte integrante da Floresta Amazônica, pois não havia interesse em explorar ou aprofundar seus hábitos, sua cultura ou sua organização social. Esse dado se torna explícito quando as representações dos trabalhadores rurais deslocados para as regiões de obras e alocados nas terras fornecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária são investigadas.


Os filmes retratam, em sua enorme maioria, a rotina de obras em meio à floresta aparentemente desabitada, enquanto as narrações se dedicam a consolidar uma noção sobre a inexistência de seus moradores. O investimento na produção de filmetes que focalizassem a questão do trabalhador migrante, marginalizando as referências aos indígenas, revela a intenção do regime em exaltar um conjunto específico de valores. Entre eles, poderíamos citar a importância do trabalho, dos valores cristãos, da família nuclear tradicional, do nacionalismo e do respeito às instituições – todos eles tidos como ausentes nos índios.


O cotidiano dos trabalhadores era amplamente retratado nas produções da Agência Nacional, sendo o eixo central de diversos materiais audiovisuais da instituição. Nessas peças, eles eram exibidos trabalhando a terra, sendo consultados por médicos e dentistas, frequentando a igreja, as crianças na escola e, inclusive, presentes no interior de suas casas, construídas e entregues pelo governo militar. Alguns indivíduos específicos, como a criança batizada como Samuel Transamazônico, eram tratados por seus nomes próprios e tinham suas trajetórias de vida brevemente retratadas nos filmetes. Transpunham, portanto, o limite da impessoalidade imposto aos outros grupos sociais representados em tela.


Nair Benedicto/N-imagens: Tucumã, na Amazônia, 1985.
Nair Benedicto/N-imagens: Tucumã, na Amazônia, 1985.

A opção por evitar apresentar as populações indígenas em suas “notícias sobre o progresso” significa também uma vitória dos conceitos raciais estereotipantes e característicos das visões historicamente construídas sobre os indígenas pela sociedade considerada “civilizada”. Esses povos tradicionais eram vistos como atrasados e simbolizavam o extremo oposto da modernização e do desenvolvimento pretendidos pela ditadura. Além disso, não seria interessante para o regime abordar amplamente a questão indígena, restringindo-a a comentários pontuais e a poucos momentos em tela. Seria, inclusive, recomendável que se evitasse exibir sua figura, eximindo-se de “lembrar” sobre sua existência e real situação à grande massa situada nos centros urbanos.


No “jogo de esconde” da ditadura com os indígenas, a campanha de divulgação das obras do Programa de Integração Nacional investiu no discurso sobre a quase inexistência das populações tradicionais. Quando exibidos, atendiam aos interesses do Estado ao demonstrar medidas sociais de apoio médico aos povos isolados da floresta. Assim, nunca foram tratados enquanto grupos autônomos cujos direitos deveriam ser respeitados.


Certidões negativas e remoções forçadas


Entre 1969 e 1970, o governo brasileiro iniciou uma grande expansão em direção aos interiores nacionais, tendo como alvo principal do seu esforço a região amazônica. As estradas e rodovias eram o marco de um processo de expansão e modernização que, segundo defendia o regime, desenvolveria o Brasil e o tornaria finalmente o “país do futuro” há muito prometido. Para os defensores do plano, a realização do projeto era uma questão nacionalista e todas as ferramentas necessárias para viabilizá-lo seriam utilizadas.


Provavelmente, um dos maiores entraves à implementação desses projetos à época era a ocupação dos territórios, alvo do esforço modernizador por comunidades indígenas. Para solucionar esse impasse, foram adotadas estratégias, muitas vezes arbitrárias, elaboradas entre o governo federal e a Funai de forma a permitir o avanço das máquinas. Entre as práticas mais comuns estavam as remoções forçadas, ou seja, o deslocamento ostensivo de grandes contingentes populacionais para regiões mais distantes ou para reservas indígenas. Sob o ponto de vista da Antropologia, as remoções forçadas podem ser enxergadas como uma forma de violência cultural, afinal atingem diretamente uma das bases da estrutura social e cultural desses povos: sua relação com seus territórios originários.


Para todos os efeitos, as remoções também eram uma forma de violência física, caracterizadas pelas chamadas “marchas da morte”, quando muitos indígenas, debilitados pelas doenças trazidas por agentes do Estado e sob condições precárias, eram forçados a longas caminhadas até seu destino. Os índices de mortes eram elevados nessas ações, o que não impediu sua prática por parte do governo.


Após a remoção das comunidades, era necessário atestar a suposta inexistência de indígenas nas regiões a serem exploradas. O instrumento burocrático utilizado pela Funai para permitir a realização dos empreendimentos da ditadura em territórios alegadamente ocupados por indígenas era a produção e emissão das chamadas “certidões negativas”. Tais certidões eram documentos que atestavam a inexistência de comunidades indígenas que fossem possivelmente ameaçadas pela realização de obras ou pelo estabelecimento de comunidades colonas.


Ainda nos anos 1970, sertanistas, indigenistas e antropólogos já denunciavam a emissão indiscriminada de certidões negativas, e afirmavam que muitas delas não eram coerentes com a presença de indígenas na região. Em 13 de março de 1972, o sertanista da Funai Apoena Meireles criticava publicamente o Incra por estabelecer assentamentos de colonos em terras indígenas que deveriam ser reservadas a esses povos.[1] Em 20 de maio do mesmo ano, o sertanista Antônio Cotrim denunciava à Folha de S. Paulo que as certidões eram emitidas para terras em que havia ocupação de comunidades, permitindo que fossem exploradas por agropecuárias e colonizadoras (VALENTE, 2017, p. 101).


As empresas privadas representavam importantes agentes na relação entre o Estado brasileiro e as populações indígenas. Para executar suas obras, o governo utilizava setores públicos como o Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER), mas também contratava empresas privadas, em sua maior parte sociedades anônimas chamadas de “colonizadoras”, encarregadas da tarefa de construir instalações, atrair e assentar os colonos que se deslocavam para a região, além de dar condições para sua subsistência.


A antropóloga Denise Maldi observou que, para justificar a invasão e exploração das terras do Parque Indígena do Aripuanã (PQIA), funcionários de uma empresa de nome Colonizadora Itaporanga S/A distribuíam presentes para os indígenas. Dessa forma, atraiam-nos gradualmente para fora da área do parque, buscando em seguida alegar que não havia indígenas na região (NEWLANDS, 2007, p. 88). A Itaporanga promoveu invasões de terras indígenas entre 1971 e 1976, assentando diversos colonos em território demarcado. Apesar das frequentes denúncias feitas pelo presidente do Parque Indígena à Funai, a empresa só foi condenada em processo judicial anos depois e a maior parte dos colonos nunca foi removida das terras do PQIA.


Conclusão


Recomendo ao leitor que investigue ainda mais a fundo o tema das prisões arbitrárias de indígenas sob a ditadura. O trabalho de Gustavo Simi (2017) sobre o Reformatório Indígena Agrícola e a Guarda Rural Indígena é de valiosa contribuição para o debate. Já o caso das certidões negativas está bem documentado no artigo “Quando a ditadura brasileira negava o direito de existir ao indígena”. Nele, o historiador Carlos Benítez Trinidad traça uma breve trajetória de várias comunidades afetadas pela emissão desses documentos no período. Sobre o tema da territorialidade na Antropologia, diversos trabalhos são fundamentais, mas destaco as produções de João Pacheco de Oliveira (1998). Para uma leitura aprofundada sobre as complexas relações entre ditadura, Funai e povos indígenas, indico o artigo “Violência estatal e resistência indígena na Primeira República e na ditadura civil-militar brasileira”, de minha autoria (EVANGELISTA, 2022).


Dito isso, importa observar que, se as remoções forçadas e as certidões negativas foram práticas do próprio governo brasileiro, cabe questionar a validade de um argumento jurídico que limita o acesso à terra mediante sua ocupação em 1988. Se a ditadura, representando o próprio Estado brasileiro, expulsou e alienou as terras que historicamente pertenciam aos indígenas, pode esse mesmo Estado determinar a viabilidade de processos que visem à recuperação de territórios tradicionais? Cabe-lhe, ainda, limitar e cercear a possibilidade de tantos povos disputarem judicialmente o direito às terras em que seus antepassados viveram e das quais foram autoritariamente e ilegalmente expulsos?


O argumento central segundo o qual trabalho a inviabilidade do Marco Temporal está assentado na seguinte conclusão: se o Estado brasileiro foi o responsável direto por políticas como as remoções forçadas de comunidades indígenas de seus territórios originais, não cabe a ele determinar de forma arbitrária quem são os povos que têm ou não o direito a reivindicar a restituição desses mesmos territórios.

 

Nota:

[1] “Apoena Meirelles é afastado dos cinta-largas porque exigiu retirada de colonos”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 mar. 1972, p. 22.


Referências: EVANGELISTA, Breno Luiz Tommasi. Resistir nos subterrâneos: o Relatório Figueiredo e o desenvolvimentismo na ditadura civil-militar brasileira. Tese de Conclusão de Curso em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.

GOMES, Paulo Cesar; BENITEZ TRINIDAD, Carlos. A questão indígena durante a ditadura militar brasileira e a opinião pública estrangeira em perspectiva transnacional. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 14, n. 35, jan./abr. 2022.

NEWLANDS, Lilian. Apoena. o homem que enxerga longe. Memórias de Apoena Meirelles, sertanista assassinado em 2004. Goiânia: Editora da UCG, 2007.

OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). Indigenismo e Territorialização. Poderes, Rotinas e Saberes Coloniais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.

SIMI, Gustavo Araújo. Reformatório e polícia indígena: a experiência de fardamento e disciplina de índios durante a ditadura. 128 f. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 2017.

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas. História de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


Como citar este artigo:

TOMMASI, Breno. A inviabilidade do Marco Temporal: uma análise a partir das políticas indigenistas da ditadura. História da Ditadura, 27 nov. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-inviabilidade-do-marco-temporal-uma-analise-a-partir-da. Acesso em: [inserir data].

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