A maldição de Cassandra
Atualizado: 29 de jan. de 2021
Nos anos 1970, a escritora Cassandra Rios consolidou a reputação de ser a autora mais lida e, simultaneamente, a mais proibida do Brasil. Tendo sido a primeira mulher a alcançar a marca de 1 milhão de títulos vendidos e a única no país a viver exclusivamente de direitos autorais – um feito incomum inclusive entre os escritores homens –, Cassandra viveu, apesar disso, em uma espécie de margem. O tema recorrente de seus livros era a descoberta e as desventuras amorosas entre personagens que frequentemente fugiam à norma heterossexual, em especial, mulheres lésbicas. Como não faltavam descrições detalhadas dos beijos, carícias e peripécias sexuais, sua obra foi amplamente percebida como pornográfica. Graças a isso, a autora foi sistematicamente ignorada pela crítica especializada, respondeu a inúmeros processos por ultraje público ao pudor e atingiu recordes também em livros censurados. No final dos anos 1970, trinta e seis dos seus quarenta e sete títulos até então publicados já haviam sido proibidos de circular.
Cassandra foi o pseudônimo usado por Odete Rios, nascida em 1932 na capital paulista, filha de uma família espanhola, burguesa e católica fervorosa. Em posse de um documento falso que atestava sua maioridade, publicou aos dezesseis anos seu primeiro livro, A volúpia do pecado (1948), com dinheiro emprestado pela mãe Dona Damiana, a quem não agradava que a filha trabalhasse fora. A trama narrava a história de amor entre duas jovens internas de um colégio de freiras e o sucesso de vendas garantiu o primeiro contrato com uma editora. A partir daí, Cassandra não pararia mais de escrever.
Chegou a publicar quatro títulos inéditos por ano e como seus livros desapareciam das livrarias em questão de dias, eram reeditados dezenas de vezes. Não tardou para que o teor de seus enredos e as descrições realistas das práticas sexuais lhe causassem problemas com a lei. Em janeiro de 1962, Cassandra seria processada por ultraje ao pudor pela publicação de Eudemônia, romance que lhe renderia outros dezoito processos nos anos seguintes. Entre arquivamentos e reaberturas, o caso culminou no pagamento de uma multa, a proibição de oito dos dez livros até então publicados e, embora não tenha sido efetivamente presa, a autora chegou a receber voz de prisão. Apesar dos pesares, ela prosseguiu sendo um sucesso editorial até o final dos anos 1970.
Ao que tudo indica, a obra de Cassandra Rios foi considerada pornográfica por amplos setores da sociedade. Pelos censores e juízes, que proibiram a circulação de seus livros reiteradas vezes; por críticos e colegas de ofício, que com raras exceções a ignoravam solenemente; e pelos editores e livreiros, que não se furtavam a explorar o teor sexual de suas narrativas em capas e reclames. Diante disso, não seria exagerado supor que ao menos uma parte de seu público também era atraída pela promessa de uma leitura picante, dada toda a publicidade – direta e indireta – em torno de seus enredos.
A própria Cassandra, no entanto, passaria a vida rejeitando veementemente o rótulo e parecia compreender que esse era um grande empecilho para o seu reconhecimento enquanto escritora. Em diversas entrevistas, ela endossou a opinião de que literatura e pornografia eram categorias não apenas distintas, mas incompatíveis, como quando declarou que sua “intenção” não era “fazer pornografia”: “É fazer literatura mesmo”. De acordo com a sua perspectiva, a pornografia seria “a intenção deliberada de chocar”, uma forma de “corrupção”, de “prostituição impressa”, o “sexo pelo sexo”, enquanto nos seus livros o sexo ocorria “em função do amor, para realizá-lo plenamente e sem preconceitos”. Assim, a autora acusava aqueles que percebiam pornografia em obra de não serem leitores, mas “folheadores”, que a criticavam sem jamais a terem lido integralmente.
Defender-se da pecha pornográfica significava reivindicar-se enquanto escritora, mas também como sujeito moral. A autora definiu-se, em diversas ocasiões, como uma “moralista intransigente e profundamente religiosa”. Para ela, era muito importante que Cassandra e Odete fossem percebidas como seres distintos, o que refletia sua obstinação em distanciar sua vida, personalidade e hábitos dos de seus personagens. Reservada, costumava se irritar quando algum jornalista insistia em temas de foro íntimo, por exemplo a sua lesbiandade, que embora não fosse exatamente um segredo, jamais foi assumida publicamente.
A postura de Cassandra frente à questão da pornografia, longe de ser uma contradição, encontra paralelo em uma longa lista de escritores que, nos últimos cento e cinquenta anos, procuraram defender sua obra e a si próprios das consequências da pecha pornográfica. Um bom exemplo é o de Carlos Zéfiro, contemporâneo de Cassandra Rios e autor dos célebres catecismos, que refutou até a morte o argumento de que suas narrativas eram pornográficas.
Os paralelos entre os dois nos permitem ainda algumas reflexões. Ao contrário de Cassandra, que apesar do pseudônimo era uma figura pública que estampava os jornais, Zéfiro manteve o anonimato até 1991. Seu receio em revelar-se era o de perder o cargo público – e depois, a aposentadoria – por conduta indecorosa. Uma vez publicada a sua identidade, entretanto, Alcides Caminha – o homem por trás de Zéfiro –, não tomou os mesmos cuidados em separar criador de criatura. Nas poucas entrevistas que deu, declarou que a inspiração de seus enredos era sua própria vida de boêmio e viajante.
O recorte de gênero, portanto, me parece fundamental para que possamos compreender a obra de Cassandra Rios a partir de uma perspectiva mais ampla, que a considera como parte de uma cultura pornográfica brasileira. Embora ela não tenha sido a primeira a ser rotulada como pornógrafa no país, uma vez que foi precedida por figuras como Gilka Machado e, em seu próprio tempo, dividia os holofotes com Adelaide Carraro, esse é um elemento que merece ser ressaltado. Historicamente, a literatura compreendida como pornográfica – por muito tempo anunciada no Brasil como leitura para homens – foi um território interditado para mulheres leitoras e sobretudo escritoras.
Em sua última entrevista, concedida à Revista TPM em 2001, perguntaram se Cassandra achava que seus livros causavam mais escândalo por terem sido escritos por uma mulher. A resposta foi taxativa: “Ah, sim, sem dúvida. Fui massacrada por isso. Desde os primórdios da civilização a mulher luta pelo direito de falar, de pensar. Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada”.
Por fim, cabem alguns comentários sobre o papel desempenhado pela autora nas memórias elaboradas em torno da ditadura iniciada com o golpe civil-militar de 1964. Tal como Zéfiro, Cassandra Rios foi muito popular e amplamente percebida como pornográfica entre os anos 1950 e 1980 e, a partir de então, experimentou um gradual processo de esquecimento. No decorrer desse movimento, começaram a ser elaboradas determinadas memórias em torno de ambos os autores e, partir delas, o potencial pornográfico de suas narrativas foi ressignificado.
O fenômeno se explica, em parte, pela própria redefinição dos limites morais na sociedade e pela popularização de novas mídias no entretenimento de cunho sexual, como o cinema, a TV e a internet. Mas, além disso, é interessante notar como, no decorrer desse processo, a memória em torno desses autores tende a confundir-se com a memória da própria ditadura militar. De acordo com essa perspectiva, eles teriam sido perseguidos pelos órgãos de censura por desafiarem a agenda moralizante do regime e são apontados, portanto, como ícones da resistência moral do período. Essa não é uma associação descabida. Sabemos que os governos militares defendiam pautas morais conservadoras, o que repercutia em políticas moralizantes, como as de censura, por exemplo. No que diz respeito à obra de Cassandra Rios, sabe-se que ela foi efetivamente censurada durante o regime militar e não podemos, além disso, negar o potencial transgressor de uma mulher, lésbica, que a despeito dos sucessivos interditos prosseguia escrevendo e publicando narrativas que atentavam contra os valores morais mais amplamente difundidos durante uma ditadura.
Mas não podemos esquecer também que Cassandra lançou seu primeiro livro em 1948 e começou a estampar as páginas policiais em 1962. Sua produção, sucesso e a censura dos quais foi alvo antecedem, portanto, ao golpe civil-militar de 1964. De igual maneira, as políticas moralizantes implementadas pelo regime e seus órgãos de censura não parecem ter impactado a popularidade da autora, que bateu o recorde de 1 milhão de exemplares vendidos nos anos 1970. Além disso, a reabertura política e a liberação das obras censuradas não resultaram, como esperava a própria Cassandra, em um novo fôlego para a sua fama, que só fez decrescer a partir de meados dos anos 1980.
Isso não significa que o regime militar e a censura moral praticada no período não tiveram impacto, inclusive econômico, na vida da autora. O que pretendo destacar é que, embora a censura moral – assim como todas as formas de censura – seja comumente atribuída aos regimes autoritários, a sociedade brasileira possui uma longa tradição de defesa de valores morais conservadores, que atravessa diversos períodos da nossa história.
Além disso, a indiferença de boa parte dos intelectuais e artistas de esquerda em relação à severa censura sofrida por Cassandra Rios são indicativos de que, mesmo entre setores tidos como progressistas e libertários, a questão das moralidades pode ser problemática. Bom exemplo disso foi o episódio do “Manifesto dos Intelectuais”, bastante revelador do fato de que a intelectualidade brasileira do período não fazia questão de ter Cassandra em suas trincheiras. O manifesto repudiava a “sequência de inexplicáveis arbítrios” praticados pela censura e foi entregue em janeiro de 1977 ao Ministro da Justiça do governo Ernesto Geisel, Armando Falcão. Entre os mais de mil signatários do documento, estavam figuras como Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Cassandra Rios, a escritora mais censurada do período que, apesar disso, teve seu nome retirado da versão final entregue ao ministro.
O percurso de Cassandra Rios é, como vimos, repleto de paradoxos. Acusada de corruptora ou louvada como transgressora moral, essa autora transitou entre a pornografia e a literatura, a popularidade e o esquecimento e mobilizou discursos – muitos dos quais, elaborados por ela própria – que nos permitem compreender determinadas dinâmicas sociais em torno da pornografia. Sua trajetória revela assim a ambiguidade e a constante fluidez do rótulo pornográfico, seu espaço nas hierarquias morais e estéticas de cada sociedade e sua capacidade de coroar ora algozes, ora redentores.
CIRILO, Ione. Cassandra Rios: Um milhão de leitores, 36 livros apreendidos. In. Jornal Pasquim. Ano VIII, nº 373, Rio de Janeiro, 1976, p. 6
Em 1970, apenas Jorge Amado e José Mauro Vasconcelos viviam exclusivamente de direitos autorais no Brasil. Cassandra Rios. Revista Realidade, março de 1970, p. 116.
Como demonstra Kyara Vieira, embora a maioria dos livros de Cassandra seja protagonizado por personagens lésbicas, há também personagens hétero, homo e transexuais. Vieira, Kyara Maria de Almeida. “Onde estão as respostas para as minhas perguntas”?: Cassandra Rios – a construção do nome e a vida escrita enquanto tragédia de folhetim (1955 – 2001). Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, 2014, p. 22.
Em 1980, entretanto, todos já haviam sido “anistiados”. SOBRINHO, Walterson Sardenberg. Cassandra Rios: “sou moralista intransigente”. Manchete, n° 1.483, 20/09/1980, p. 22.
Cassandra Rios. Revista Realidade, março de 1970, p. 116.
Quando foi condenado pela primeira vez, o livro estava em sua 10° edição. GANDARA, Nello Pedra. Cassandra Rios. Manchete, n° 1.176, 02/11/1974, p. 55.
GANDARA, Nello Pedra. Op. Cit., p. 55.
Em 1974 a revista Manchete noticiou que Cassandra recebia, mensalmente, 20 mil cruzeiros de direitos autorais. GANDARA, Nello Pedra. Op. Cit., p. 57.
Yes, nós somos bacanas. Manchete, n° 845, 19/06/1968, p. 134.
Cassandra Rios. Revista Realidade, março de 1970, p. 122.
Cassandra Rios: “assim, até a Bíblia é pornográfica”. Lampião da esquina, outubro de 1980, p. 6.
SOBRINHO, Walterson Sardenberg. Op.Cit., p.23.
Jornal do Brasil, 15/11/1991, p. 6.
Cf. AMARAL, Pedro. Meninas más, mulheres nuas: as máquinas literárias de Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Rio de Janeiro: Papéis selvagens, 2017.
LUNA. Fernando. A perseguida. Revista Tpm. São Paulo: Trip Propaganda e Editora, n.3, jul.2001, p. 5.
Em algumas entrevistas, a autora relata problemas com a censura desde 1954. Cassandra Rios ainda resiste. Lampião da esquina, 05/10/1978, p. 10.
Um paradoxo interessante é que a escritora foi laureada pelo Estado em dois momentos durante a ditadura: em 1964 recebeu a Cruz de Mérito Social e, em 1966, foi homenageada pela Secretaria de Educação de São Paulo. Cassandra Rios ainda resiste. Lampião da esquina, 05/10/1978, p. 10.
A partir de 1880, seriam publicanos apenas mais cinco livros de Cassandra, eles e Crime de Honra (2005), que é póstumo. Ibdem, p. 21.
De acordo com sua sobrinha, a autora, que chegou a ter uma coleção de carros e casas, foi à falência em 1976, quando a maior parte de seus livros estava proibida. MODELI, Laís. 55 anos do golpe militar: A história de Cassandra Rios, a escritora mais censurada da ditadura. BBC News Brasil, São Paulo, 31 de março de 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47756468. Acesso em 12/07/2020.
É sabido, por exemplo, que boa parte da legislação voltada para a proteção da moral e dos bons costumes no país foi elaborada em períodos democráticos e, não raramente, com forte apoio popular. Cf. FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 251-286; CARDOSO, Erika. “E como não ser pornográfico?”: usos, sentidos e diálogos transnacionais em torno da pornografia no Brasil (1880-1924). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2019. FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 251-286; CARDOSO, Erika. “E como não ser pornográfico?”: usos, sentidos e diálogos transnacionais em torno da pornografia no Brasil (1880-1924). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2019.
"Manifesto dos Intelectuais" pediu o fim da censura em janeiro de 77. Folha de São Paulo, 03/04/1994. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/brasil/27.html. Acesso em 04/07/2019.
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