A nuvem negra da despedida de Gal Costa
Atualizado: 26 de set. de 2023
Demorei para colocar as ideias em ordem e para refletir sobre a perda inesperada da eterna musa profana e fatal do desbunde. Não que eu seja importante ou que a conhecesse pessoalmente. Minto, a “conheci” de maneira aleatória em um leilão em que trabalhei onde ela ria com aquela sua risada rouca de cabeça levantada ao ver o preço absurdo das “antiguidades” dos anos 1950 expostas. Lembro de ela falar para a amiga que ela também já era antiguidade, mas que podia ser leiloada por muito menos. Achei genial a ironia de quem não se leva a sério. Mas já divago. Demorei para colocar minhas emoções em ordem e refletir sobre a perda de Gal Costa. Como boa parte das bichas nascidas nos anos 1990, ela fez parte do meu desenvolvimento. Sim, há quem não goste, há quem prefira fingir que não, há quem torça o nariz, mas a verdade é que Gal Costa foi um ícone gay, uma fonte de inspiração para muitos da miscelânia da comunidade LGBT desse país: homens, mulheres, bichas, sapatões, travestis, transexuais.
Quando criança, o que chegava em mim eram as baladas românticas classudas que toda dona de casa amava, como Chuva de Prata, Azul, Negro Amor e Meu Bem, Meu Mal. Achava fino, muito elegante. O próprio nome Gal Costa me soava como alguma coisa luxuosa – sentimento vindo talvez de ver minha mãe se arrumando para sair à noite. Ao mesmo tempo, lembro da voz dela em ritmo descontraído, cantando sobre a margarina, sobre as agruras do amor, de samba misturado com o apito da panela de pressão da minha vó cozinhando feijão de manhã.
Depois descobri outra Gal – essa bem mais interessante. Eu era um pré-adolescente – quatorze anos, talvez – desengonçado, com os hormônios mudando meu corpo e me transformando em outra coisa que não sabia o que era ou se era eu mesmo. Vi uma reprise do especial Profana passando aleatoriamente na madrugada em algum canal – talvez na TV Cultura. No começo dos anos 2000, Gal Costa era coisa antiga, velharia de mãe ou até de vó. No meu caso, era das duas – mas eu amei. Amei intensamente. Sempre gostei de velharia mesmo. Ah, meu bem, quando vi aquela mulher com aquele cabelo cacheado cheio, de cara empoada em branco, olhos cheios e borrados de lápis preto, passando batom vermelho enquanto cantava meio ébria, meio debochada o começo de Meu Nome é Gal, na abertura do especial da TV Manchete de 1985 e reprisado em alguma madrugada de 2004 ou 2005...
Ah, meu bem! Alguma coisa bateu ali. Bateu bem no peito da bicha que ali ainda era gestada. Algum click na minha cabeça de pré-adolescente espinhento e em crise. Quis ser aquela mulher, desejei aquela mulher. Misto de tesão com querer ser. Porque o nome dela era Gal e ela desejava, exigia se corresponder com um rapaz que fosse o tal enquanto passava batom sem se importar se estava bonita ou grotesca. E eu queria amar igual! Não me importava se ele tivesse crença ou tradição, eu amaria igual. Igual a ela. Estava pronto. Queria ser igual ela. Queria gritar que nem ela pelas ruas da cidadezinha conservadora de onde sou. Esse especial foi, por mais clichê que possa soar, um divisor de águas na minha vida. Gravei o especial em uma fita VHS – bons tempos que dava para gravar coisas da TV apenas apertando um botão em um aparelho!
Também gravei outras aparições televisivas reprisadas. A apresentação de Meu Nome é Gal com modelito de plumas rosas rodopiando pelo palco livre, ébria, linda, suada, puro sexo e tesão foi meu conforto por anos. Vaca Profana de vermelho pecado também. Chegava em casa depois do inferno que era a escola, mugia a abertura e via aquela deusa rodopiar em um furacão rosa choque pelo palco: TANTO FAZ QUE ELE TENHA NO PEITO CRENÇA OU TRADIÇÃO, EU AMO IGUAL! E o grito GAL, GAL, GAL, GAAAAAAL, a guitarra acompanhando o tom cada vez mais agudo que ela ditava, cada vez mais alto e mais libertador. Que sonho, que encanto para um pré-adolescente dramático que se achava a última pessoa do mundo.
Foi dessa loucura meio datada e meio anacrônica que começou meu caso de amor com a eterna musa do desbunde. Catei uns vinis da minha vó, comprei outros em sebos, alguns em banquinhas de rua e baixei uns tantos outros madrugada adentro na internet discada. No final, tinha quase toda a discografia completa da mulher. Metia tudo num MP3 player de 4GB – um luxo nos anos 2000. Cada música era um tiro, um impacto no peito. Comecei a ficar obcecado com uns quinze, dezesseis anos. Comecei a ver os vídeos e, meu deus, que mulher! O corpo, o gingado da baiana de cintura marcada, o sorriso aberto e o batom vermelho nos lábios carnudos. Comecei a usar batom vermelho por causa de Gal Costa. Queria ser Profana – meu disco favorito e o melhor dela na minha opinião nem um pouco profissional. Aquela figura empoada, fantasmagórica, que respeita muito suas lágrimas, mas ainda mais suas risadas é minha companheira até hoje. Cantava Vaca Profana na escola e a parte das divinas tetas fazia com que me sacaneassem mais do que já era sacaneado. Não ligava: sabia que o leite bom viria na minha cara. O leite mal iria para a cara deles, os caretas. E foi assim mesmo.
Depois me rendi ao Tropical – e aí, meu amor, nada mais podia me parar. Era um samba rasgado sem fim. Minha vida dos sonhos era uma cabrocha dos sonhos de Rio de Janeiro para onde me mudei. Bem tropical, por fim. Nas minhas solitárias noites cariocas, Gal estava lá do meu lado. Tudo maluquice da minha cabeça, é claro. O apelo do ídolo é esse, certo? Achar que ele está ali, que você o conhece, que ele te entende por meio de umas palavras musicadas com as quais nos reconhecemos e nos identificamos, com a persona imaginada e criada que quase vira mais amiga que os amigos de carne e osso. Gal Costa foi essa pessoa nos mais diversos momentos. Uma força estranha que me faz cantar no chuveiro, no bar ou no karaokê, que me faz gritar GAL – mesmo que desafinadíssimo – do nada quando muito bêbado, para o horror dos meus amigos. E o corpo não é mesmo. Linda. Linda de morrer, voluptuosa, sexual. Sabendo disso, tendo consciência disso, sabendo usar isso sem ser puramente calculista. Fiz igual. Copiei mesmo. Queria ser gostosa que nem Gal Costa, índia tropical que posou nua, mas sempre fatal e poeta, sentimental, meio triste e misteriosa, tímida, mas espalhafatosa.
A obsessão com ela prosseguiu. Devorei tudo o que pude sobre a trajetória dela. O começo inusitado na Bahia, a relação com Caetano, Gil e Bethânia; a doce bárbara mais doce do que bárbara. A ousadia com que se posicionou na ditadura, as Dunas da Gal – o mais puro deboche, todo um riso de tigresa pros “bons costumes”. Ao mesmo tempo, sozinha, desolada sem os amigos Caetano, Gil, Bethânia, Chico, Tom Zé e outros. Sem seus maiores afetos, todos exilados. E ela ali, buscando, resistindo, tentando manter o movimento tropicalista vivo de alguma forma. Vivo, mas plástico: em transformação. Meu amor por aquela deusa bronzeada de cabelo indômito, voz incomparável e que cantava todos os meus sentimentos possíveis só aumentava. Pra mim sempre foi Profana: é a imagem de Profana que fica na minha retina. Meio fantasma empoado, meio sedutora de barriga de fora, batom vermelho, olhos esfumados. Cornos pra fora e acima da manada!
Então, veio Recanto. Do nada. Do nada, ao menos para mim, ela voltou. Não esperava, mas, afinal, a voz tamanha não pode parar de cantar. Quando achava que não iria retomar o frio da barriga do meu antigo amor de adolescência, ela estava ali. Linda, madura, com uma voz mais rouca, mais sensual, narrando, com as letras de Caetano, seu maior amor artístico, um novo milênio para a nova geração do milênio. Foi um tiro! O revólver do meu sonho continuava atirando! E que tiro que veio com Recanto! Pegou toda uma nova geração assim no laço. Todos de cara. E eu, Profana internalizada, rindo da empolgação de todos e – admito com certa vergonha – me sentindo superior por já ter e ser caso antigo. Vi ela pela segunda vez ao vivo por essa época do Recanto. Circo Voador. Verão carioca. Suor. Recém-saído de um namoro trágico. Quando ela entrou no palco, esvoaçante coberta de negro, mas com os mesmos cabelos enrolados e descontrolados, com o bocão pintado de carmim que eu também usava, tive plena certeza que estava diante de uma imortal. O repertório pegou tudo: a elegância da minha mãe se arrumando para sair, a minha vó cozinhando feijão na panela de pressão, as marchinhas sucessos dos carnavais com cheiro de suor e cerveja, a emotividade magnética das baladas e ainda o experimentalismo meio sombrio de Recanto que arregimentou novos fãs de gerações as mais variadas. Gal Costa, com sessenta e seis anos, se recriou ali em 2011. Trouxe até eletrônica, levou uma nova geração a descobrir sua potência fatal. Que momento! E isso se repetia a cada show de Recanto. Depois ela levou esse projeto à estratosfera. Nunca teve medo de sair do chão, de voar para longe. Não só chegou à estratosfera, mas se fez ela mesma Estratosférica em um espelho d’água.
Foi com descrença e uma dor estranha que soube que Maria das Graças Burgos, a Gal Costa fatal a todo vapor, tinha partido. De uma maneira boba até, sem explicações: só se foi. Demorei para processar. Fingi que nada aconteceu, segui meus compromissos, mas me pegava ao longo dos dias cantarolando suas músicas e então um aperto batia. Voltei a usar batom vermelho até pra ir comprar pão de manhã e mesmo embaixo da máscara cirúrgica, hábito da pandemia. Queria ser Profana de novo. E aí veio a nuvem negra do velório e do enterro da musa. Que tristeza. Em São Paulo, onde ela mesma escolheu morar com o filho, é verdade. Mas, sinceramente, São Paulo muito pouco a representa. Gal era solar. Era mar, era areia, era suor. Era paixão, riso, barriga de fora, sensualidade e elegância de salto ou de rasteirinha. Disse que queria ser enterrada ao lado da mãe, Dona Mariah, no Rio de Janeiro, onde tinha um jazigo perpétuo no Cemitério João Batista – o mesmo Rio de Janeiro que escandalizou nos anos de chumbo com as roupas e com a aparência de hippie, com a área de Ipanema em que se reunia com outros artistas e que ficou conhecida como as Dunas da Gal.
Ao mesmo tempo, ela personificava e era intimamente conectada com uma parte significativa da cultura baiana. Nascida e criada em Salvador, cantou sobre a cidade e sobre a Bahia em muitas de suas músicas. Imortalizou o frevo axé. Era candomblecista fervorosa, filha de Obaluaê e de Iansã, frequentadora da Casa do Gantois desde os anos 1970, tendo sido filha de cabeça de Mãe Menininha. Daí a triste surpresa do velório fechado na Assembleia Legislativa de São Paulo e do sepultamento público com o caixão da musa do desbunde enrolado na bandeira cinza do estado de São Paulo, com chuva e poucos amigos-amantes presentes. Sem comoção, sem glamour, sem brilho, sem plumas cor de rosa, sem risada de batom carmim, sem a apoteose desafiadora da despedida de uma Carmen Miranda, de uma Clara Nunes ou de uma Elis Regina, que gosto de acreditar que ela amaria. Uma legião de fãs e até mesmo alguns amigos foram barrados, proibidos de se despedirem. Tudo cinza, tudo muito sóbrio, tudo muito discreto. Não teve o bumbo da Mangueira que amava, não teve as cuícas do samba carioca, os repiques do frevo axé. Os gritos de EU AMO IGUAL silenciaram.
Gal Costa sempre foi discreta em relação a sua vida pessoal e privada. Discreta ou protetora? Mas ela era uma figura pública, um marco de alegria, ousadia e potência para milhões, não só brasileiros. Pergunto-me sobre o porquê dessa despedida, bem... “não havia signo nenhum, ficou um papo de otário”. Não teve pique. Tento me consolar que ela se foi ao menos fazendo o L de Lula, gritando – infelizmente sem os seios de fora, como já fez – por um Brasil menos cruel e menos baranga, menos moralista. Ao menos viu Bolsonaro ser derrotado. Que coisa sem sal, sem sol, sem mar, sem brilho essa despedida da fatal profana que no fim já era estratosférica e sempre a todo vapor. Dizem que a família quis assim e que devemos respeitar. Não sei. Uma verdadeira nuvem negra no adeus de uma das maiores e mais longevas vozes e vidas da MPB. Mas o nome dela era Gal e ela amava igual, sim! Saco meu batom e as luzes mais vermelhas em homenagem a ela. É tudo da maior importância.
Como citar este artigo:
GOEBEL, Felipe. A nuvem negra da despedida de Gal Costa. História da Ditadura, 9 dez. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-nuvem-negra-da-despedida-de-gal-costa. Acesso em: [inserir data].