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  • Foto do escritorNatália Guerellus

A palavra é meu domínio sobre o mundo II

Atualizado: 5 de abr. de 2022

O que mais dizer sobre Clarice Lispector (1920-1977) que já não tenha sido dito? Esta pergunta inspirou a última coluna de “O que disse Eurídice”, publicada no mês de julho de 2020. Para além do que escreveram a crítica literária brasileira, as biógrafas e os biógrafos e ademais do que escreveu a própria Clarice Lispector em e sobre seus textos, destaquei o instigante caminho feito por sua obra no exterior.

Através do exemplo da circulação e da recepção da obra de Clarice Lispector em Portugal a partir dos anos 1960, citei aqueles documentos que valorizam, na literatura clariceana, o fato de esta ser escrita em português. O manuseio original desta língua, portanto, aproximaria Clarice Lispector de outros autores clássicos portugueses como Fernando Pessoa. Percebe-se igualmente que o foco na lusofonia é, neste sentido, uma estratégia que favorece a circulação de uma autora ou de um autor estrangeiro entre o público português e é amplamente utilizada no caso da obra de Clarice Lispector.

Outros exemplos significativos poderiam ser discutidos através dos trabalhos de Lucilene Garcia Arf sobre a difusão da literatura clariceana na Espanha, de Thales Baretto de Castro sobre as traduções alemãs da autora, ou do trabalho de Cynthia Costa e Luana Ferreira de Freitas sobre a internacionalização de Clarice Lispector em língua inglesa. Preferi, no entanto, neste espaço digital que me cabe, falar um pouco mais sobre o caso francês, estudado já nos anos 1990 por Maria Marta Laus Pereira. Em meio à recepção francesa, trago um exemplo que me é muito caro, o da leitura realizada pela intelectual franco-argelina Hélène Cixous (1937-).

A primeira tradução de um texto clariceano para o francês data de 1952. Trata-se do capítulo onze do livro Cidade Sitiada, traduzido por Beata Vettori e publicado na revista Roman, número 8. Já em 1954, Perto do coração selvagem, primeiro romance da autora brasileira, seria traduzido por Denise-Teresa Moutonnier, pela editora Plon. Ambos os textos contaram com um prefácio de Paulo Mendes Campos. Mas foi somente em 1970, quando Violante do Canto traduziu A maçã no escuro (Le bâtisseur des ruines) pela Gallimard, que Clarice Lispector começou a chamar a atenção de parte do campo literário francês. Estas primeiras traduções são, no entanto, criticadas hoje pelo “francesismo” em que incorrem e pelas tentativas de “purificação” do texto que acabam por violar sua sintaxe original. Críticas como esta não se limitam a Clarice Lispector, mas fazem parte de certa tradutologia francesa clássica que tende a privilegiar valores estéticos da langue cible, no caso o francês, em comparação a quebras, inversões, neologismos em langue source, no caso, o português. Outro caso notável são as primeiras traduções francesas de Dostoievski, hoje bastante questionadas.

A recepção à obra de Clarice nos anos 1970 trata o romance A maçã... como “o mais complexo da literatura brasileira contemporânea”, analisando nele a questão da culpa e do feminino, e comparando-o ao “nouveau roman” francês. A paixão segundo GH, traduzida por Claude Farny, foi publicada em 1970 e marcou o início das publicações da autora brasileira pela Éditions des Femmes, de Antoinette Fouque. Análises acadêmicas comparam-na à obra de Vergílio Ferreira e Julio Cortázar. Muitos outros romances e contos de Clarice Lispector foram traduzidos para o francês ao longo dos anos seguintes e figuras como Clélia Piza e Maryvonne Lapouge são importantes mediadoras nessa época e são hoje analisadas através de arquivos pessoais por Maria Teixeira em tese de doutorado desenvolvida na Sorbonne Université sob orientação de Michel Riaudel. Muitos livros de Clarice Lispector apareceram ainda em edições bilíngues na França.

Em meio às diversas leituras dos anos 1970, uma delas me parece a mais original: aquela feita por Hélène Cixous, professora universitária, anglicista de formação, escritora de ficção, ensaio, filosofia, teatro, e que viria a ser uma das mais importantes intelectuais do que se costumou chamar de “feminismo francês”, sendo, na época, também publicada pela Éditions des Femmes.

Aqui cabe um parêntese. A inserção de Cixous no chamado “feminismo francês” é imprecisa pois, nos anos 1970, a autora franco-argelina estava ligada ao Movimento de Libertação das Mulheres (MLF – Mouvement de Libération des Femmes) ao lado de Fouque e de outras mulheres, e não se dizia feminista. Seu nome aparece ligado a esse grupo quando, nos Estados Unidos e na Inglaterra, publicaram-se coletâneas do chamado French Feminism. Ou seja, o French Feminism foi, antes, uma criação anglófona, até porque Cixous tinha certas críticas à perspectiva de Simone de Beauvoir, figura chave destas publicações. Como “feminismos” é um termo polissêmico, Cixous hoje aparece como feminista, mas ligada a este movimento específico do MLF francês dos anos 1970 e, ainda assim, em certa autonomia em relação a ele. Feito este parêntese, é preciso dizer que Cixous é praticamente desconhecida no Brasil, nunca tendo sido traduzida. O único livro seu que conhecemos em português é A hora de Clarice Lispector, original de 1989, onde se concentram textos seus sobre a autora brasileira, como o famoso Vivre l’orange (Viver a Laranja). Muitos comentários em teses e dissertações, ou em artigos de jornal, mencionam-no, mas não se debruçam sobre a leitura do texto clariceano feita por Cixous, chegando a menosprezá-la. Na Folha de S. Paulo de setembro de 1999, em artigo intitulado “Um surto lésbico-literário” vemos, talvez, um dos exemplos mais representativos da incompreensão e do desconhecimento total do papel de Cixous nos movimentos feministas da década 1970 e do papel de Clarice Lispector na proposta da escritora franco-argelina sobre a chamada “escrita feminina”.

O fato de Hélène Cixous ter escrito vários ensaios analisando textos clariceanos e em comparação a outros autores, como Kafka e Joyce, além da particularidade de Clarice Lispector ter sido publicada, em sua grande maioria, pelas Éditions des Femmes, de Antoinette Fouque, configurou uma leitura de Clarice Lispector na França que a aproxima dos feminismos. É preciso, no entanto, destacar que Clarice Lispector é lida menos como feminista, e mais pelas feministas, ou seja, pela crítica literária feminista, que possui hoje uma tradição imensa e diversificada.

Outro equívoco, a meu ver, seria dizer que Clarice Lispector foi transformada em feminista pelas interpretações de Cixous, pela Éditions des Femmes ou pelas publicações em outras editoras militantes. Inclusive, em minha última coluna, utilizo esta afirmação no último parágrafo como provocação irônica. Mas é verdade que a interpretação de Cixous destaca na literatura de Clarice Lispector características que ela acredita comporem o feminino e que, neste sentido, são tidas como revolucionárias dentro da sociedade ocidental patriarcal. Os textos mais conhecidos de Cixous sobre Clarice são relatos poéticos do impacto da leitura da autora brasileira na escrita e na vida da autora franco-argelina: “uma voz de mulher veio a mim de muito longe, como uma voz de cidade natal, ela me trouxe saberes que eu tinha antigamente, saberes íntimos, inocentes, e sábios, antigos e frescos como a cor amarela e violeta de frésias reencontradas...”.

Hélène Cixous devota uma parte importante de sua literatura à investigação da “diferença”, leitora e amiga que era de Jacques Derrida. Clarice Lispector é de tal modo admirada e utilizada por Cixous, que acaba por integrar sua própria escrita, assim como outros autores e leituras. Cixous coloca no campo intelectual feminista francês a questão da afirmação da diferença, questão espinhosa ainda hoje nos estudos de gênero. Um de seus textos mais belos e impressionantes neste sentido é o ensaio “O riso da Medusa”, de 1975, provocação, em parte, à tradição feminista inaugurada por Simone de Beauvoir. O ensaio foi traduzido em português, por mim e por Raísa França Bastos e será publicado no primeiro semestre de 2021 pela Bazar do Tempo, com apoio do Ministério da Cultura francês.

Acredito, então, que no caso específico francês, a circulação e a recepção de Clarice Lispector por intelectuais próximas à MLF ajuda a reforçar a positividade do feminino na cultura e na sociedade europeia da época, às voltas com os diversos feminismos dos anos 1970 e 1980. A leitura não se dá porque Clarice Lispector fosse mulher, mas porque traços marcantes de sua escrita são interpretados como sendo do gênero feminino e, neste sentido, revolucionários. Gostando ou não da interpretação, o fato é que ela teve um grande apelo na Europa e ajudou na circulação da autora brasileira à época nos círculos universitários em língua francesa, alemã e inglesa, principalmente. É, portanto, um caso extremamente original face à grande maioria da literatura brasileira jamais traduzida e desconhecida no continente.

  1. Os dados referentes à circulação francesa foram retirados principalmente do artigo de Maria Laus Pereira, “Aspectos da recepção de Clarice Lispector na França”, Anuário de Literatura 3, 1995, p. 109-125.

  2. Cixous, Hélène, L’heure de Clarice Lispector, Paris, Éditions des Femmes, 1989, p. 11.

Natália Guerellus é historiadora.


Crédito da imagem destacada: Divulgação

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