A União Nacional dos Estudantes e o golpe parlamentar de 2016
Em setembro de 2022, vimos diversos estudantes de uma das maiores universidades do país, a Universidade de São Paulo (USP), se mobilizando pela contratação de mais professores e professoras e pela ampliação dos recursos estudantis. Daquele mês para cá, os estudantes fincaram pé na universidade e, só em novembro, após diversas tratativas, optaram pelo fim da greve, mostrando que a juventude, quando articulada, é uma força política importante no embate ideológico entre aqueles que lutam por mais investimentos nas universidades públicas e os que trabalham por seu sucateamento. Assim sendo, considerando a atualidade da temática da mobilização estudantil, este texto pretende compreender como o movimento estudantil, a partir da UNE, se posicionou em um dos processos políticos mais importantes de nossa história recente, isto é, o golpe parlamentar de 2016.
A trajetória da União Nacional dos Estudantes
Fundada em 11 de agosto de 1937, na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro, a entidade máxima dos estudantes universitários brasileiros teve papel destacado em diversos momentos importantes do período republicano. Desde seus primeiros passos, conforme consta em seu histórico digital, “a UNE passou a se organizar em congressos anuais e a buscar articulação com outras forças progressistas da sociedade”. Nesse sentido, poucos anos depois, com o início da Segunda Guerra Mundial, a entidade pautou seu discurso nas ruas, objetivando combater o nazifascismo – tanto na Europa, quanto no Brasil – e mobilizar o então presidente Getúlio Vargas a se posicionar junto aos Aliados. É nesse contexto, inclusive, que a UNE, a partir do decreto-lei n. 4105 de 1942, adquiriu o status de “entidade coordenadora e representativa dos corpos discentes dos estabelecimentos de Ensino Superior de todo o país”.
Nos anos de 1950 e 1960, a organização estudantil não se absteve das principais temáticas presentes nessas décadas agitadas da história republicana brasileira. A UNE participou do movimento “O Petróleo é nosso”, que durou até 1953; da Campanha da Legalidade, ocorrida em Porto Alegre em 1961; e da Frente de Mobilização Popular, fundada em 1962, que tinha como princípio a defesa das reformas de base, com foco na promoção da reforma universitária, que ampliaria o acesso ao Ensino Superior. Além disso, a partir do Centro Popular de Cultura (CPC), a UNE projetou, por meio da arte popular revolucionária, a construção de uma cultura com forte viés popular, democrático e nacional, que objetivava conscientizar as classes populares e promover, com isso, a revolução social.
Por sua atuação marcadamente progressista, após o golpe civil-militar, a entidade foi colocada na ilegalidade pela Lei Suplicy de Lacerda e seus membros foram perseguidos, torturados, desaparecidos forçadamente e mortos, como aconteceu, por exemplo, com Helenira Rezende, Honestino Guimarães – então presidente da entidade – e Alexandre Vannucchi Leme. Não obstante a repressão, mesmo de maneira clandestina, a UNE continuou atuante na sociedade, tendo seus manifestantes participado da Passeata dos Cem Mil, em 1968, e realizado, às margens do autoritarismo, um congresso em Ibiúna, no estado de São Paulo. Ainda no contexto da ditadura, a entidade viu sua sede ser destruída pelos militares, após uma tentativa malsucedida dos estudantes em recuperá-la.
Com o início do processo de distensão do regime, a UNE participou ativamente da campanha “Diretas Já” e, em 1985, logrou, a partir do projeto de lei Aldo Arantes, retornar à legalidade. No contexto pós-redemocratização, seus militantes mobilizaram-se para pedir o impeachment de Fernando Collor e para lutar “contra o neoliberalismo e a privatização do patrimônio nacional” institucionalizada por Fernando Henrique Cardoso. Em seu site, a entidade comenta que “foi uma época de embate” entre a UNE e o governo federal, sendo esse o “período de menor diálogo e negociação com o Poder Executivo na história, à exceção do regime militar”.
No século XXI, seus militantes apoiaram a candidatura de Lula nas duas eleições (2002 e 2006), no segundo turno, após plebiscito universitário. A ação da UNE, retomado o diálogo com o Executivo federal, propiciou o avanço de programas como o ProUni e o Reuni. No ano de 2010, “a UNE apoiou no segundo turno, após consulta à sua diretoria, a candidatura de Dilma Rousseff”. Anos mais tarde, porém, participaram das chamadas “Jornadas de Junho” – processo primordial para compreendermos o golpe parlamentar de 2016 – e, em 2014, apoiaram novamente Rousseff no segundo turno. Após um ano e meio de governo, atuaram no sentido contrário àqueles que queriam o impeachment da presidenta, sendo sua atuação percebida nas ruas e nas redes e, para esta reflexão, é esta última que irei analisar, tencionando compreender o discurso oficial da entidade através de seus editoriais.
A UNE contra o golpe
Logo após o aceite, por parte de Eduardo Cunha, da abertura do processo de impeachment, a entidade lançou uma nota, datada de 5 de dezembro de 2015, ou seja, três dias após o ocorrido, em que se posicionava contrária ao processo. De acordo com a UNE, a polvorosa tratava-se de “uma chantagem política [...] diante da votação para continuidade do processo de cassação do presidente da Câmara dos Deputados no Conselho de Ética”. Nota-se, portanto, que a causa principal do problema seriam os envolvimentos de Cunha com ações ilegais, ainda mais que “até agora [o deputado] não conseguiu responder às acusações de lavagem de dinheiro e escondeu suas contas na Suíça”.
O julgamento realizado pela UNE neste momento, inclusive, é que o que estava em jogo era “um verdadeiro golpe à democracia” promovido pela “tentativa do conservadorismo de se consolidar como alternativa”. O editorial é taxativo ao propor que a solução possível no contexto é pautar o “Fora Cunha!” através da tomada das ruas para “barrar o impeachment, defender a democracia e pedir a cassação de Eduardo Cunha”. Ao final da nota, é interessante que a entidade finaliza com “venceremos”, indicando, acertadamente, que existia uma disputa sobre o processo entre o “nós” – que acreditavam ser um golpe – e o “eles” – que defendiam o impeachment.
Após algum tempo sem publicar nada a respeito do tema, no dia 29 de fevereiro 2016, a UNE redigiu o editorial “Resolução de conjuntura – é tempo de luta e resistência!”. Nesse texto, a entidade faz duras críticas ao Governo Federal, já que este propôs uma política econômica “equivocada”, realizou “cortes nos orçamentos sociais”, com destaque para a educação, cujo “corte é maior que o [do] ano de 2015”, além de ter proposto a “reforma da previdência [que] coloca os movimentos sociais em alerta [e] ameaça os direitos históricos dos trabalhadores”. Evidencia-se, pois, que a entidade não estava alheia ao que acontecia no país. Apesar disso, reconheceu que o impeachment não possuía “nenhuma fundamentação legal, tendo em vista que não existe comprovação da ilegalidade por parte da presidenta”. A UNE ainda alertou que “a mídia e as forças conservadoras tentam desestabilizar o governo a todo custo”. Assim sendo, na visão dos estudantes, há uma reação conservadora em curso, com a liderança de Eduardo Cunha, e com apoio da grande mídia. Para barrar essa reação e o processo em ação, a entidade convocou todos os estudantes para as manifestações seguintes em defesa da democracia.
Nos meses de março e abril, a UNE publicou dois editoriais que buscavam argumentar o porquê de o processo de impeachment tratar-se de um golpe e por que a democracia brasileira corria risco. O primeiro editorial, datado de 31 de março, intitulado “1º de abril, relembrar um golpe para evitar outro”, é iniciado com um breve resumo sobre o golpe civil-militar de 1964. Este desencadeou “o pior pesadelo político do Brasil desde a proclamação de sua República”, pois “cassou liberdades individuais, perseguiu, torturou e matou [...] em especial os estudantes e o movimento estudantil”, que teve “líderes presos e mortos”. Após essa contextualização, o editorial é concluído com a afirmação de que “cinquenta e dois anos depois [...] os estudantes estão novamente nas ruas, denunciando outra tentativa de golpe contra a democracia do país”. O texto destaca, ainda, que “é preciso respeitar as instituições do país para que não sejam cometidos os mesmos erros de outros tempos”, fazendo alusão, uma vez mais, ao golpe civil-militar do século passado.
Ao evocar o imaginário sobre o golpe que instaurou a ditadura, em 1964, comparando-o com o golpe em curso, a UNE buscava mobilizar os estudantes com algo que fez parte da própria história da entidade. Embora pareça, ao primeiro olhar, um comparativo absurdo, teóricos como Wanderley Guilherme dos Santos também o fizeram, mostrando-nos que tal cotejo não é um disparate. Para Santos, existem três semelhanças entre esses golpes, a saber: “ambos são uma reação dos conservadores à participação popular na vida pública e rejeição ativa de políticas de acentuado conteúdo social”. Além disso, nos dois momentos houve um “relativo sucesso do recrutamento ideológico e de mobilização de inesperados segmentos da população contra a pauta de um governo que buscava reduzir desigualdade”, e, por fim, em ambos os momentos houve a instrumentalização da corrupção como um argumento central na reação conservadora (Santos, 2017, p. 33). Ou seja, existem semelhanças entre 1964 e 2016, em que pese a reconfiguração dos golpes na atualidade que objetivam manter a aparência de legalidade do processo.
O segundo editorial, publicado em 14 de abril, tinha como título “Impeachment de 1992: entenda as diferenças”. O texto afirma que “a insatisfação com o governo não é motivo para a tentativa de afastamento da presidenta e que a autoridade máxima da República não está ligada a nenhum escândalo e não é acusada de nenhum crime”, ao contrário do caso Collor, em que “ninguém o defendeu diante do inegável, e essa é a principal diferença”. É interessante notarmos que, uma vez mais, a UNE rememorou um evento em que teve participação ativa, pois, assim como em 1964, o impeachment do ex-presidente Collor perpassa a história da entidade. Nesse sentido, e pensando no contexto de 2016, em que a discussão sobre a novidade dos golpes contemporâneos era bastante incipiente, comparar com o ocorrido em 1992 foi uma estratégia interessante, já que o impedimento de Collor possui uma maior aceitação social.
Assim sendo, o editorial busca elucidar primeiramente a legalidade do impeachment contra Collor, já que “a denúncia que [o] derrubou” tinha “base em um conjunto de evidências e fraudes financeiras que ligavam o presidente diretamente a crimes”. Somente após essa constatação é que “o Congresso instaurou uma CPI” para averiguar a materialidade das denúncias. No caso da presidenta, pelo contrário, “as pedaladas fiscais” não configuram “crime de responsabilidade”, já que são “consideradas uma maneira de cumprir artificialmente o orçamento”, portanto, “não há nenhuma evidência de crime de corrupção” e, por essa razão, “a tentativa de afastamento é caracterizada como golpe institucional”. Além disso, contra Rousseff, “primeiro se instaurou uma Comissão que irá votar o parecer [...] para depois avaliar se existem fatos que comprometem a presidenta”.
Ao comparar os dois processos de impeachment, o editorial busca argumentar que, em 1992, existiam fatos comprovados de crime de responsabilidade contra o então presidente, sendo este o fator determinante e distintivo entre os dois eventos citados. Por essa razão principal, além dos outros motivos trazidos no texto – como a participação menos ativa da mídia e a hegemonia popular quanto a destituição de Collor –, a única solução possível, assim como argumentou no outro editorial, que compara o processo atual com o golpe de 1964, seria sair em defesa da democracia, já que um novo golpe estava em curso.
Mesmo após intensa mobilização social, nas redes e nas ruas, o impeachment foi aprovado na Câmara dos Deputados. Nesse sentido, a entidade estudantil publicou um editorial sobre o ocorrido. Neste texto da UNE sobre a votação na Câmara, datado de 17 de abril de 2016, a entidade, em tom de manifesto, “repudia o resultado da sessão plenária [...] que aprovou de forma viciada o pedido de impeachment”, dando sequência ao processo “ilegítimo”, ou seja, “sem as bases legais requeridas pela lei federal 1079/50, constituindo dessa forma um sério golpe às instituições brasileiras”. O golpe, para a UNE, marca “um corte profundo na jovem democracia nacional”. No entanto, não há tempo para lamentações, pois “em quase oitenta anos de história, [a UNE] já enfrentou alguns dos piores momentos [...] da República”, sendo assim, “os estudantes não sairão das ruas e defenderão o seu país sob quaisquer circunstâncias”. A luta apenas havia começado.
Considerações finais
O cientista político Aníbal Pérez-Líñán, em sua obra Presidential impeachment and the new political instabilibity in Latin America, de 2007, argumenta que o impeachment presidencial emergiu no tempo presente como o mais poderoso instrumento para remoção de sujeitos indesejáveis. Tal tese se comprova ao analisarmos os recentes golpes realizados pela reação conservadora, com papel destacado dos parlamentares, em diferentes países da América Latina – Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016) e Bolívia (2019). A opção pelo impeachment, inclusive, tem motivado teóricos a refletirem sobre os golpes recentes e retomarem algo ululante para nós, historiadores e historiadoras: a historicidade dos conceitos.
Nesse sentido, Carlos Barbé afirmou que “o significado da expressão Golpe de Estado mudou com o tempo”, sofrendo alterações que vão “desde a mudança substancial dos atores (quem o faz), até a própria forma do ato (como se faz)” (Bobbio; Matteucci; Pasquini, 1998, p. 545). A mudança mais perceptível em nosso século é que os golpes parlamentares são mais sutis, porque utilizam artefatos constitucionais para a remoção de presidentes e presidentas, ou seja, há uma substituição do abuso da força militar pela força jurídica que auxilia na construção de uma suposta aparência de legalidade. Por essa razão, Lorena Soler afirma que os golpes no século XXI “centram seus esforços não em legitimar a posteriori suas ações, [...] senão em demonstrar a legalidade dos atos e processos utilizados para substituir o ocupante do Poder Executivo” (Soler, 2019, p. 38).
Ao perceber essa especificidade, a UNE, historicamente vinculada aos movimentos progressistas, buscou, desde o início do processo, posicionar-se contra o golpe em curso. Embora exista certa proximidade da entidade com os governos petistas, sendo esta percebida pelo apoio oficial às eleições de Lula e Dilma, a UNE não se eximiu de tecer críticas aos governos petistas. Apesar disso, através de seus editoriais, a UNE identificou que o impeachment em questão se tratava de manobra de Eduardo Cunha, portanto, uma farsa, porque não havia comprovação de crime de responsabilidade por parte da presidenta.
Para balizar seus argumentos, buscou, ao longo dos editoriais analisados, comparar dois momentos históricos de nossa história republicana: o golpe de 1964 e o impeachment de Collor em 1992. Ao fazer isso, a UNE trouxe eventos que faziam parte de sua trajetória, pois havia lutado contra o golpe militar e contra a ditadura, além de ter apoiado a destituição de Collor. Sobre este último episódio, inclusive, a entidade objetivou exemplificar o porquê de ser um processo legal, ao contrário do ocorrido em 2016.
Para a UNE, o que estava em jogo desde o começo, e por isso a preocupação e a mobilização dos estudantes, era a democracia brasileira. A entidade estudantil estava correta, pois os efeitos da crise política decorrentes do processo golpista geraram impactos importantes em nosso presente, tendo em vista que a mobilização do discurso antipolítico, catalisada em nome de um projeto ideológico alternativo, e a criminalização da política decorrente da remoção de Dilma e da prisão de Lula, contribuíram para a consolidação das reformas neoliberais de Michel Temer e para a eleição de Jair Bolsonaro.
Referências:
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nícola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB, 1998. v. 1.
PÉREZ-LÍÑÁN, Aníbal. Presidential impeachment and the new political instability in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2007.
SOLER, Lorena. Derechas y neogolpismo en América Latina. Una lectura comparada de Honduras (2009), Paraguay (2012) y Brasil (2016). Historia y problemas del siglo XX, año 10, v. 11, 2019.
Como citar este artigo:
CONSTANTE, Bruno Erbe. A União Nacional dos Estudantes e o golpe parlamentar de 2016. História da Ditadura, 15 jan. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-uniao-nacional-dos-estudantes-e-o-golpe-parlamentar-de-2016. Acesso em: [inserir data].
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