A análise de fontes sobre a ditadura militar em sala de aula
Atualizado: 4 de mai. de 2022
Nos últimos anos, com o crescimento de fenômenos como as fake news e o negacionismo, temos visto conceitos caros aos historiadores serem amplamente levantados no debate público, nas redes sociais e, claro, nas salas de aula. Em grande medida, essas discussões giram em torno do que diferenciaria os fatos em si de suas interpretações; do que seria “a verdade”; de até onde seria ético usar a retórica e as agendas pessoais para analisar um evento ou ao elaborar uma narrativa que se diz compromissada com a “realidade”; dos métodos e instrumentos aos quais podemos recorrer para garantir que não estamos consumindo e reproduzindo uma mentira.
Estes temas são complexos e amplamente debatidos em estudos sobre teoria da História. Apesar de partir destas provocações, este texto não se propõe a aprofundar esse debate teórico, mas sim refletir sobre o lugar da educação nele. Como professores e professoras, de que forma nós podemos colaborar para que nossos alunos e alunas respondam ou reflitam sobre estas perguntas? Mais especificamente, pretendo ponderar sobre o emprego do ensino da história da ditadura militar nesse debate e como ele pode ajudar os alunos a se localizarem nessa onda de produção de informações duvidosas.
O ensino da ditadura militar e a produção de informação fraudulenta
Considerar o ensino sobre a ditadura nessa discussão é relevante na medida em que muitos estudos têm identificado que esse tema, além de ser alvo de negacionismos, também tem sido mobilizado por figuras costumeiramente favorecidas pela produção de fake news. Permeando esse tema, um estudo da historiadora Caroline Bauer (2020) observou como, ao ingressar nas Forças Armadas, Bolsonaro se apropriou da memória oficial dos militares como forma de se integrar a uma identidade coletiva, que compartilha uma visão comum sobre o passado. Com o tempo, ele passou a usar a leitura positiva/apologética sobre a ditadura como uma estratégia para acumular poder e visibilidade pública.
Sabemos que é comum que haja disputas de memórias sobre eventos passados e que algumas delas sejam fortalecidas ou silenciadas de acordo com os estímulos coletivos. Contudo, tratando-se da memória da ditadura militar, para além de uma questão mnemônica, há também muitas narrativas sobre o período que distorcem o processo factual propositalmente, seja para amparar identidades de determinados grupos, seja para ocultar investigações sobre crimes praticados na época. É o que podemos chamar de negacionismo histórico.
As fake news e o negacionismo não são sinônimos, porém existe um ponto em comum entre ambos: a adulteração da informação com a intenção proposital de manipular pessoas. Tendo isso em vista, a estruturação de atividades que se proponham a interligar os dois assuntos numa abordagem didática pode vir a ser frutífera para estimular uma posição crítica dos alunos em torno da análise de documentos.
Metodologias ativas e o exame de informações fraudulentas
O ensino tradicional se baseia em fontes de autoridade do saber. O professor, seria o responsável por transmitir conhecimentos prontos e acabados aos alunos que os absorveriam, passivamente. Há décadas esse modelo de ensino tem sido criticado por profissionais da educação que apontam para problemas relacionados à ideia de que o educador detém o monopólio do conhecimento. Segundo Paulo Freire, esse tipo de educação mitigaria a reflexão, a criticidade e a subjetividade dos educandos porque não abriria espaço para as suas intervenções. A eles caberia receber “os depósitos, guardá-los e arquivá-los”. Seria uma “educação bancária” (FREIRE, 2006, p. 61).
Apesar das críticas, o modelo tradicionalista ainda predomina no Brasil. Em virtude disso, somos ensinados a reconhecer um conteúdo como verdadeiro ou seguro tendo como referência as figuras que o enunciam. Nenhuma etapa do processo de produção do saber ou da metodologia científica utilizada nele é reconhecida como fundamental para ser aprendida. Nesse modelo de educação, a legitimidade de uma informação se assenta no quão confiável é a pessoa que a transmite – nesse caso, o professor. Essa forma clássica e autoritária de compreender o ensino não deveria ser ignorada quando pensamos na propagação de fake news e de práticas negacionistas, porque um fator fundamental para a estruturação de um cenário favorável a elas é justamente o aparecimento de figuras públicas tratadas como idôneas e detentoras da verdade.
Nesse panorama que a pesquisadora Sônia Menezes (2020) reconhece como “crise de autoridade que tem se revertido numa crise do pensamento científico”, a trajetória de propagação de narrativas negacionistas envolve, inicialmente, a desqualificação de cientistas, professores e instituições tradicionais como produtores de análises confiáveis. Eles passam a ser associados à imagem de doutrinadores, de mentirosos, e sua produção e seus protocolos de validação do saber são desqualificados e tratados como enviesados e não confiáveis. Assim, outros critérios de legitimação de informações são adotados baseados no reforço aos valores pessoais e dando autoridade a pessoas tratadas como bastiões da verdade apenas por robustecer a crença de um grupo.
O fato das pessoas se identificarem com o discurso de uma figura, suas pautas e seus valores, faria com que sua fala fosse tratada como mais confiável do que a de qualquer outro veículo de informação ou estudo científico. (MENESES, 2020, p. 47). Como essa crise se fortaleceu a partir de um processo de deslegitimação de “referências do saber”, vale questionarmos se a predominância de um modelo de ensino fundado na reprodução de conhecimento a partir de figuras de autoridade talvez tenha colaborado com isso.
De acordo com a cientista Angela Pimenta, presidenta do Instituto para Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), haveria algumas medidas atualmente recomendadas aos veículos de informação como um compromisso de combate à circulação de informação fraudulenta. Uma delas seria inserir elementos nos textos que permitam que os leitores sejam capazes de refazer o percurso do veículo ao estruturar, editar, apurar e publicar uma notícia (POLITIQUÊS, 2018). Considerando que os meios de comunicação estão pensando em medidas para enfrentar esse tema, não deveria também a educação se dedicar para estruturar estratégias de ensino que ajudem os alunos a reconhecerem metodologias científicas de produção de informação?
Tendo em consideração que as repostas a essas provocações sejam assertivas, a ampliação das chamadas “metodologias ativas” na educação pode exercer um grande papel nesse debate. Essas metodologias propõem que o aluno recorra mais à pesquisa para a produção de conhecimento e menos à reprodução de saberes prontos. As estratégias para executar isso podem ser diversas, como a aprendizagem em times, a sala de aula invertida – onde os alunos estudam em casa e aprofundam seus estudos na escola –, a produção de debates, as pesquisas de campo, entre outros.
No caso do ensino de História, a análise direta de fontes históricas se encaixa nessa proposta ao mesmo tempo em que exerce um importante papel no processo de reflexão sobre como é produzida uma informação. Dessa forma, os alunos ocupam uma postura inquisitiva em sala e são estimulados a analisar fontes identificando e aplicando técnicas de produção de conhecimento histórico. Contudo, para falarmos sobre isso precisamos refletir ainda como esse tipo de atividade tem sido executada nas escolas e se é necessário adaptá-la para nosso objetivo.
O confronto com as fontes e com o processo de produção de informação
Boa parte das propostas de abordagens de fontes históricas na educação buscam ressaltar a necessidade de não trabalhar os documentos em sala como um “atestado da verdade”, mas sim estimular que os alunos façam provocações sobre eles.
Em um artigo sobre o assunto, o professor Carlos Guimarães Monti (2019) fez um levantamento de diferentes abordagens possíveis para executar esse tipo de atividade. Dentre as provocações que os alunos foram levados a fazer, estão: quais foram os critérios de seleção do material analisado; quem produziu as fontes estudadas; quais foram os objetivos ao produzi-lo; que relações de poder perpassaram a produção dessas fontes. Em suma, uma série de questionamentos que encorajem um senso crítico e a formação de uma consciência histórica.
Esse cuidado é válido na medida em que a História, como disciplina, foi fundada sob a ótica positivista. Hoje amplamente criticada, essa corrente apontava que a descrição pura de um documento garantiria a idoneidade do trabalho do historiador, já que as fontes históricas conteriam a verdade em si mesmas. Como depois foi defendido, essa abordagem ignorava uma série de elementos que faziam com que toda fonte histórica já proporcionasse, em si, um contato limitado com vestígios do passado. Conforme se ressalta atualmente, todo documento é produzido por seres humanos e, por isso, estaria influenciado, desde sua elaboração, pela ideologia, lugar social e valores de quem o elaborou.
Tendo isso em vista, é coerente que as propostas que trabalhem o estudo de fontes históricas em sala de aula se proponham a realçar a necessidade de uma análise crítica das fontes. Contudo, isso não deve significar simplesmente restringir os estudos a uma mera identificação de narrativas diferentes sobre o passado. É necessário que se discuta intencionalidades e as relações de poder que envolveram não só a produção desses documentos, mas também o seu uso. Essa é uma questão particularmente cara quando encaramos documentos que tiveram informações propositalmente adulteradas com a intenção de enganar determinados leitores.
Identificar os termos presentes em documentos – “terrorista” ou “guerrilheiro”, “foragida” ou “vítima”, “revolução” ou “golpe”, “direito à verdade” ou “revanchismo” – e quais visões de mundo, memórias e embates eles expressam é fundamental. Porém, num contexto em que a produção de documentação fraudulenta se tornou uma grande estratégia de acumulação de poder, parece caro que voltemos a discutir a finalidade e interesses que existem em torno da produção deliberada de informação falsa em documentações.
No caso da ditadura militar, um conjunto de materiais pode ser levado em sala de aula para ser confrontado pelos estudantes. Um inventário interessante para se refletir sobre a análise de documentos fraudulentos são os laudos periciais produzidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e disponíveis no site Memórias Reveladas. Esses documentos foram produzidos para que houvesse um parecer técnico sobre alguns casos de grande repercussão analisados pela CNV, como as mortes da estilista Zuzu Angel e o do jornalista Vladmir Herzog;
No primeiro caso, ao qual irei me ater, é comum os peritos examinarem documentos produzidos no passado. Muitas vezes nessa análise pericial há o confronto com informações fraudadas em documentos oficiais. Foi o que ocorreu no caso de Vladimir Herzog, jornalista morto em 1975 nas instalações do DOI-CODI de São Paulo. Na época, o caso foi tratado pelos órgãos da repressão como um suicídio, o que foi denunciado por sua esposa e jornais como uma mentira.
O homicídio de Herzog foi camuflado por documentos oficiais que endossavam a versão de “enforcamento auto infligido”. Contudo o laudo pericial realizado pela CNV indica contradições nas informações, levando ao reconhecimento de que se tratou de um assassinato. Entre os elementos apontados pelos peritos estão incongruências entre as fotos do corpo e os relatos da documentação. Nas imagens, é possível identificar hematomas que não foram descritos no laudo necroscópico e que são incompatíveis com a cena descrita no laudo de local de morte, levando a contestação oficial da versão de suicídio.
A partir dessas fontes, é possível pensar em uma proposta interessante para estimular reflexões nos alunos. Com os cuidados necessários para não expor os jovens a descrições muito violentas destes episódios, pode-se incentivá-los a avaliar como foi realizado o trabalho dos peritos – as fontes confrontadas por eles, as técnicas usadas, os questionamentos feitos e o uso dado ao material produzido. Por outro lado, analisar esses trabalhos também pode ser uma forma de estimular os alunos a refletirem sobre as técnicas adotadas pelos órgãos da repressão para ocultar os crimes praticados por seus agentes e, assim, produzir uma reflexão de natureza histórica sobre como eles agiam.
Nesse tipo de reflexão, é interessante pensar sobre a cadeia de profissionais e de instituições que colaboravam para que assassinatos fossem camuflados e, até mesmo, corpos de vítimas fossem ocultados. Agentes da repressão, médicos legistas, médicos que avaliavam vítimas de tortura, juízes que recebiam acusações de práticas de tortura e optavam por não dar andamento às denúncias, donos de cemitérios que não registravam o local de sepultamento de corpos, entre outros. Também podem render frutos os encaminhamentos que estimulem os alunos a questionarem que estrutura favoreceu essas práticas naquele contexto; se elas seriam passíveis de serem praticadas nos dias de hoje; e quais mecanismos existem, ou deveriam existir, para impedir que elas sejam cultivadas. Exercícios como esse não nutrem uma simples postura de desconfiança contínua em relação a todo meio de produção de informação porque incitam a contextualização e possuem um caráter propositivo.
O estudo desse tipo de trabalho e da documentação levantada por ele também permite aprender sobre técnicas de análise de documentação nas quais o silêncio e a adulteração de dados permitem levantar reflexões sobre um período histórico ou sobre práticas de um determinado grupo, no caso, os órgãos da repressão. Trabalhar com essas abordagens também é interessante para estimular aos alunos a confrontar as fontes e refletir sobre como podemos produzir conhecimento histórico a partir dessas produções sem necessariamente realizar uma análise ingênua da história, mas também sem reduzir nossos estudos a um mero confronto de narrativas.
REFERÊNCIAS
BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: ARAUJO, Valdei; KLEM, Bruna; PEREIRA, Mateus (Org.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020, p. 173-193.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GAROFALO, Débora. Como as metodologias ativas favorecem o aprendizado. Nova Escola. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/11897/como-as-metodologias-ativas-favorecem-o-aprendizado . Acesso em: 05 maio 2019.
MENESES, Sônia. Bolsonarismo? Um problema “de verdade” para a história. In: ARAUJO, Valdei; KLEM, Bruna; PEREIRA, Mateus (Org.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020, p. 173-193.
MONTI, Carlos. Estratégias para o uso de fontes em sala de aula e a liberdade de ensinar e aprender História. Anais da ANPUH – Brasil – 30º Simpósio Nacional de História. Recife, 2019.
OLIVEIRA, Regiane. Governo Bolsonaro prega “negacionismo histórico” sobre a ditadura. El País, São Paulo, 5 abr. 2019.
POLITIQUÊS: 335 Pós-verdade e fake news. Locução de: Conrado Corsalette. Convidados: Ivan Paganotti e Ângela Pimenta. [S.I.] Nexo. 27 mai. 2018. Podcast.
Como citar este artigo:
GATHE, Glenda. A análise de fontes sobre a ditadura militar em sala de aula. História da Ditadura, 15 fev. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/aanalisedefontessobreaditaduramilitaremsaladeaula. Acesso em: [inserir data].
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