top of page
  • Foto do escritorAugusta da Silveira de Oliveira

Acervos em redes sociais: memória cultural digital no Brasil

Atualizado: 17 de jun.


É só abrir a barra de pesquisa no Instagram ou X (ex-Twitter) e pesquisar “acervo”. Inicialmente, a combinação pode parecer atípica, o que redes sociais – lar das imagens rápidas e dispersas – e acervos têm a ver? A internet parece ter democratizado e contribuído para a criação de arquivos comunitários anteriormente dispersos, a exemplo de acervos LGBT (Acervo Bajubá, Arquivo Lésbico Brasileiro), unindo pessoas em diferentes lugares do Brasil e do mundo.


Nas redes sociais, porém, os “acervos” são os mais diversos possíveis e acumulam milhares de seguidores. Acervos de programas da TV aberta brasileira (Acervo Sai de Baixo) ou desfiles memoráveis do carnaval (Acervo Sapucaí) são um dos tipos de perfil. Outros são os dedicados a pessoas ou artistas. Acervo Milton Cunha, comentarista e carnavalesco, e Acervo Maria da Conceição Tavares, professora e economista, são alguns, mas em maior número são os dedicados a artistas da Música Popular Brasileira (MPB). Essa, inclusive, é a área mais frutífera, e são muitas as novas iniciativas: Acervo Gal Costa, Arquivo Elis Regina, Acervo Maysa, Acervo Marina Lima, Acervo Angela Roro, Acervo Chico Buarque. A exemplo dos fã-clubes das cantoras consideradas “rainhas do rádio” como Emilinha Borba e Dalva de Oliveira, que mobilizavam muitos jovens e homens gays entre os anos de 1940 e 1960, criando redes de sociabilidade e um fiel séquito que acompanhava eventos e concursos, os acervos em redes sociais também são majoritariamente de cantoras mulheres (GREEN, 1999).


O conteúdo das postagens é diversificado: no caso das cantoras ainda em atividade, muitos acervos atuam divulgando a agenda de novos shows, entrevistas, participações, muitas vezes compartilhando diretamente da página oficial da artista, como um canal de comunicação mais direto com os fãs, por vezes até realizando sorteio de ingressos para as apresentações. Outros procuram compartilhar material inédito ou raro de maneira mais objetiva, relembrar momentos marcantes da carreira e efemérides como aniversários de parceiros musicais ou do lançamento de discos. Alguns são anônimos, outros publicizam seus criadores. Muitos perdem fôlego depois de meses ou anos de atividade e param de ser alimentados com novas postagens, mas o conteúdo continua disponível para os que quiserem acessar.


Instagram Acervo Gal Costa
Instagram Acervo Chico Buarque
Instagram Acervo Sapucaí

Mas, se os acervos são fã-clubes, esses não são novidade na música brasileira, como visto no caso das cantoras da era do rádio. Atualmente, fã-clubes de artistas em grande evidência ultrapassam essa categoria, autodenominando-se “central de fãs”, e chegam a ser administrados pela própria equipe do artista, além de seu perfil oficial. Os acervos das redes sociais, diferente dos fã-clubes tradicionais, ocupam um espaço liminar, motivados pelo desejo de fãs e admiradores de mobilizarem a ideia de memória e arquivo para proteger ou guardar imagens, vídeos e documentos dos artistas em questão.


Meu algoritmo já conhece os acervos, claro, justamente por eu ser uma grande consumidora desse tipo de conteúdo, capturada pelo “boom da memória”. Como historiadora, porém, não posso deixar de refletir a respeito dos elementos que os aproximam ou afastam de fã-clubes e outras páginas de apoio a artistas e personalidades de diferentes gerações. Faço, portanto, alguns breves apontamentos.


Na era em que uma atualização de página significa postagens perdidas e menor interação com os conteúdos compartilhados por outros usuários, os acervos garantem a preservação (embora informal) de informações e material visual sobre personalidades e artistas brasileiros. Embora haja o desejo de preservar a memória de forma ampla, os acervos em redes sociais não são desprovidos de método (uma ressalva são os perfis “out of context”, famosos por compartilhar conteúdo justamente sem contexto ou lógica), visto que são feitas seleções e escolhas do conteúdo, o que implica necessariamente num recorte particular de determinada trajetória. Há demandas que são marcadas pelas características do meio no qual são divulgados e por quem os alimenta: o que os donos da página em questão apreciam, assim como as redes sociais e probabilidade de engajamento. Sendo assim, o que diferencia os acervos de outras páginas de apoio a personalidades e artistas é justamente a curadoria, que precisa levar em conta o desejo de guardar/disponibilizar materiais e a recepção desse conteúdo.


Considerando isso, seriam os perfis de acervo um arquivo comunitário? Algo próximo a uma iniciativa de história pública digital? As respostas são múltiplas, considerando que são vários e com diferentes intuitos e resultados. As imagens e textos se entrelaçam como narrativa resultante da curadoria atenta dos criadores do acervo, ligada à democratização e pluralização da memória social possibilitada pelas redes sociais. É a vontade de engajar com a memória – ou de produzi-la – que caracteriza os acervos em redes sociais.


Introduzo aqui o conceito de “memória digital cultural” como uma memória cultural que vive nas mídias digitais, e é ela própria uma mídia digital. Os arquivistas digitais amadores, como os mantenedores dos acervos das redes sociais, influenciam a memória coletiva. O que esses arquivistas independentes/alternativos/que atuam por conta própria fazem é explorar o potencial das tecnologias digitais para democratizar a memória cultural. O Instagram e o X são duas possibilidades, mas há outras ferramentas e redes digitais que levam a dois caminhos: um é o de preservar grandes quantidades de informações, visto que não há restrição de espaço; ou materiais altamente específicos, a exemplo dos acervos dedicados a artistas e personalidades (DE KOSNIK, 2016).


Além disso, como esses acervos ligados a personalidades e artistas costumam congregar pessoas com interesses comuns, eles também contribuem para a formação de uma identidade social dos fãs e admiradores. Essa identificação supera a precariedade e falta de estrutura e longevidade das redes sociais para comportar um acervo tradicional, mostrando que o engajamento provém da sensação de comunidade.


No caso de pessoas já falecidas, como Gal Costa, Elis Regina, Nara Leão e Maysa, o acervo parece ser uma forma de dar conta das múltiplas imagens e registros acumulados ao longo da carreira, compartilhados seja por sua raridade, ineditismo ou pela qualidade estética e com o objetivo de criar um repertório cultural comum entre os admiradores. O Acervo Sai de Baixo, na ocasião da morte da atriz Aracy Balabanian, usou o X para compartilhar homenagens e trechos do programa, mas deixou também essa mensagem:


Post do perfil Sai de Baixo no X (Ex-Twitter)

Acervos da internet são a materialização da necessidade de arquivar na era digital, da profusão de imagens, e são parte de uma memória cultural digital permanentemente em construção. Mas também são um arquivo de sentimentos, onde há investimento afetivo da comunidade que se mobiliza e se engaja nessas iniciativas. Como pesquisadora da história social e cultural, e fã de carteirinha de muitos artistas, mais de uma vez encontrei possíveis fontes, a exemplo de matérias de revista, fotos e documentos raros nos acervos que acompanho, e frequentemente fico intrigada com as escolhas de conteúdo, a dedicação dos criadores e o espírito colaborativo que move a manutenção dos acervos, principalmente frente a desafios como questões legais de direitos autorais e reprodução.


Os acervos das redes sociais são um exemplo de um arquivo autônomo, comunitário, que existe independentemente das instituições tradicionais, singular por conta da sua relação com uma comunidade ampla de consumidores desse conteúdo. Mais do que tudo, o grande número de iniciativas mostra que os produtos/expoentes da cultura brasileira, seus artistas e suas personalidades mobilizam afetos e desejos de preservar uma memória visual e coletivizá-la através da internet. Nem apenas fã-clube, nem arquivo tradicional, os acervos das redes sociais preenchem uma lacuna deixada por instituições que não incorporam certos temas ou gêneros de registros, ao mesmo tempo em que articulam uma comunidade e uma rede, transformando-se em arquivo alternativo.


 

Referências:

CVETKOVICH, Ann. An Archive of Feelings: Trauma, Sexuality and Lesbian Public Cultures. Durham: Duke University Press, 2003.

DE KOSNIK, Abigail. Rogue Archives: Digital Cultural Memory and Media Fandom. Cambridge: The MIT Press, 2016.

GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

LUCCHESI, Anita. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, [S. l.], n. 2, 2014.

MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (Org.). Que história pública queremos? / What public do we want?. São Paulo: Letra e Voz, 2018.

VARELLA, F. F.; BONALDO, R. B. Todos podem ser divulgadores? Wikipédia e curadoria digital em Teoria da História. Estudos Ibero-Americanos, [S. l.], v. 47, n. 2, p. e38806, 2021.


OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. Acervos em redes sociais: memória cultural digital no Brasil. História da Ditadura, 12 mar. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/acervos-em-redes-sociais-memoria-cultural-digital-no-brasil. Acesso em: [inserir data].



Comments


bottom of page