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Foto do escritorBreno Tommasi

A criação do Serviço de Proteção aos Índios e a reação conservadora

Atualizado: 20 de dez. de 2022

O telégrafo não era exatamente uma inovação no começo do século XX: foi inaugurado no Brasil em 1857, ligando a Praia da Saúde, no Rio de Janeiro, à cidade serrana de Petrópolis. Este, entretanto, não deixou de ser associado ao desenvolvimento tecnológico da época e era exaltado enquanto manifestação e “precursor do progresso”, termo tão valorizado no período e gravado na bandeira do Estado republicano. O papel desses instrumentos da “civilização” na chamada conquista ordenada do interior brasileiro foi fundamental a um projeto que buscou sua legitimação em discursos de exaltação do passado. Como aponta a historiadora Laura Antunes Maciel:


Se, no passado, os bandeirantes teriam sido os ‘criadores da geografia da Pátria’, no alvorecer do século XX cabia à engenharia – com o telégrafo e a estrada de ferro – orientar a penetração e a ocupação da hinterlândia brasileira. A crença no papel transformador da ferrovia e do telégrafo, capazes de povoar e ‘civilizar’ os locais mais ermos e distantes, não era nova e impregnou com frequência o ideário do poder local, ocupando durante longo tempo os estadistas brasileiros desde o Império. Com a República, esses dois produtos da técnica e do engenho humano, transformar-se-iam em pontos de apoio para o sonho nacionalista da conquista ordenada dos territórios do Brasil Central.

Apesar da exaltação aos bandeirantes, no século XX, o dever de ocupação dos interiores era expressamente dos militares, historicamente responsáveis pela defesa do território e pela divulgação e consolidação dos símbolos nacionais. O Exército, agente na implementação da República, atribuía a si próprio o papel de levar, para além das fronteiras da “civilização”, os signos nacionais que lhe atribuíam sentido. Outra questão que tornava fundamental a atuação dos militares nos interiores brasileiros era estratégica, mais especificamente o debate sobre a defesa territorial da nação. A formação da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas, ainda sob o Império, tinha esse fim diante do desastre militar da invasão paraguaia ao estado de Mato Grosso durante a Guerra do Paraguai (1865-1870).


Rondon mostra um relógio a índios cainãs. Reprodução.

Diferentes comissões foram organizadas objetivando estabelecer linhas telegráficas que interligassem regiões do interior brasileiro ao centro político da nação. Após uma missão comandada pelo Marechal Deodoro da Fonseca fracassar na meta de interligar três cidades do interior do Mato Grosso (Corumbá, Coimbra e Cuiabá), em 1888, foi criada a “Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Cuiabá ao Araguaia”, em 1890, sob comando do major Antônio Ernesto Gomes Carneiro. Um dos membros dessa comissão era o alferes-aluno Cândido Rondon, que lembraria anos mais tarde de forma positiva sobre a atuação de Gomes Carneiro na relação com os índios no decorrer dos trabalhos.


A maior parte do trajeto que os engenheiros deveriam cobrir, de Cuiabá a Goiás, era ocupada por indígenas da etnia Bororo. Esse grupo era hostil à presença dos colonizadores por causa de diversos atos de violência contra eles praticados e, em alguns momentos, ameaçaram os integrantes da comissão. A resposta de Gomes Carneiro, entretanto, foi de proibir qualquer reação violenta por parte dos seus subordinados. Para tanto, mandou afixar placas ao longo do traçado da linha com os dizeres “quem, dora em diante, tentar matar ou afugentar os índios de suas legítimas terras, terá de responder por esse ato, perante a Chefia da Comissão”.


Com o propósito de evitar maiores conflitos com as populações indígenas, em 1892, finalizaram os trabalhos, já que as regiões de Araguaia à Uberaba estavam devidamente interligadas, daí ao Rio de Janeiro, então capital federal. A conservação dessa linha ficara a cargo de Cândido Rondon, engenheiro-militar, duplamente marcado por uma orientação humanística: na teoria, pelos valores positivistas e, na prática, pela postura de Gomes Carneiro. Mediante a necessidade de reparos na linha Cuiabá-Araguaia, Rondon trabalhou como chefe de um grupo de militares entre 1893 e 1898. Nesse período, ele procurou transmitir seu ideal expresso no lema “morrer, se necessário for; matar nunca”.


Descendente de indígenas Terena, Bororo e Guará, Rondon ingressou ainda jovem nas Forças Armadas. Partidário da filosofia Positivista, quando ainda um alferes-aluno defendeu o abolicionismo e a República em um momento politicamente conturbado. Com a criação da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Mato Grosso (1900-1906), ficaria encarregado da sua chefia. Por meio da sua atuação nessa comissão, Rondon esteve em contato direto com grupos indígenas e construiu uma relação pacífica e de cooperação mútua com essas populações.


Ao longo dos trabalhos da Comissão Rondon, como ficaria conhecida, o militar se encarregou da defesa dos indígenas contra os abusos dos fazendeiros, ajudou a demarcar terras, a assegurar o direito dos índios a elas e forneceu ferramentas para tornar o trabalho de subsistência mais fácil e ganhar a confiança e o apoio daqueles grupos. Os objetivos e os resultados da sua Comissão devem ser compreendidos em partes, todas fundamentais à compreensão das origens e funções que o Serviço de Proteção aos Índios desempenharia anos mais tarde.


Primeiramente, um dos principais motivos da criação da Comissão foi a missão civilizatória, a ser implementada pelo progresso técnico-científico presente na construção da linha telegráfica, da ferrovia e da rodovia. Partindo do ideário político da época, esses instrumentos da civilização seriam capazes por si mesmos de sedimentar as bases necessárias para a ocupação colonizadora e representavam o domínio do Homem sobre a natureza. A exploração científica e a conquista ordenada dos sertões, orientadas pela engenharia, pela cartografia, pela documentação imagética dos trabalhos da Comissão, tinham por finalidade incorporar a região central do Brasil às grandes zonas urbanas do país. Seus objetivos iam muito além de estabelecer uma forma de comunicação entre o interior e o centro de poder do Estado-nação: era uma missão ambiciosa de transformar radicalmente a função daquele território para a nação.


A defesa da unidade nacional e das fronteiras, a necessidade de criar bases para o desenvolvimento capitalista e a noção de ordem e o ideal de progresso – muito influenciados pela filosofia positivista – demandavam mecanismos para a sua efetivação. A expansão e consequente conquista dos interiores era, portanto, um projeto de governo com apoio dos militares. Nesse contexto, os indígenas não poderiam ser simplesmente ignorados pelo avanço que se projetava para o Centro-Norte brasileiro. Cândido Rondon, ao longo dos trabalhos da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas, buscou estabelecer uma relação pacífica e mesmo amistosa com diversos grupos contatados.


Na sua atuação em defesa dos indígenas – muito influenciada por uma noção evolucionista –, o engenheiro-militar transmitiu a seus superiores e aos gerentes do Estado brasileiro a necessidade da criação de um órgão oficial responsável por proteger e tutelar os indígenas a fim de assegurar seu desenvolvimento em direção ao estado positivo. A vasta documentação imagética produzida sobre a Comissão Rondon permite vislumbrar essa perspectiva acerca das potencialidades dos indígenas, em que parte considerável do acervo deu conta de registrá-los fardados e vestidos com roupas “civilizadas”.


A construção do papel do Exército, nesse período, revela a posição que a ele seria atribuída anos mais tarde. No seu discurso, caberia aos militares a nobre missão de investir contra um interior selvagem, a fim de conquistá-lo e convertê-lo em domínio do Estado e da República, em prol do povo brasileiro. A intensa participação de geógrafos, biólogos, cartógrafos, entre outros cientistas, ajudou a exercer esse controle, uma vez que aos militares coube mapear as áreas “descobertas”, sobrepondo seus conhecimentos aos dos indígenas ao renomear grande parte do ambiente com termos “civilizados”, como nomes de patronos da República.


Com argumentos deste tipo, engenheiros e militares justificaram as variadas formas de “conquista” do sertão e suas populações, pensadas como cruzadas civilizadoras, ao mesmo tempo que se começa a delinear, no interior do Ministério da Guerra, noções que incorporam a ideia de expansão do conhecimento sobre o território, formando uma consciência geográfica da nação, criando os instrumentos para sua ordenação e controle e para a defesa da soberania brasileira face aos países limítrofes.

Enquanto os trabalhos de Rondon se desenrolavam no interior, outro movimento tinha espaço nos meios urbanos. Surgia uma oposição conservadora ao crescimento dos debates sobre o lugar do indígena brasileiro na sociedade. De um lado, a Igreja Católica, que perdia cada vez mais espaço dentro da estrutura laica do Estado. Diante dos planos de Rodolfo Miranda, então Ministro da Agricultura, de criar um órgão destinado a dar assistências aos indígenas, orientado por princípios não-clericais, a imprensa católica do Rio de Janeiro iniciou uma campanha contra o projeto e contra o próprio ministro.


Reprodução.

Por outro lado, surgiam cientistas, como Hermann von Ihering, que afirmavam a incapacidade dos indígenas de se adaptarem aos novos tempos e, mediante seu estabelecimento enquanto barreiras ao avanço da modernidade, do progresso e da civilização, só lhes restaria a extinção. Ihering confrontava, portanto, o crescente discurso humanístico alimentado pelos positivistas. Ao seguir uma interpretação deturpada do darwinismo, o diretor da seção de zoologia do Museu Paulista buscou justificar os genocídios indígenas observados em São Paulo e Santa Catarina, onde os índios eram alvos para os “agentes da civilização”.


Destaque também para a campanha anti-indigenista do Jornal do Commercio, segundo o qual a Igreja Católica vinha desempenhando com qualidade reconhecida o trabalho de atração dos indígenas. Defendia ainda que essas populações tinham igualmente culpa nas mortes de agentes da civilização e que a criação de um órgão para a sua proteção não passava de “sentimentalismo” do Ministro da Agricultura. Esse movimento fragmentado, mas relevante, demonstrou a existência de setores sociais contrários ao projeto de tornar uma atribuição do Estado a questão indígena e, mais especificamente, contra a experiência de se criar um órgão indigenista específico. Pautados em ideologias próprias, diferentes grupos iniciaram campanhas, objetivando estabelecer sua perspectiva e defender seus interesses.


O papel da imprensa nesse momento foi fundamental, promovendo a divulgação dessas ideias e, a partir do seu próprio posicionamento específico, estabelecendo um diálogo com diversos setores sociais. O empenho dos setores mais conservadores, entretanto, demonstrou para os defensores da autonomia do Estado diante da Igreja, a emergência de se aprovar a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Os movimentos em defesa da formação desse órgão foram encabeçados sobretudo pelo Apostolado Positivista, além de militares vinculados aos ideais rondonianos, o próprio Rondon, intelectuais e parte da imprensa mais progressista. Entre outras atribuições, apenas o Estado dispunha do aparato institucional necessário à proteção dos indígenas, bem como dos mecanismos de demarcação de terras e fiscalização contra a exploração e os abusos de latifundiários e colonos.


Marcado pela imagem de “novo bandeirante”, o tenente-coronel Cândido Rondon foi recebido como herói nacional no seu retorno ao Rio de Janeiro, em fevereiro de 1910. Sua influência, além de associar a imagem dos militares ao avanço para o interior, revelou ser “possível levar o progresso adiante, sem fazer guerra ao índio”. Havia uma forte campanha dos jornais da época a favor da causa de Rondon e diversos artigos e documentos sobre a questão indígena foram produzidos naquele momento. As manifestações em apoio à proposta política de Rondon cresceram, mas não foram exclusividade. Setores liberais, laicos e movimentos de tendência “científica” atuaram no sentido de tentar mobilizar a opinião a favor dos seus projetos.


Apesar das diferenças, todos concordavam sobre a necessidade de progresso e do avanço da civilização rumo aos interiores. No final, venceu a tendência liberal que exaltava o ideal republicano e que pensava o indígena segundo influências da literatura burguesa. Por meio de aprovação do presidente Nilo Peçanha, o projeto elaborado pelo Ministro da Agricultura, Rodolfo Miranda, saiu do papel e, em junho de 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A ausência da proposta de catequeziação do indígena, trocada pelo termo “proteção”, demonstrava a mudança na perspectiva das atribuições no trato dessas populações. Na chefia do órgão, foi empossado Cândido Rondon, responsável por implementar uma política indigenista oficial, marcada pelo discurso humanista e evolucionista do positivismo e pelo rigor castrense.


Do mesmo modo que o Estado, a educação e o casamento foram laicizados, era necessário separar também a presença da religião junto às populações indígenas. A diferença entre o ideal e o real, contudo, revela que apesar da laicização de múltiplas esferas da vida social colocadas sob a égide do Estado, a religião seguiu coexistindo com a ordem burguesa e tendo importante participação nas instituições estatais brasileiras. Os esforços laicizantes não impediram a atividade desses e de outros grupos e a questão indígena se mantém vinculada a atuação de missionários e instituições religiosas até os dias atuais, principalmente com o crescimento da interferência de missões ligadas às igrejas evangélicas.


 
  1. MACIEL, 1999, p. 168.

  2. “A resolução do chefe, de evitar luta com os índios, para não parecer que éramos invasores de suas terras e desrespeitadores de sua vida e propriedade, calou profundamente em meu espírito...”. VIVEIROS, Esther de. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro: Cooperativa Cultural dos Esperantistas, 1969, p. 77.

  3. VIVEIROS, 1969, Op. Cit., p. 65.

  4. Idem, p. 107.

  5. MACIEL, 1999, p. 168.

  6. Idem, p. 169.

  7. Idem, p. 168.

  8. Relatório dos Trabalhos Realizados de 1900 a 1906 pela Comissão de Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso, apresentado às autoridades do Ministério da Guerra pelo Major de Eng. Candido Mariano da Silva Rondon (como chefe da Comissão). Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1949.

  9. MACIEL, 1999, p. 172.

  10. Idem, 189.

  11. GAGLIARDI, 1989, p. 212.

  12. Idem, p. 218.

  13. Idem, p. 183.

  14. Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910.


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