Afinal, o que é uma ditadura?
Atualizado: 20 de dez. de 2022
Entre aqueles que não admitem que tivemos uma ditadura no Brasil, adotar essa denominação seria tomar partido, posicionar-se política e ideologicamente, o que não seria admissível entre profissionais das ciências humanas e sociais. Há quem use “revolução”, ecoando a fala dos generais, por meio de termo que é também empregado para caracterizar processos históricos tão distintos como a chegada de Vargas ao poder (a Revolução de 30), a derrocada do absolutismo na França (Revolução Francesa) ou o movimento bolchevique de 1917 (Revolução Russa). A saída seria, então, denominar aquele tempo um “regime”, garantindo a pretensa isenção. Entretanto, poucos especialistas no assunto se furtam a caracterizar tal período como uma ditadura. Por que isso acontece?
Hoje, nas ciências humanas e sociais, ninguém, – ou quase nenhum, visto que temos nos acostumado a romper as fronteiras do absurdo – acredita na possibilidade de uma postura isenta, completamente objetiva, do pesquisador na área de humanidades. Já sabemos que, necessariamente, no mesmo instante em que nos colocamos a investigar e conhecer o passado, expressamos escolhas e posicionamentos pessoais, inclusive éticos e políticos, diante dos temas que pesquisamos. Mesmo os documentos nos quais baseamos nossas pesquisas são leituras em algum nível subjetivas e, logo, parciais, sobre o passado. Por outro lado, isso não quer dizer que o conhecimento que produzimos seja mera opinião. Isso porque nos submetemos a métodos e técnicas específicos e devemos comprovar aquilo que afirmamos diante de outros pesquisadores. E é justamente esse processo social de crítica que constrói a efetividade do conhecimento que produzimos.
Nessa tarefa, uma ferramenta comum são os conceitos – segundo o dicionário: “o que se concebe sobre algo ou alguém no pensamento, na ideia”. Eles são definidos coletivamente, ou seja, conectados à vivência de determinada sociedade, em determinado tempo e variam historicamente. Um exemplo rápido: a “democracia” para os gregos antigos certamente não tinha o mesmo significado que para os revolucionários franceses ou para nós, hoje, ainda que algumas características permaneçam, de modo a justificar a relevância do conceito. Quando bem definidos, os conceitos possibilitam aos historiadores, sociólogos, cientistas políticos e outros especialistas estabelecerem enunciados mais precisos, detalhados, sobre aquilo que pesquisam, ao mesmo tempo em que firmam parâmetros de comparação e análise que são compartilhados por outros especialistas. Nesse sentido, quando afirmamos que os governos militares vigentes no Brasil entre 1964 e 1985 representaram uma ditadura, lançamos mão de um conceito específico, um conjunto de características claro e verificável para qualquer pesquisador, sobre aquela conjuntura histórica. Quem não o compreende, corre o risco de tirar conclusões erradas tanto sobre os textos que escrevemos, como sobre tal período histórico.
Leia o texto “Ditadura ou Regime?” (Imagem Unplash)
Uma controvérsia recente permite esclarecer como a imprecisão conceitual pode gerar desentendimentos históricos relevantes. Refiro-me às discussões nas redes sociais sobre a possibilidade do nazismo ser de esquerda. O partido alemão que levou Hitler ao Parlamento, tinha “socialista” em sua sigla – a palavra nazismo é uma compactação de “nacional-socialismo” – mas quem conhece ao menos um pouco da trajetória política dessa agremiação saberia dizer, sem qualquer medo de errar, que o partido nazista e sua prática social não foram semelhantes à de um partido socialista. A geleia em torno dos conceitos de esquerda, direita, socialismo e, novamente, ditadura, permitiu toda essa estranha polêmica, pois foi justamente a partir dessas noções mal estabelecidas que se derivaram outras, consagrando leituras que seriam inadmissíveis do ponto de vista do conhecimento histórico, por terem perdido sua conexão com as evidências que temos sobre o passado, comprovadas por livros, imagens, documentos oficiais, entre outras.
Se desejarmos debate histórico sério sobre os governos militares é preciso, pois, ter clareza sobre o que é uma ditadura e o que nos leva a caracterizar aquele período como uma. Esse é o exercício que pretendo fazer, de forma bastante resumida, neste artigo. De antemão, é possível afirmar que ditadura é um tipo de regime político. Sim, podemos chamar a ditadura militar brasileira também de “regime”, se considerarmos regime político propriamente um “conjunto de regras políticas” – assim como um regime alimentar é um conjunto de regras na alimentação. Porém é um regime político distinto daquilo que se convenciona chamar “democracia”. Em geral, consideramos ditaduras os regimes políticos que:
impuseram seu domínio político pela força, independentemente de expressões maiores de apoio popular, violando sistematicamente normas constitucionais e direitos humanos
A ditadura militar brasileira foi iniciada por meio de um golpe civil-militar que afastou o presidente João Goulart a partir da movimentação de tropas do general Olympio Mourão Filho, com o apoio de outros comandos militares e lideranças civis pelo país. Uma ação de força, que não estava prevista na Constituição Brasileira de 1946, então vigente, a qual definia, também, que os militares deveriam estar sob o comando do presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas, como ocorre em qualquer país democrático. Vale ressaltar que não havia unanimidade, nem mesmo entre as armas militares, sobre tal movimentação. Além disso, a partir de então, o governo militar acobertou desaparecimentos, torturas, assassinatos, e perseguições políticas sistemáticas comandadas por seus agentes mais radicais contra opositores.
Sexta feira, fim de tarde: a população se aglutina em frente a Central do Brasil a espera do presidente João Goulart. Rio de Janeiro, março, 1964. Arquivo Nacional, Agência Nacional, EH COC P 08001.08
Hoje, alguns defendem o legado da ditadura com base na premissa de que muitos concordavam com a deposição de Jango. Várias foram as manifestações de apoio à iniciativa militar, por exemplo, na grande imprensa, na UDN (partido político de oposição da época), na Igreja Católica, de empresários etc. Todavia, quando se apresenta esse tipo de argumentação, ignora-se duas poderosas evidências: 1) Parte expressiva dos defensores da saída de Goulart não desejavam uma ditadura – esperavam eleições gerais em 1965 – e passaram à oposição ao governo militar, quando Castelo Branco cancelou a realização do pleito e ampliou o próprio mandato. Dito de outro modo: foram mais numerosos os que defenderam o golpe do que os que sustentaram a ditadura que o sucedeu; 2) Pesquisas de opinião de março de 1964 (Ibope) apontam que o presidente João Goulart tinha boa aprovação popular, visto que em muitas das capitais brasileiras mais da metade da população votaria nele, caso houvesse a possibilidade de se candidatar em 1965.
restringiram severamente as liberdades individuais e de expressão
Os atos institucionais permitiram constantes violações dos direitos de liberdade individual e de expressão, que são valores fundamentais em regimes democráticos. Ao longo do período ditatorial, os governos militares lançariam mão de 17 diferentes instrumentos dessa natureza. A censura existiu desde os primeiros momentos após o golpe, quando sedes de jornais opositores e organizações políticas sofreram ataques do governo e de seus simpatizantes (como foi o caso do ataque ao Jornal Última Hora). Nos anos seguintes, foi ampliada e melhor organizada. Havia censura tanto de viés político, que vedava declarações de oposição ao governo, quanto à de diversões públicas, o DCDP (Departamento de Censura de Diversões Públicas), que decidia o que era passível de publicação em todas as manifestações culturais e artísticas da vida nacional, alegando uma suposta defesa da moral e dos bons costumes.
restringiram severamente as liberdades políticas, de associação e garantias jurídicas
Muitos dos apoiadores da ditadura iniciada em 1964 argumentam que tal regime possibilitou o funcionamento do Congresso e manteve eleições em vários níveis, e que não houve um grande ditador, mas rotatividade de presidentes, o que seriam evidências do caráter democrático dos governos militares. Ora, tal argumento não leva em consideração aspectos importantes da dinâmica estabelecida pelos próprios militares durante o período. Na prática, nos anos de 1960 e 1970, o governo manteve aparências democráticas, enquanto aprofundava os mecanismos autoritários.
Um exemplo disso é que embora o funcionamento do Congresso Nacional tenha sido mantido em boa parte da ditadura, essa instituição foi alvo de uma série de cassações, perseguições e restrições desde o primeiro governo militar. Não funcionou plenamente em nenhum momento do regime, portanto. Logo após o golpe, por exemplo, houve a “operação limpeza” que vitimou militares, funcionários públicos, mas também diversos políticos e parlamentares, que por seu discurso dissonante da “Revolução”, tiveram seus mandatos interrompidos ou foram ameaçados no exercício da profissão. Além disso, quando consideraram necessário, os generais-presidentes simplesmente fecharam o legislativo federal ou manipularam flagrantemente suas regras a seu proveito político, como foram os exemplos do fechamento do Congresso após o AI-5, em 1968, por Costa e Silva e o lançamento do Pacote de Abril, por Geisel, em 1977.
Leia o texto “Mitos da ditadura: eleições e democracia“. (Imagem Unplash)
Também os partidos políticos existentes no Brasil até então foram proibidos de continuarem existindo, tais como o PSD, o PTB, a UDN, criados em ambiente democrático, após a Segunda Guerra Mundial. O AI-2, de outubro de 1965, passou a permitir a existência de apenas dois partidos: o governista ARENA e o MDB, que exercia uma oposição com muitos cerceamentos. Houve ainda, intensa restrição do direito ao voto, sendo consagradas formas indiretas de escolha, ou mesmo simples indicações, eliminando a margem de discussão política – aspecto fundamental de uma sociedade democrática. No Brasil da ditadura militar não se votava diretamente para presidente da República, nem para governadores dos estados, para prefeitos de capitais, de cidades grandes ou consideradas estratégicas para a segurança nacional. Além disso, o debate e a propaganda política eram demasiado restritos, mesmo durante a abertura política.
construíram um aparelho de espionagem e eliminação de opositores para perpetuação no poder
Ainda em 1964 foi inaugurado o Serviço Nacional de Informações, o SNI, que vinha sendo arquitetado desde antes do golpe. Agências de informação, em democracias, são autorizadas a trabalharem para o presidente da República para o assessoramento em decisões. Quando incorrem em espionagem ou abusam de suas atribuições, correm o risco do escárnio público, com uma série de desdobramentos legais possíveis e punições para os responsáveis.
No caso do SNI nenhum desses constrangimentos aconteceu. Esses órgãos foram postos à serviço da perseguição de inimigos políticos da ditadura. Serviram, inclusive, ao planejamento das chamadas “operações”, que em outras instâncias do governo, possibilitaram inúmeras situações de tortura e abusos dos direitos humanos, conforme já mencionamos.
Nos anos seguintes ao golpe, e sob a proteção dos atos institucionais, os militares mais radicais puderam montar todo um aparato denominado Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN). O objetivo era claro: eliminar violentamente as oposições, garantir o controle da vida política nacional para a continuidade da “revolução”. As evidências de seu funcionamento são tantas quanto os assassinatos e desaparecimentos ocorridos no período, que foram garantidos pelo Estado sob tutela militar.
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Nenhuma ditadura terá sido igual à outra. E infelizmente não faltam exemplos de regimes desse tipo: Hitler, Stálin, Fidel, Mao, as ditaduras militares anticomunistas latino-americanas… Em virtude disso, uma série de classificações são possíveis. Todavia, a identificação de distinções, inclusive políticas e ideológicas, bem como de particularidades históricas entre elas, não deve servir ao obscurecimento do conceito ou sua aplicação indiscriminada. Em um breve joguete comparativo, uma bicicleta não deixa de ser uma bicicleta se tem um de seus pneus furados. De modo semelhante, uma ditadura não pode deixar de ser considerada como tal, se temos evidências, provas, sobre as características que mencionamos. Novamente, a reflexão histórica acurada pode colaborar para uma melhor qualidade de nossa democracia, essa instituição que, parece, ainda inspira cuidados em nossos tempos.
Diego Knack é historiador, professor de História e editor do site História da Ditadura.
Como citar este artigo:
KNACK, Diego. Afinal, o que é uma ditadura? In: História da Ditadura – novas perspectivas. Disponível em: http://historiadaditadura.com.br/destaque/as-ditaduras-como-objeto-de-estudo. Publicado em: 31 Out. 2017. Acesso: [informar data].
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