Afinal, o que há de tão inaceitável no bolsonarismo?
O ano de 1979 foi chave na transição da ditadura militar para o regime democrático. Nele, foi aprovada a Lei de Anistia, que abriu caminho para o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos. A despeito de seus enormes limites, a anistia foi um marco para estabelecer uma premissa que seria consolidada quase dez anos depois, com a Constituição de 1988: a eliminação física de opositores políticos não poderia mais fazer parte do jogo na nova ordem.
Com esse consenso, a Nova República tentou banir a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado como instrumentos da disputa política no sentido estrito do termo – ou seja, no âmbito da política institucional. Foi uma vitória política e simbólica da luta iniciada ainda na virada dos anos 1960, em torno da bandeira dos direitos humanos para os prisioneiros políticos.
Em 79 também houve uma pesquisa de opinião no Rio de Janeiro em que pela primeira vez os moradores definiram a “segurança” como o principal problema da cidade. Era a afirmação da “violência urbana” como uma questão incontornável no debate público. Em torno desse problema, duas grandes correntes de opinião se formaram. Uma defendia o endurecimento da repressão estatal contra os sujeitos vistos como causadores desse novo mal: os “bandidos” e os “vagabundos”; outra apontava as raízes sociais da violência e buscava estender os direitos humanos também para esses indivíduos.
Nas eleições gerais de 1982 essas correntes de opinião se confrontaram, e no Rio de Janeiro e em São Paulo foram eleitos governadores defensores da segunda tese. Brizola no Rio e Franco Montoro em São Paulo tentaram governar sob a premissa de que a superação da ditadura deveria significar também a garantia de que os direitos humanos valeriam para todos. Os símbolos desses esforços foram a mudança na atuação da polícia nas favelas, no Rio, e o tratamento conferido aos presos ditos “comuns”, em São Paulo.
Os ataques que se voltaram contra essas experiências – capitaneados pela grande imprensa e por políticos conservadores – serviram para consolidar, em amplas parcelas da população desses estados, a ideia de que “direitos humanos são para humanos direitos”. Neste caso, não houve vitória simbólica do discurso de defesa dos direitos humanos para moradores de favelas e para presos que não eram identificados como “políticos”.
Assim, quando o país se viu diante da tarefa de construir uma nova ordem constitucional nos anos de 1987 e 1988, parecia haver um grande acordo entre os atores políticos. De um lado, a ideia de “violência política” remetia a uma história de violações de direitos promovidas por agentes estatais, as quais não deveriam se repetir no regime vindouro. De outro lado, a expressão “violência urbana” apontava para um universo em que as práticas violentas de agentes do estado eram não apenas toleradas, mas até incentivadas.
Evidentemente, os públicos-alvo dessas violências não eram os mesmos. Enquanto a garantia de direitos humanos para os participantes da disputa política resguardava as vidas e os direitos de uma minoria branca das classes mais abastadas, as práticas violentas promovidas pela polícia no combate à “violência urbana” atingiam a população negra e moradora das favelas e periferias.
Apenas nesses termos é que foi possível para um país recém-ingresso numa ordem democrática, guiado por uma Constituição que recebera o epíteto de “cidadã”, encarar com certa naturalidade a série de chacinas que marcaram os primeiros anos da década de 1990. Acari (1990), Carandiru (1992), Candelária (1993), Vigário Geral (1993) e Eldorado dos Carajás (1996) são alguns dos massacres que serviram de cartão de visitas da nossa democracia.
Esta tensão foi constitutiva da Nova República. Enquanto os casos de violência política foram reduzidos (mas nunca totalmente superados, vale marcar, especialmente no campo), as taxas de letalidade policial seguiram aumentando exponencialmente. Entre 1998 e 2020, o Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro aponta para 20.532 mortes decorrentes de intervenção policial – os “autos de resistência”.
Muitos atores políticos encarnavam esta tensão, preferindo não enxergar suas contradições. Assim, ao mesmo tempo em que aprofundava sua dimensão repressiva, o Estado brasileiro criou três comissões federais, todas por meio de votações no Congresso Nacional, para reparar a violência política cometida na ditadura – a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e a Comissão Nacional da Verdade. A pauta das violações de direitos humanos do “passado” foi capaz produzir efeitos institucionais significativos, ainda que seus limites tenham sempre sido apontados pelos movimentos sociais de familiares de vítimas.
Mas a mesma disputa existente desde o início dos anos 1980 seguiu existindo. De um lado, atores políticos que formulavam uma crítica à violência do Estado no presente e propunham a extensão dos direitos humanos para o conjunto da população. Movimentos sociais de vítimas da violência policial, movimento negro, organizações de direitos humanos, ONGs, acadêmicos e alguns políticos atuantes nas esferas institucionais compunham essa corrente de opinião.
De outro lado, havia aqueles setores que queriam restringir cada vez mais o rol de “humanos” dignos de ter seus direitos humanos respeitados. Poucas figuras encarnaram de forma tão simbólica essa visão de mundo quanto o deputado federal Jair Bolsonaro, que dedicou 28 anos de sua trajetória parlamentar a defender não só que “bandido bom é bandido morto”, mas também que “quem procura osso é cachorro”.
Foi este parlamentar que teve capacidade de aglutinar, em torno de sua visão de mundo, uma heterogênea coalizão que o levou à presidência da República em 2018.
Agora, estamos às voltas com a questão sobre como tirá-lo do poder. A grande imprensa, partidos de direita e centro-direita e antigos aliadas de Bolsonaro engrossam o coro de que é preciso se livrar do presidente para defender a democracia. É preciso, contudo, colocar a questão: afinal, o que há de tão inaceitável no bolsonarismo para esses atores? A resposta é evidente: a ameaça de um golpe de Estado capaz de recolocar na mesa a violência política que marcou a ditadura militar instaurada com o golpe de 1964. Dória tem medo de ser o novo Carlos Lacerda.
É evidente que as forças progressistas e de esquerda devem compor com o arco mais amplo possível de atores políticos para impedir retrocessos ainda maiores. Mas isso não nos exime de colocar a questão sobre o dia seguinte, sobre a ordem política que queremos construir no pós-Bolsonaro.
Devemos retornar ao cenário que marcou os 30 anos da Nova República, em que algumas dimensões da violência do Estado são condenadas enquanto outras são autorizadas, incentivadas e comemoradas? Quando começarmos a formular a palavra de ordem “Bolsonaro Nunca Mais”, o que vamos querer dizer? Que nunca mais um presidente pode convocar policiais militares para uma manifestação? Ou que nunca mais as polícias podem entrar na Favela do Jacarezinho e deixar 29 mortos em uma chacina?
Estas questões evidentemente têm a ver com o dia de amanhã, o 07 de setembro. Porque afinal, agora parece ter se tornado um amplo consenso do risco que as PMs representam. Mas não deixa de ser intrigante que apenas a esta altura do campeonato, depois de produzir mais de vinte mil mortes no estado do Rio de Janeiro, essa instituição seja vista como uma ameaça à democracia.
As notícias de hoje dão conta de que governadores, preocupados com o risco de insurreição, têm tentado estabelecer limites para a presença desses policiais nas manifestações. Mas o quanto essas proibições pontuais serão efetivas se continuarmos autorizando, incentivando e comemorando a violência desses mesmos agentes quando ela é promovida nos becos e vielas contra os corpos negros? Que chances temos de impedir o recrudescimento da violência política, se ao mesmo tempo legitimamos uma violência socialmente alastrada?
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