A História e o presente: considerações sobre um campo de estudos
Atualizado: 9 de mai. de 2022
No dia 9 de janeiro de 2022, foi divulgada, no jornal O Globo, uma pesquisa que indicava os “fatos mais importantes” da História do Brasil. A investigação, encomendada pelo Observatório Febraban ao Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), traz alguns dados importantes para nós, historiadoras e historiadores. Para além da questão importantíssima de que, entre os dez acontecimentos históricos mais lembrados pelos entrevistados, os três primeiros tenham sido a Abolição da escravidão, a Independência e a Proclamação da República, desperta atenção ainda o fato de que todos os demais episódios são próximos temporalmente, podendo ser inseridos na História do Tempo Presente. É, portanto, sobre este campo de estudos que este texto pretende mobilizar seus esforços argumentativos.
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O Observatório Febraban encomendou a mencionada pesquisa ao Ipespe no final de 2021. Nela, as pessoas ouvidas citaram aqueles fatos que consideram os mais importantes de nossa história. Contudo, antes de analisar esses fatos, cabe destacar alguns detalhes desse estudo: o nome da investigação é Percepções e expectativas para 2022: os 200 anos da independência do Brasil; foram entrevistadas três mil pessoas adultas, sendo sua maioria identificadas com o gênero feminino (51%), recebendo até dois salários-mínimos (54%), com escolaridade de nível médio (41%) e de idades variadas – a maior parte entre 25 e 44 anos (39%); a maioria dessas pessoas são da região Sudeste do país (43%). A partir da pergunta “Fazendo um balanço da história do Brasil, quais desses momentos o(a) Sr(a) acha que foram os mais importantes?” – que aceitava respostas múltiplas –, a pesquisa considerou o total de menções para ranquear os fatos mais importantes da História do Brasil segundo os entrevistados.
Feitas essas breves considerações sobre o estudo, vemos que logo após as menções à Abolição (31%), à Independência (18%) e à Proclamação da República (8%), em quarto e quinto lugares aparecem, respectivamente, O fim dos governos militares e a redemocratização de 1985 (8%) e o Impeachment de Dilma Rousseff (8%). Em seguida, aparecem a Operação Lava-Jato (6%), a Implementação do Real (4%), a Implementação do Bolsa Família (4%), o Impeachment de Collor (3%) e o Golpe de 1964 e a ditadura militar (2%). Ou seja, dos dez processos históricos divulgados pela pesquisa, sete são eventos situados no nosso tempo presente, podendo ser inseridos, portanto, no campo de estudos da História do Tempo Presente (HTP).
O que seria essa HTP e quais suas características? Para construirmos uma resposta satisfatória, é preciso tornar patente, inicialmente, o fato de que a proximidade temporal não qualifica, por si só, um estudo inscrito na História do Tempo Presente. Como paradigma historiográfico passível de reformulações, a HTP está relacionada, conforme Ana Luiza Andrade e Elisangela Machieski (2021, p. 11),
à forma como lidamos com o tempo e estabelecemos relações temporais mediadas por operações próprias do mundo pós-guerra: as memórias, seus usos e abusos; os testemunhos vivos de um passado-presente; os monumentos e homenagens públicas; as mídias e comemorações.
Isso é importante porque tal concepção se baseia na “não contemporaneidade do contemporâneo”, de acordo com François Dosse (2012, p. 6). Em outras palavras, esta perspectiva, com a qual estou de acordo, baseia-se na ideia de um passado que perambula pelas distintas temporalidades e que se mantém latejante nos dias atuais.
Para além da presença desses passados que não passam, ou seja, que se fazem presentes na atualidade, as modificações que vêm ocorrendo no papel que é conferido à História na contemporaneidade são um elemento fundamental para compreendermos esse campo de estudos que é a História do Tempo Presente. Neste sentido, historiadoras e historiadores são chamados frequentemente ao debate público para expor suas análises em tempos de convulsão social e crises políticas (LACOUTURE, 1990), ou ainda, em momentos em que diferentes narrativas buscam reescrever o passado com intuito de utilizá-lo como arma política (LOHN, 2019).
Apesar desses anseios por explicações, por muito tempo a historiografia buscou interditar análises que tivessem como interesse de estudo passados que não passam, ou mesmo fatos contemporâneos aos estudiosos. Aqui não cabe entrar no mérito dos argumentos que foram mobilizados para que isto ocorresse, fazendo com que tais análises ficassem a cargo de cientistas sociais. Destaca-se, porém, que, em 1949, Marc Bloch, em seu livro publicado postumamente, alertava que a História é, antes de qualquer coisa, o estudo da ação humana no tempo. Portanto, pouco importa se os agentes desse passado estão entre nós ou se já pereceram. O importante, de fato, é a metodologia com que se realizará esses estudos.
Nesse sentido, o crescente apetite pela ação dos sujeitos no contemporâneo, como atesta a pesquisa mencionada, fez com que alguns historiadores franceses iniciassem a construção dos primeiros espaços institucionais com objetivo de estudar o presente, ou de tornar o presente uma temporalidade historicizável. Para Henry Rousso (2016), a HTP é um campo que se institui a partir da demanda social por explicações históricas, pelo quase irremediável envolvimento judicial com os fatos tratados, pelo trato privilegiado à memória e ao testemunho. Ademais, Rousso comenta que a HTP possui fronteiras móveis, isto é, o marco inicial é constituído pela última catástrofe, cabendo às historiadoras e aos historiadores definirem esse marco, já que a catástrofe irá variar em cada local.
Seja qual for o evento catastrófico, Adam Schaff (1987) argumenta que estudar o presente é um caminho marcado por obstáculos e percalços, já que, ao contrário do estudo do passado mais distante, os eventos atuais ainda não nos revelaram seus efeitos completos. Além disso, João Fábio Bertonha (2012) argumenta que historiadoras e historiadores do tempo presente devem aprender a lidar com a abundância de fontes e com a necessidade de se produzir um balanço delas e devem estar abertos para possíveis mudanças de perspectivas sobre os processos recentes ao longo da trajetória de pesquisa. Assim sendo, a HTP possui condições teórico-metodológicas específicas que outros campos da História não possuem. Porém, os demais campos da História também possuem suas próprias especificidades, e isso não justificaria a invalidação de suas pesquisas. Uma especificidade que, inclusive, foi utilizada como recurso argumentativo para invalidar pesquisas em história do tempo presente é a questão do distanciamento temporal. Contudo, tal distância não constitui um impeditivo, pois, conforme afirma Márcia Motta (2012, p. 35), “para se fazer história do tempo presente é preciso manter um distanciamento que não é dado pelo tempo, mas sobretudo pela ética”.
Esse conjunto de possibilidades e imposições faz com que nós, historiadoras e historiadores, passemos a encarar novos limites e novas dificuldades, já que atualmente somos interpelados pela exigência cada vez mais presente de uma consciência histórica. Essa exigência manifesta-se na pesquisa citada no início do texto e pelos fatos lembrados pelas pessoas: mesmo sem saberem, elas elencaram processos históricos que são contemporâneos a elas e estão inseridos no campo da HTP.
Seria isso uma consequência das novas mídias sociais? Será que isso se deve à noção de presente que as pessoas entrevistadas possuem – isto é, um presente que se funde e confunde com a ideia de que o que vivenciamos é mais importante do que o restante, justamente porque “fizemos parte” dessa história? Por qual razão a maioria dos fatos lembrados são de nossa história recente? Talvez não haja uma resposta única, mas várias que se entrelaçam e que, em conjunto, façam mais sentido.
Mais do que trazer afirmativas, o objetivo desse texto é trazer questionamentos e argumentar que a História do Tempo Presente, enquanto campo em constante transformação, pode nos ser útil em tempos tão confusos e obscuros como o que vivemos. Neste sentido, compreender sua dinâmica, sua historicidade e seus próprios paradigmas é fundamental, pois isso pode nos auxiliar no presente, já que, cada vez mais, somos confrontados com temáticas e problemas que superam nossa capacidade de propor alternativas e respostas.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Ana Luiza Mello Santiago de; MACHIESKI, Elisangela da Silva. Apresentação do dossiê: Sobre as querelas do Tempo (Presente). Em Tempo de Histórias. Brasília, n. 39, p. 11-16, jul./dez. 2021.
BERTONHA, João Fábio. Problemas e questões da História do Tempo Presente. Cadernos de História, Mariana, v. 7, p. 8-13, 2012.
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Revista Tempo e Argumento. Revista do Programa de Pós-graduação em História, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 5-22, jan./jun. 2012.
LACOUTURE, Jean. A história imediata. In: LE GOFF, Jacques el al. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LOHN, Reinaldo Lindolfo. Reflexões sobre a história do tempo presente: uma história do vivido. In: REIS, Tiago Siqueira et al. Coleção História do Tempo Presente: volume 1. Boa Vista: Editora da UFRR, p. 11-26, 2019.
MOTTA, Márcia Maria. História, memória e tempo presente. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
Observatório FEBRABAN 2021. Percepções e expectativas para 2022: os 200 anos da Independência do Brasil.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Créditos da imagem destacada: A Queda do Muro de Berlim (09/11/1989). Autor desconhecido. Wikimedia Commons.
Como citar este artigo:
CONSTANTE, Bruno Erbe. A História e o presente: considerações sobre um campo de estudos. História da Ditadura, 2 mar. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/ahistoriaeopresenteconsideracoessobreumcampodeestudos . Acesso em: [inserir data].