A incômoda tarefa de contar os mortos e o assombro dos governos autoritários
Atualizado: 9 de mar. de 2022
É uma verdade: os mortos não devem aparecer, saltar a fronteira do mundo deles. Só vêm desorganizar a nossa tristeza. (COUTO, 2013, p. 115).
Relutei muitas vezes em inaugurar esta coluna tratando de mortos – para ser mais exato, da contabilidade das vidas perdidas no campo brasileiro. Mas senti que não poderia, sob o risco de despolitizar a minha escrita, deixar de ressaltar o genocídio em curso no Brasil, que já soma mais de 558 mil vidas perdidas pela pandemia de Covid-19, resultado de uma política desastrosa de um governo que despreza a vida – especialmente a dos mais pobres, dos mais vulneráveis.
Fomos nos habituando, por vezes com uma desconcertante sensação de normalidade, a contabilizar os mortos, o balanço diário nos canais de imprensa, as curvas nos gráficos indicando as vidas que se foram. O que pode parecer, à primeira vista, a banalidade da morte despojada de qualquer sensibilidade, se constitui em um importante mecanismo para perscrutar o projeto de política que organiza nossa existência.
Falarei, portanto, de necrocontabilidade, e não se trata de nenhum trabalho de coveiro, mas de um trabalho sensível, persistente e corajoso, de alguns sujeitos sociais que, ainda na vigência do regime militar brasileiro, ousaram lembrar-se das vítimas da violência da ditadura no campo, de recolher seus corpos, contabilizar e expor nacionalmente o terror que se abateu sobre os trabalhadores rurais e seus aliados na luta pela terra. E, ao fazerem-no, reinserem a trajetória de homens e mulheres no espaço público, recolocam em cena seus nomes, suas histórias, suas lutas.
Por necrocontabilidade denomino os mecanismos de pesquisa, investigação, contabilidade e publicação dos registros do número de mortes em determinadas situações e conjunturas históricas. Empreendimentos de contabilidade dos mortos que não se resumem apenas à apresentação de estatísticas, mas que se prestam ao trabalho de explicitação dos projetos necropolíticos em curso, denunciando-os e cobrando soluções.
Ora, os mortos, quando invadem a cena pública, sobretudo se dispostos em listas e tabelas, geram desconforto, por duas razões que me parece fundamental explicitar: 1) eles evidenciam a incapacidade dos poderes instituídos de promover e garantir a vida; 2) eles desnudam formas de governo orientadas especialmente para a produção da morte, que a tomam como paradigma de governo – ou, nos termos de Achille Mbembe (2018), “necropolítica”.
Os registros da agonia no campo.
No Brasil, o mais duradouro trabalho de sistematização dos conflitos no campo e de contabilidade dos mortos é o da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Desde 1985, a Comissão publica os Cadernos de Conflito no Campo, mas já realizava o registro das situações de violência contra os trabalhadores rurais desde 1980. No relatório parcial que ia até julho de 1981, a CPT registrou o assassinato de 47 lavradores, lideranças e aliados na luta pela terra. O total de conflitos por todo o Brasil era de 916, indicando o desassossego e a agonia das populações rurais.
Nos primeiros registros da CPT, há uma clara demarcação do caráter das tensões no campo, não na ótica dos conflitos isolados e motivados por paixões particulares, como geralmente são enquadrados até hoje. Eles apresentam as diversas formas de violência (e não apenas os assassinatos) como desdobramentos da política agrária da ditadura, que fez a opção pelo latifúndio, pelos empresários rurais e pela expansão do capital no campo, em detrimento dos trabalhadores rurais e dos indígenas, expulsando-os e tornando impossível sua subsistência. Portanto, violências que se dão como consequência das tecnologias de governo, dispositivos que pressupõem a apropriação capitalista da terra, de um lado, e o controle das populações rurais, de outro.
É preciso ressaltar que os anos finais da ditadura representaram, para o campo, a intensificação da vigilância, do controle e da repressão, em um processo que José de Souza Martins (1984) denominou de “militarização da questão agrária”. Faz parte desse processo a criação, no ano de 1980, do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT) e do Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas (GEBAM) que, sob o argumento da regularização fundiária, promoveram uma série de conflitos, atormentaram a vida das comunidades rurais, ameaçando e intimidando-as – fora as denúncias de corrupção que cercavam esses órgãos.
Faz parte, também, a criação do Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, em 1982, que teve a chefia do general Danilo Venturini, experiente no controle político no campo. Para Martins, o novo Ministério – que denominou de “Quartel da terra” – representava a tentativa de esvaziamento dos sindicatos como instrumentos de reivindicação e negociação dos trabalhadores, bem como de afastamento dos partidos políticos da questão da propriedade fundiária. Além disso:
Com a distribuição de títulos de terras, por mãos militares, a camponeses sem terra, como forma de esvaziar a luta sindical no campo e de afastar setores de apoio como os partidos, e, principalmente, a Igreja, os militares usurpam o lugar dos porta-vozes políticos dos camponeses. (MARTINS, 1984, p. 27).
Em 1984, este esforço de contabilidade ganhara mais um reforço pela iniciativa que vinha da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG): o documento A violência no campo pela mão armada do latifúndio: 1981 a junho/1984: torturas, prisões, espancamentos, assassinatos, impunidade e expulsão dos trabalhadores de terra, apresentado pela entidade em abril daquele ano.
“Uma estatística macabra”, como o definiu a CONTAG, o documento reunia uma série de relatos de violências contra o sindicalismo rural, desnudando o que ali era chamado de “violência seletiva”, posto que visivelmente voltada para os “dirigentes sindicais, delegados sindicais ou líderes de comunidade”. O escopo primordial era evidenciar a escalada das arbitrariedades no campo e o martírio dos trabalhadores, o que se deu pela ênfase na comparação dos dados:
Em 1981, o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais denunciou 26 (vinte e seis) casos de violências e, em 1982, 41 (quarenta e um). Em 1983, eles subiram para 134 (cento e trinta e quatro). Os assassinatos de dirigentes sindicais, assessores e trabalhadores em luta pelos seus direitos, que foram 10 (dez) em 1980, 15 (quinze) em 1981, 16 (dezesseis) em 1982, foram 46 (quarenta e seis) em 1983, dos quais 17 (dezessete) só no Estado da Bahia. Nos seis primeiros meses de 1984, já tivemos mais assassinatos que durante todo o ano de 1980, 1981 e 1982. Entre janeiro e junho do ano em curso, foram assassinados, no Brasil, 21 trabalhadores e líderes sindicais. [...] em 1983, 1 (um) caso de violência a cada 3 (três) dia; 4 (quatro) assassinatos por mês. Em 1984, 1 (um) caso de violência a cada 3 (três) dias; 5 (cinco) assassinatos por mês.
Ora, a iniciativa da CONTAG somava-se aos dados da CPT, desnudando o modelo de tratamento dedicado aos trabalhadores rurais. Penso que a emergência destes dispositivos estatísticos dos conflitos, das mortes, das torturas, das prisões, dos despejos e de tantas outras formas de violação de direitos no campo instituem uma mancha, um enxovalho, um borrão a lembrar o desgaste do tecido da sociedade brasileira sob o poder dos generais, a corrupção das estruturas sociais, políticas e econômicas que, no campo, produzia mortos em demasia e corpos em agonia, resultado da manutenção de uma estrutura fundiária concentrada, excludente e expropriadora.
Já na vigência da chamada Nova República, foi a vez do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizar sua contabilidade dos mortos da ditadura. Em 1986, a entidade publicou o dossiê Assassinatos no campo: crime e impunidade – 1964-1985, uma obra de 217 páginas, resultado de dois anos de pesquisa encabeçada pelas sociólogas ligadas à CPT, Maria Cristina Vannucchi Leme e Wânia Mara de Araújo Pietrafesa. Cobrindo todo o período do regime autoritário, o dossiê registrou o assassinato de 1.123 trabalhadores rurais em todo o país.
No dossiê, os casos de assassinatos são apresentados em ordem cronológica e por estados da federação, acompanhados de informações pessoais dos camponeses, que lhes conferem um nome, uma idade, uma filiação, uma ocupação; além da autoria e o detalhamento do crime, as providências jurídicas e a fonte consultada. É um inventário da morte de centenas de homens e mulheres, jovens, idosos, adolescentes, crianças; lavradores, posseiros, lideranças sindicais, boias-frias, religiosos.
O “Brasil: nunca mais do campo” – disseram alguns sobre o dossiê – representou não apenas a revelação das arbitrariedades da ditadura na margem rural da sociedade, mas também um esforço de edificação da memória dos trabalhadores e da violência que sofreram durante o regime militar.
É claro que este trabalho não escapava da vigilância, do controle e da repressão do aparelho de informações da ditadura militar. É que a exibição da mortalidade que o regime produziu, a contabilidade macabra exposta em quadros, tabelas, gráficos, listas e imagens, descerrava a cortina que encobria a “transição higiênica” no Brasil. E uma das estratégias foi descrever a CPT como organização que “incita à luta de classes, tenta indispor os fiéis contra as autoridades governamentais e o sistema político vigente, por meio de um processo subliminar de associação de ideias, ou de contundentes críticas ao governo”.
Ora, faz parte dos governos autoritários realizar a detração de seus opositores, mormente quando escancaram o projeto de morte de sua política, sua opção pela destruição material dos corpos e das vidas que deveria cuidar. Não à toa o governo de Jair Bolsonaro tentou, por diversas vezes, negar a veracidade dos números de mortos pela Covid-19, minimizando as cifras diárias de perdas, zombando da dor e do sofrimento dos doentes e de seus familiares, ou, ainda, acusando a mídia de um complô que exploraria exageradamente o número de mortos no país.
Falsificar a realidade dos dados, modificar os números: até parece uma das passagens de 1984, a distopia de George Orwell que relata uma das manipulações do Ministério da Pujança:
As projeções do Ministério da Pujança, por exemplo, indicavam que a produção trimestral de botas chegaria a cento e quarenta e cinco milhões de pares. A produção efetiva ficara em sessenta e dois milhões. Ao reescrever as estimativas, porém, Winston baixara o número para cinquenta e sete milhões de pares, para dessa forma abrir espaço para as costumeiras declarações de que a cota de produção fora superada. (ORWELL, 2009, P. 55).
Fora da ficção que o Governo Federal insiste em imitar, resta-nos uma realidade dura e violenta, mormente para os pobres, os pretos, as populações periféricas do campo e da cidade, as comunidades indígenas e quilombolas, as pessoas LGBTQIA+. É preciso dizer que os dados da CPT para 2020 revelam o registro de 1.576 conflitos por terra – o maior número desde 1985 –, a morte de 1.038 indígenas pelo novo coronavírus, 270 óbitos entre as populações quilombolas também pela infecção do coronavírus, e 18 assassinatos no campo, das quais 7 eram indígenas. Houve também 35 tentativas de assassinato, sendo 12 direcionados aos indígenas. Das 159 pessoas ameaçadas, 25 são índios.
Dispostos assim, na frieza contábil do assombro das populações rurais, o gesto que possibilita o luto das vidas precárias aparece secundário. No entanto, é ele, o gesto, a disposição de recolher as informações, de quantificar as situações de conflito, de pesquisar os nomes e as circunstâncias dos crimes, de lembrar as vidas perdidas e lamentar os corpos violados, que deve ser evidenciado na hora de terminar este artigo. A CPT cumpre não apenas um trabalho de sistematização e de denúncia da violência do Estado brasileiro para com o seu povo, mas também um enquadramento que, no mesmo instante em que enluta a vida perdida, restitui a sua dignidade, considerando-a como vida passível de ser vivida, lembrada, pranteada. Um enquadramento que apela para o nosso compromisso ético e político diante das violações de direitos, posto que, como destaca Judith Butler:
Existem maneiras de enquadrar que mostram o humano em sua fragilidade e precariedade, que nos permitem defender o valor e a dignidade da vida humana, reagir com indignação quando vidas são degradadas ou dilaceradas sem que se leve em conta seu valor enquanto vidas. E há enquadramentos que impedem a capacidade de resposta, nos quais essa atividade de impedimento é realizada pelo próprio enquadramento efetiva e repetidamente – sua própria ação negativa, por assim dizer, sobre o que não será explicitamente representado (BUTLER, 2018, p. 118 - 119).
É sobre o que é apresentado, mas também como o é. E também sobre o que se deixa sem representação, sobre o que se julga indigno de figurar no discurso. A resposta ética e política já se realiza na própria decisão de representar a vida humana frequentemente desprovida de tal status. É esse o imperativo atual: que todas as vidas importem!
BIBLIOGRAFIA
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018
CONTAG. A violência no campo pela mão armada do latifúndio: 1981 a junho/1984: torturas, prisões, espancamentos, assassinatos, impunidade e expulsão dos trabalhadores de terra. Brasília, 1984.
COUTO, Mia. Vozes anoitecidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil: terra e poder: o problema da terra na crise política. Petrópolis: Vozes, 1984.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N1 edições, 2018.
MENDES, Alberto Rafael Ribeiro. Lembrar os mortos em combate pela terra: o MST reivindica a memória das vítimas da ditadura. Clio, Recife, v. 38, n. 1, p. 501 – 525, 2020.
MST. Assassinatos no campo: crime e impunidade – 1964 – 1985. 2ª edição. São Paulo: Global, 1987.
CPT. CPT: pastoral e compromisso. Petrópolis: Vozes, 1983.
CPT. Conflitos no Campo Brasil 2020. Goiânia: CPT Nacional, 2021.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SNI. Informação nº 109/19/AC/83. Boletim “Paneiro”, da Comissão Pastoral da Terra – Norte I. 25 de maio de 1983.
SNI. Denúncia contra o grupo executivo das terras do Araguaia-Tocantins – GETAT. Dossiê. 1984.
Em 03 de agosto de 2021, segundo o portal G1, o número de mortes era de 558.597 mil.
Em 20 de abril de 2020, ao ser questionado sobre o aumento no número de mortos pela Covid 19, Bolsonaro responde ao jornalista: "Ô, cara, quem fala de... Eu não sou coveiro, tá certo?". Ver G1.
Em 1984, ex-funcionários do GETAT denunciaram à Polícia Federal de Marabá uma série de supostas irregularidades cometidas por chefes executivos do órgão. Entre os acusados estavam João Batista Gomes (ex-chefe da Unidade Executiva do GETAT de Tucuruí/PA) e Zozilton Almeida Silva (Unidade Executiva de Araguaia). Entre as acusações em torno de João Batista, constavam a titulação de terras públicas em nome próprio e em nomes de familiares, titulação indevida para o nome do prefeito de Tucurí, Cláudio Furman, das terras que seriam desapropriadas pela Eletronorte, para que o prefeito pudesse gozar da indenização paga pela empresa. Consta da denúncia a produção de laudos de vistorias fantasmas nas terras a serem desapropriadas, identificando benfeitorias que renderam altos valores a Cláudio Furman. Quanto a Zozilton, pesavam acusações de aprovação de laudos irregulares para beneficiar candidatos à titulação. Ver: SNI. Denúncia contra o grupo executivo das terras do Araguaia-Tocantins – GETAT. Dossiê. 1984.
SNI. Informação nº 109/19/AC/83. Boletim “Paneiro”, da Comissão Pastoral da Terra – Norte I. 25 de maio de 1983.
No dia 07 de junho de 2021, Jair Bolsonaro afirmou a existência de um relatório do TCU apontando que 50% das mortes atribuídas à COVID-19 foram motivadas por outras causas: “O relatório final não é conclusivo, mas em torno de 50% dos óbitos de 2020 por COVID não foram por COVID, segundo o Tribunal de Contas da União”. O TCU se pronunciou publicamente desmentido a autoria do documento citado pelo presidente. Ver PODER 360.
CPT. Conflitos no Campo Brasil 2020. Goiânia: CPT Nacional, 2021. Disponível em: www.cptnacional.org.br. Acesso em: 01 jun. 2021.
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