Amor e revolução
Atualizado: 10 de mai. de 2022
Permitam-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. (Ernesto Guevara, El socialismo y el hombre en Cuba, março de 1965 – tradução do autor)
Este texto, o terceiro da coluna Horizontes Utópicos, tem um caráter algo diferente dos anteriores. Apesar de ser, também, fruto dos caminhos e descaminhos de meu ofício enquanto historiador, talvez seja o texto menos acabado e seguro até agora. Menos acabado pois traz questões que me surgiram no atual processo de pesquisa e ainda se apresentam de forma inconclusa. Menos seguro pois essas duas palavras, amor e revolução, relacionadas, abrem espaço para um amplo leque de possibilidades que, seguramente, não serão todas contempladas por este artigo que se busca sintético. De todo modo, feitas essas ressalvas, sigo para a tarefa hercúlea de discutir as questões que me propus quando tive a ideia deste texto: como se relacionam amor e revolução na tradição comunista, buscando inspiração para a busca por um outro futuro.
A ideia, aliás, surgiu-me a partir da realização de uma biografia histórica da militante da esquerda armada brasileira Vera Sílvia Magalhães, tema da minha atual pesquisa de doutorado. Esmiuçando sua vida, tomo contato, a cada passo, com aspectos que compõem o que convencionamos chamar de subjetividade militante. Dentre os vários aspectos constituintes dessa subjetividade, chamam-me a atenção, no caso da trajetória de Vera Sílvia, os afetos. Mais: os afetos como amálgama da atividade militante. E, como parte dos afetos, o amor. Assim, fui sendo levado, pela atividade da pesquisa, para um terreno pouco povoado da escrita histórica: a dinâmica das emoções.
Para a pouca bibliografia que busca estudar o tema, algo é unânime: as emoções devem ser consideradas em seus aspectos social e cultural, não sendo caracterizadas como manifestações de uma suposta irracionalidade presente nas reações de “multidões” ou como reações psicológicas restritas aos indivíduos. Para além, ressalta-se a configuração dialética entre a racionalidade e as emoções, presidindo e sendo presididas, na ação dos indivíduos militantes. Tem-se, assim, um novo ângulo para analisar a militância política que, no meu objeto de pesquisa específico, buscava uma ruptura radical com a sociedade capitalista em suas diversas manifestações.
Contudo, além desse novo prisma historiográfico, o fato de meu interesse se voltar para essas dinâmicas é sintomático de aspectos outros, que não dizem respeito, apenas, aos autores que li. A direção para a qual meus olhos se voltam, ao olhar para o passado, diz respeito ao presente pelo qual meus pés caminham. E, neste presente, chama-me a atenção a nossa relação com os afetos e, sobretudo, com o amor. E aqui utilizo a definição de amor proposta pelo filósofo francês Paul Ricœur: “O amor tem a mesma extensão da justiça. Ele é sua alma, seu impulso, sua motivação profunda; confere-lhe sua visée que é o outro, cujo valor absoluto ele atesta.” Amor, portanto, como algo vinculado ao outro, à coletividade, à justiça. E isto, na atual conjuntura, dominada pela lógica neoliberal, individualista e individualizante, contribuinte da liquefação, conforme nos aponta o já tão citado Bauman, nas relações humanas, parece estar fora de moda.
Neste contexto, onde reinam a injustiça e a falta de amor, volto-me à tradição revolucionária comunista para pensar como se articularam amor e revolução no sonho e nas realizações dos revolucionários que, imbuídos do materialismo histórico-dialético, rumavam à construção de horizontes utópicos.
Nos famosos Manuscritos Econômico-Filosóficos escritos em Paris, em 1844, o jovem Marx já havia especulado como seria o amor em uma sociedade que superasse a vida alienada. Para o alemão, em uma sociedade que pressupusesse o
homem [no sentido de gênero humano] enquanto homem e seu comportamento enquanto um [comportamento] humano, tu só podes trocar amor por amor, confiança por confiança etc. [...] Se tu amas sem despertar amor recíproco, isto é, se teu amar, enquanto amar, não produz amor recíproco, se mediante tua externação de vida como homem amante não te tornas homem amado, então teu amor é impotente, é uma infelicidade.
Contudo, se, para o jovem Marx, amor seria trocado apenas por amor em uma sociedade que derrubasse o capitalismo, não havia nada em seus textos que dissesse respeito ao amor como característica importante da atividade revolucionária, ou seja, da atividade militante que busca construir essa sociedade.
O amor, como parte integrante dos revolucionários, também não figurava como característica fundamental do principal teórico da revolução que buscou transformar o sonho em realidade em outubro de 1917 na Rússia czarista. Lenin, imerso em questões teórico-estratégicas e político-práticas, pouco ou nada discorreu sobre essa dimensão emocional. Ao contrário. Ao ressaltar a “análise concreta da situação concreta” como principal característica do marxismo, centrava esforços, ao falar sobre a atividade militante, na disciplina partidária. A rigidez partidária, que se cria com a cultura política comunista, passa a fomentar as dimensões subjetivas como algo a ser desvalorizado e desprezado. As experiências nos partidos comunistas ao redor do globo na primeira metade do século XX tenderam a considerar “desvios” toda questão que realçasse a subjetividade do indivíduo. Devia-se, portanto, minimizar essas questões em favor das atividades práticas, das análises concretas, tendo em vista a atuação em conjunturas concretas em que não se deixava espaço para os afetos.
Contudo, algo parece mudar, segundo minhas pesquisas tateantes, a partir da segunda metade do século XX. E isso fica evidente a partir do processo revolucionário em Cuba, vitorioso em 1959. Apesar da permanência de rigidezes várias – incluindo, ainda, uma dinâmica extremamente militarizada, resultante da lógica guerrilheira –, os discursos que buscam refletir sobre a atividade militante passam a incorporar o amor como característica fundamental.
Além da epígrafe deste texto, retirada de um dos diversos discursos do guerrilheiro argentino Che Guevara, em que há a distinção, pelo amor, entre o verdadeiro e o falso revolucionário, isso também está presente no próprio Fidel Castro que, em discurso relembrado por Che, deixa claro essa dimensão do amor como força motriz dos revolucionários:
Quem disse que o marxismo é a renúncia dos sentimentos humanos, do companheirismo, do amor pelo companheiro, da consideração pelo companheiro? Quem disse que o marxismo é não ter alma, não ter sentimentos? Se foi, justamente, o amor ao homem que engendrou o marxismo, o amor à humanidade, o desejo de combater a miséria, a injustiça, o calvário e toda a exploração sofrida pelo proletariado que fez com que da cabeça de Karl Marx tenha surgido o marxismo.
Não quero, com isso, dizer que os revolucionários cubanos transformaram radicalmente a relação entre o amor e a revolução. Apenas sublinho que essas falas, de dois de seus principais líderes, são, dialeticamente, sintoma e causa de uma mudança, visível na década de 1960, na maneira de conceber esta relação dentro do discurso comunista. E, sem dúvida, essa nova atmosfera fez parte da construção da geração de 1968 brasileira, da qual a protagonista de minha pesquisa, Vera Sílvia Magalhães, fez parte.
Feitas essas observações, uma das perguntas a que me propus quando pensei este texto ainda deve ser respondida: de que modo podemos relacionar essa concepção de amor e revolução para pensar os dias atuais? Parece-me, primeiro, fundamental que se recupere, na atividade militante, a dimensão desse afeto. Em um momento em que falar de amor soa, aos ouvidos contemporâneos, como algo ingênuo, creio, como necessidade imperativa, numa realocação desse conceito na esfera da práxis, dando-lhe centralidade. Neste caso, os militantes, que buscaram realçar uma síntese entre amor e revolução, podem nos servir de inspiração. Não apenas por ressaltar sua centralidade, mas, sobretudo, por se contrapor ao amor da lógica neoliberal que é, por definição, individual e restrito às individualidades.
Portanto, para além da centralização desse afeto na prática política, devemos nos inspirar para a recuperação de uma dimensão do amor enquanto coletividade – mesmo que manifestado individualmente – e, especialmente, vinculado à justiça. Dito de outro modo, o amor deve servir à busca de uma sociedade justa, pois, voltando e continuando a frase de Ricœur, ele “acrescenta a certeza do coração àquilo que corre o risco de tornar-se jurídico, tecnocrático, burocrático no exercício da justiça. Em compensação, porém, é a justiça a realização efetiva, institucional, social do amor.”
Créditos da imagem destacada: Reprodução internet.
Para maiores detalhes sobre o papel das emoções, cf. GOODWIN, Jeff; JASPER, James; POLLETTA, Francesca. Passionate Politics: Emotions and Social Movements. Chicago: University of Chicago Press Books, 2001; MUXEL, Anne (Org.) La vie privée des convictions. Politique, affectivité, intimité. Paris, França: Presses de Sciences Po, 2014.
RICŒUR, Paul. Interpretações e Ideologias. 4ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 162.
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