Aniversários do golpe de 1964 durante a ditadura militar brasileira
Neste ano, o golpe civil-militar de 1964, responsável pela deposição do presidente democraticamente eleito e pela instauração de um regime ditatorial que durou mais de duas décadas, completa 60 anos. A passagem do 60º aniversário fomenta uma expressiva agenda de eventos de abrangência acadêmica e social promovidos pela comunidade universitária e por instituições de defesa dos direitos humanos, dedicados a refletir sobre a ditadura militar e seus legados autoritários na sociedade brasileira.
Conforme apontado por Elizabeth Jelin, a passagem de datas alusivas a acontecimentos considerados representativos para determinado grupo ou sociedade, sobretudo quando associadas ao que chamamos de datas “redondas”, funcionam como “conjunturas de ativação de memórias” (JELIN, 2000). Essa noção compreende as ocasiões rememorativas como momentos privilegiados para a construção ativa de sentidos ao passado, através de processos de apropriação que se articulam diretamente com as demandas do presente.
No contexto pós-redemocratização, os aniversários de 30, 40 e 50 anos do golpe de 1964 protagonizaram uma profusão de textos na imprensa, livros e coletâneas, trabalhos acadêmicos, eventos universitários e públicos, colóquios, seminários e produções audiovisuais em torno do tema. As efemérides de 2004 e 2014 foram especialmente significativas para a historiografia especializada, com a publicação de vasto material bibliográfico que ainda serve de referência para os estudos na atualidade, e pela difusão das terminologias de “golpe” e “ditadura” nos meios de comunicação (CARVALHO; CATELA, 2002; JOFFILY, 2018).
Todavia, é curioso observar que, em período anterior, a ditadura militar, em seus esforços de legitimação autoritária, procurou difundir na passagem do 31 de março a ideia de uma “Revolução” ocorrida em 1964, que supostamente havia livrado o país do “comunismo” e salvado a “democracia” no Brasil. O objetivo desta coluna é elucidar alguns dos principais aspectos envolvendo as comemorações dos aniversários do golpe de Estado durante a ditadura militar brasileira, entre os anos de 1965 e 1984. Como veremos, as passagens do 31 de março foram marcadas por significativas oscilações comemorativas, transitando entre um investimento mais significativo e momentos de baixa mobilização. Adicionalmente, as comemorações promovidas pelo regime autoritário conviveram com manifestações de oposição, o que evidencia a apropriação da data do golpe por diferentes segmentos sociais e as disputas de memória estabelecidas já naquele período.
Grandes oscilações comemorativas e alguns festejos memoráveis (1965-1970)
No primeiro aniversário do golpe, em 1965, o governo ditatorial investiu em grandiosas comemorações, marcadas pela intensa profusão de pronunciamentos comemorativos e programações festivas. Na agenda presidencial de Castello Branco, constava a participação em diversos eventos, a aprovação da Lei do Estatuto da Terra e a abertura da I Conferência Nacional de Educação. Os festejos estenderam-se do Norte ao Sul do país, com cerimoniais diversificados, dentre eles: missas em ação de graças, palestras escolares e cívico-militares, inaugurações de obras públicas, jantares e bailes de gala, lançamentos de livros, formaturas de tropas e instalações no Círculo Militar, desfiles, alvoradas festivas, performances aéreas, retretas e partidas de jogos esportivos. É interessante observar que as ritualísticas estabelecidas em 1965 foram constantemente repetidas e reatualizadas nas comemorações seguintes, embora variando em sua intensidade.
Belo Horizonte ofereceu o cenário para a apoteose comemorativa, contando com a presença do presidente Castello, que discursou para a população e assistiu ao desfile militar de doze mil homens das Forças Armadas. O público presente foi estimado em cerca de cem mil pessoas, número que foi contestado pelo jornal Correio da Manhã (MOTTA, 2022). O evento foi registrado em Cinejornal produzido pela Agência Nacional, que exaltou uma grande concentração de civis que se encontrava em uma das principais ruas da cidade, a Avenida Afonso Pena, para assistir aos soldados que desfilaram exibindo farto armamento. Entretanto, embora os festejos em Minas Gerais tenham registrado significativo impacto, outras capitais registraram públicos escassos nas cerimônias e comentários em tom crítico, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro.
Naquele mesmo ano, outra medida governamental afetou sobremaneira os festejos posteriores: a decisão por não tornar o 31 de março feriado nacional, o que fez com que sua inserção nos calendários comemorativos ocorresse de maneira ambígua e influenciou diretamente na ausência de perenidade dos ritos comemorativos em torno do golpe.
Entre 1966 e 1968, os aniversários foram marcados por um menor investimento nas comemorações institucionais da ditadura, que sofria um revés de impopularidade em torno das medidas discricionárias impostas por Castello Branco, principalmente aquelas relacionadas à economia. O projeto liberal-internacionalista implementado em seu mandato, embora tenha viabilizado uma queda nos índices brutos de inflação, provocou uma série de medidas recessivas na política salarial e que impactaram negativamente a sociedade brasileira, com a redução do valor de compra dos salários e a queda de atividades do setor industrial.
No segundo aniversário, em 1966, as programações festivas foram organizadas em torno do slogan “Brasil 66: Paz e Prosperidade” e tiveram como ponto alto a inauguração da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) pelo presidente, que aproveitou a ocasião para tentar uma aproximação com as classes dirigentes empresariais e os trabalhadores. O 31 de março também coincidiu com a instalação dos novos partidos políticos, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o que de certa forma ofuscou as comemorações da data. A diminuição no número de pessoas participando dos desfiles também foi flagrante, pois, se no ano anterior, Belo Horizonte havia presenciado doze mil soldados marchando pelas ruas da cidade, em 1966 o número caiu para menos da metade. Os eventos que mais chamaram atenção foram os protestos estudantis protagonizados por jovens universitários. Dentre os casos mais relevantes, cabe destacar o ato público promovido pela União Nacional dos Estudantes (UNE), no dia 1º de abril, em São Paulo, e a mobilização dos estudantes da Faculdade de Direito da Guanabara, que protestaram se recusando a assistir às aulas, portando cartazes, velas e panos pretos em sinal de luto.
Em 1967, as programações esfriaram bastante e os meios de comunicação relataram a ausência de adesão popular. Os eventos de maior impacto ocorreram em Brasília e contaram com a presença do recém-empossado presidente, o marechal Costa e Silva, que assistiu à missa campal e ao desfile militar. O chefe do Executivo também aproveitou o ambiente festivo para promover ações com o intuito de gerar uma imagem benevolente para seu governo. Esse foi o caso do indulto parcial concedido aos presos sentenciados primariamente por crimes leves e que haviam cumprido pelos menos um terço de suas penas, inclusive os condenados por crimes políticos, desde que houvesse a anuência da Justiça Militar.
No ano seguinte, as comemorações do golpe foram fortemente ofuscadas pelo assassinato do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, morto pela Polícia da Guanabara em 28 de março. As páginas da imprensa deram pouquíssima atenção às programações festivas, conferindo destaque aos inúmeros protestos estudantis que eclodiram nas mais diversas regiões do país. Nem mesmo o fato de o 31 de março cair no domingo fez com que as programações festivas congregassem amplos setores populares. Embora as solenidades tenham sido mantidas, a ausência de público foi observada pelos jornais da chamada “grande imprensa”, que noticiaram também o intenso esquema de segurança policial montado para salvaguardar as autoridades ditatoriais.
Os anos de 1969 e 1970 foram marcados pela tentativa da ditadura de reacender os festejos do 31 de março. O governo autoritário se encontrava mais forte e unido, exercendo um maior controle político devido ao AI-5 e preocupado também em melhorar sua popularidade. O 5º aniversário protagonizou um grande evento em Brasília, que contou com um almoço festivo oferecido por Costa e Silva aos governadores. O presidente também concedeu uma entrevista gravada em “vídeo-tape”, participou de uma missa campal e da inauguração da Praça “31 de março”, situada no Eixo Monumental. Atualmente, o local corresponde ao complexo paisagístico do Jardim Burle Marx, que foi recém-inaugurado pelo governo do Distrito Federal, em setembro de 2023.
Em 1970, no auge do “milagre econômico”, a ditadura investiu maciçamente na organização de comemorações grandiosas, destinadas a exaltar suas realizações com grande ufanismo desenvolvimentista. As programações festivas se estenderam por todas as regiões do país, mesmo em cidades interioranas, e os discursos comemorativos se multiplicaram nas páginas da imprensa. A apoteose festiva aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, que preparou um grande espetáculo no Maracanã, organizado pela prefeitura municipal em parceria com a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP). O evento contou com a presença de trinta mil pessoas, que assistiram ao desfile das escolas de samba, show musical com diversos artistas, dentre eles Elizeth Cardoso e Jair Rodrigues, exibição de coral e bandas, e jogo amistoso entre as equipes A e B da seleção brasileira.
A extinção de cerimoniais de grande envergadura e novas práticas rememorativas (1971-1978)
Em 1971, tímidas festividades contrastaram com as comemorações grandiosas do ano anterior. A recomendação para que os festejos fossem pequenos partiu do próprio presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, que limitou sua participação a um discurso comemorativo televisionado, dedicado a exaltar o crescimento econômico nacional. O evento oficial mais significativo foi a instalação do Estado-Maior do Exército em Brasília, transplantado de sua antiga sede no Rio de Janeiro para a capital no Distrito Federal. Nesse sentido, o ano de 1971 representou um ponto de inflexão nas comemorações do 31 de março, marcando a extinção dos desfiles cívico-patrióticos de grande porte pelo governo ditatorial. Àquela altura, os ganhos financeiros proporcionados pelo chamado “milagre econômico”, somados aos riscos que comemorações grandes poderiam acarretar (o que incluía possíveis denúncias de fascistização e boicote das comemorações devido ao recrudescimento do regime), parecem ter sido fatores fundamentais para que o governo ditatorial não investisse em festejos de maior impacto.
Os anos subsequentes seguiram a lógica de discrição, centrados na promoção de ações cívico-sociais e solenidades restritas aos círculos políticos e militares, com registros quase inexistentes de desfiles. Nem mesmo o Sesquicentenário da Independência, em 1972, e os 10 anos do golpe, em 1974, animaram a ditadura para promover comemorações de maior envergadura. As poucas solenidades de maior impacto que foram organizadas tiveram seus intentos frustrados, como o cancelamento de uma performance aérea agendada para inaugurar a 1ª Ala de Defesa Aérea de Anápolis (GO), devido a condições climáticas desfavoráveis, em 1973.
No ano seguinte, na conjuntura do 10º aniversário, o governo federal se limitou a organizar uma série especial de entrevistas com os ministros de Estado. Os depoimentos foram transmitidos por cadeia de rádio e televisão entre os dias 24 e 30 de março, culminando em um desfecho especial no dia 31, quando o recém-empossado presidente da República, o general Ernesto Geisel, ocupou os meios de comunicação para discursar em homenagem à data do golpe. A maior comemoração ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, onde o I Exército e o governo da Guanabara, em parceria com as organizações Globo, realizaram um concerto musical na Quinta da Boa Vista, com estimativa de público de cem mil pessoas, número que também aparenta ser exagerado.
Na verdade, entre os anos de 1971 e 1978, as comemorações dos aniversários do golpe estiveram marcadas pela ascensão de práticas rememorativas que fugiam da lógica de grandes espetáculos, como a promoção de exposições militares com público-alvo escolar, missas em ação de graças, eventos restritos ao círculo político e militar, lançamento de produções audiovisuais, competições esportivas, dentre outras.
Em 1975, o ponto alto das comemorações se deu no âmbito político, com a organização de uma sessão solene realizada pelo Diretório Nacional da Arena, que contou com a presença do presidente Geisel. No ano seguinte, o 12º aniversário foi comemorado de forma pontual pelos estados brasileiros, com missas e sessões cívico-militares. O I Exército e a prefeitura do Rio de Janeiro também organizaram um evento ambicioso no Leme, com apresentações escolares, desfile de escolas de samba, números musicais e saltos de paraquedistas, cuja expectativa de público variava entre quinze e vinte mil pessoas. Contudo, foram contabilizados apenas cerca de cinco mil presentes, a maioria deles estudantes da rede de ensino municipal, que tinham chegado ao local em ônibus fretados pelo comando militar. Os números extremamente discrepantes indicam que o impacto público mobilizado pelas comemorações de 1976 esteve muito abaixo do que planejavam os organizadores da festa carioca.
Em 1977, a crise política e institucional envolvendo a aprovação da reforma no sistema Judiciário proposta por Geisel, e que culminou na aprovação do Pacote de Abril, ofuscou as programações festivas. Naquele ano, a solenidade mais aguardada pela imprensa foi o almoço na Vila Militar do Rio de Janeiro, que contaria com a presença do presidente. Na ocasião, esperava-se que o general se manifestasse em relação às medidas que o governo tomaria diante da rejeição do MDB à reforma. O pronunciamento presidencial acentuou o clima de instabilidade, prometendo dar prosseguimento ao projeto na base da força. Paralelamente, foram registrados novos protestos estudantis na cidade de São Paulo e a tentativa do governador do estado, Paulo Egydio Martins, em proibir a concentração de manifestantes na região central da cidade, que culminou na prisão de cerca de 13 estudantes pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Em 1978, as medidas discricionárias de Geisel no ano anterior parecem ter impactado os festejos do 31 de março. As programações festivas foram realizadas em várias regiões do país, com destaque para almoço sediado pelo presidente no Clube da Aeronáutica, em Brasília. O discurso que o general fez aos presentes buscou referenciar a confraternização entre civis e militares, na tentativa de reaproximar grupos civis do governo ditatorial, ação considerada indispensável no contexto da transição política. As comemorações do 14º aniversário também foram marcadas por uma inovação: a promoção de missas em homenagem às vítimas da “subversão” e do “terrorismo”. Os ritos religiosos foram organizados pelas Forças Armadas, visando homenagear soldados que haviam morrido em confrontos com membros da luta armada. Esses cerimoniais estavam integrados à reação negativa das forças repressivas com relação ao processo de abertura e a possibilidade de proposição de anistia aos presos políticos e exilados. O ano de 1978 também marcou nova onda de protestos estudantis, motivados pela conjuntura dos 10 anos de falecimento de Edson Luís. Nessa ocasião, vários diretórios acadêmicos realizaram manifestações de crítica ao regime, de forma semelhante ao experenciado nos anos iniciais da ditadura.
O declínio e a extinção das comemorações públicas (1979-1984)
A partir de 1979, com o estabelecimento do último governo ditatorial, as comemorações públicas passaram por transformações significativas, que são representativas de seu declínio definitivo. O general João Batista Figueiredo foi o presidente militar que menos se envolveu nas festividades. No 15º aniversário, o representante do Executivo limitou sua participação a uma missa em ação de graças promovida pela Liga da Defesa Nacional (LDN) em Brasília. Nas solenidades comemorativas, predominaram atos religiosos e militares, com várias referências às vítimas da “subversão” e do “terrorismo”. Os 15 anos da ditadura foram marcados por solenidades mais tímidas e a ascensão de narrativas críticas ao regime. O desmonte de parte do aparato autoritário em 1978/79 (principalmente o fim do AI-5) parece ter refletido de algum modo em uma abertura maior às disputas de memória sobre o golpe.
Em 1980, as solenidades realizadas foram bastante pequenas e predominantemente militares. Na maior parte dos estados, ocorreram missas e atos cívicos de curta duração, sem a presença de populares. Em movimento semelhante ao ano anterior, as manifestações e textos de crítica novamente se sobressaíram com relação às notícias sobre as comemorações, estas últimas ocupando cada vez menos espaço nas páginas da imprensa. No 16º aniversário, um evento particular contribuiu para gerar desgaste político para os militares: um atentado a bomba em solenidade promovida pela oposição na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, para homenagear as vítimas da violência ditatorial. O suspeito de lançar os projéteis foi um estudante da Escola de Polícia, ex-soldado da Aeronáutica e filho de um sargento aposentado. O jovem foi inicialmente detido e depois liberado pela Secretaria de Segurança Pública, o que impossibilitou efetuar sua prisão em flagrante por suposta ausência de provas que o incriminassem, causando muita indignação entre os parlamentares e estranheza nos meios de comunicação, principalmente nos periódicos Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil.
Esse revés negativo parece ter influenciado as comemorações do ano seguinte, que foram significativamente discretas e com registros escassos na imprensa. As maiores solenidades foram de cunho religioso, com destaque para uma missa realizada na Igreja da Candelária, que contou com a presença de mil e quinhentas pessoas, e a missa em ação de graças na Catedral de Brasília, com participação de Figueiredo e outras autoridades políticas civis e militares. O presidente limitou sua participação ao comparecimento à missa e não realizou pronunciamento comemorativo. Essa questão chamou atenção de alguns colunistas nos jornais, que associaram a pouca expressividade das festividades com o clima de descontentamento que permeava o governo militar.
Em 1982, nas comemorações do 18º aniversário do golpe, o cenário desfavorável à ditadura também impactou as programações festivas, que se tornavam cada vez menores e mais restritas às Forças Armadas. A atrofia das solenidades gerou até mesmo o reconhecimento, por parte das próprias autoridades militares, do caráter simples e austero das cerimônias. Novamente, os maiores eventos foram as missas em ação de graças e em homenagem às vítimas da “subversão” que, embora se estendessem à população, foram marcadas pela presença de soldados em sua quase totalidade.
O ano de 1983 marcou o processo de extinção das comemorações públicas do golpe de 1964 durante a ditadura. As programações festivas realizadas naquele ano foram essencialmente militares, revelando um distanciamento significativo com o meio civil. Em Brasília, não foram realizadas programações festivas, os ministros militares não participaram de eventos, e o presidente Figueiredo não compareceu a nenhuma cerimônia e tampouco realizou pronunciamento comemorativo. O envolvimento praticamente inexistente do governo em comemorações públicas demonstra que, no 19º aniversário do golpe, o impacto público e político do 31 de março era muito pequeno e não representava benefícios à ditadura.
Em 1984, 20º aniversário, o clima festivo foi praticamente inexistente e as solenidades em homenagem ao golpe minguaram, permanecendo restritas aos círculos militares. As autoridades políticas militares limitaram seu envolvimento na divulgação de pronunciamentos, os quais tiveram uma recepção bastante negativa na opinião pública. O discurso de Figueiredo, que reclamava da “antecipação” dos setores de oposição com relação à campanha das Diretas Já e prometia com vagueza a eleição direta para o “sucessor de seu sucessor”, foi duramente criticado por jornais e parlamentares. Também foi notável o número significativo de charges críticas publicadas pela imprensa, que satirizavam o discurso presidencial, a coincidência entre o 20º aniversário e a campanha em prol das eleições diretas, com os riscos de nova guinada autoritária pelo regime.
Esta breve exposição demonstra que análises que se pretendam generalizantes não dariam conta de explicar as nuances que permearam os aniversários do golpe durante a ditadura militar brasileira. As comemorações efetuadas pelo regime estiveram sujeitas a significativas oscilações, variando muito em razão da conjuntura histórica. As flutuações no investimento governamental em comemorar o 31 de março provocaram fragilidades estruturais nesse rito político, que por sua inconsistência acabou por extinguir-se ainda durante o período autoritário. Todavia, se, por um lado, as comemorações não provocaram um impacto público e político significativamente benéfico, e a ditadura não conseguiu consolidar a data no calendário cívico brasileiro, foram notáveis os investimentos que os representantes das Forças Armadas fizeram para que a chamada “Revolução de 1964” não deixasse de ser relembrada pela sociedade brasileira.
De maneira geral, a data do golpe sofreu apropriações por diferentes grupos e agentes sociais que pertenciam aos mais variados espectros políticos, com destaque para as Forças Armadas, setores nacionalistas e autoritários, liberais, lideranças de oposição (do MDB e de partidos clandestinos) e do movimento estudantil. Essas diferentes respostas à passagem dos aniversários do golpe contribuíram para intensificar as disputas de memória, que confluíram para a formação de duas narrativas com pretensão de constituir memórias hegemônicas a respeito dos eventos do golpe. Uma delas estava associada ao 31 de março e à “Revolução”, e buscava gerar legitimidade e consentimento, e a outra apostava na data de 1º de abril e a encarava como um dia de golpe de Estado, o que implicava denunciar o autoritarismo vigente no período.
Tais disputas permanecem sendo reatualizadas na contemporaneidade, alimentadas por elementos que foram difundidos na passagem dos aniversários durante a própria ditadura militar brasileira, e conectando por múltiplos fios o passado e o presente.
Referências:
CARVALHO, Alessandra; CATELA, Ludmila da Silva. 31 de marzo de 1964 en Brasil: memorias deshilachadas. In: JELIN, Elisabeth (Org.). Las conmemoraciones: las disputas en las fechas “in-felices”. Madri: Siglo XXI Editores, 2002. p. 195-244.
JELIN, Elizabeth. Memorias en conflicto. Puentes, a. 1, n. 1, p. 6-13, ago. 2000.
JOFFILY, Mariana. Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 3, p. 204-251, jan./mar. 2018.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O nacionalismo autoritário ritualizado: o 31 de março e o 7 de setembro nas comemorações cívicas da ditadura militar. In: COSTA, Wilma Peres; CRAVO, Telmo (Org.). Independência: memória e historiografia. São Paulo: Edições SESC, 2022. p. 37-58.
ZIMMERMANN, Ana Carolina. O 31 de março e a invenção da “Revolução”: comemorações e atitudes sociais nos aniversários do golpe de 1964 durante a ditadura militar brasileira. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.
Como citar este artigo:
ZIMMERMANN, Ana Carolina. Aniversários do golpe de 1964 durante a ditadura militar brasileira. História da Ditadura, 1 abr. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/anivers%C3%A1rios-do-golpe-de-1964-durante-a-ditadura-militar-brasileira. Acesso em: [inserir data].