Armadilhas neoliberais: reflexões sobre feminismo e trabalho
Atualizado: 15 de mar. de 2022
A primeira cena do filme Você não estava aqui (Sorry we missed you, Ken Loach, 2019) nos apresenta Ricky, um “trabalhador”, como ele mesmo se define, com experiência em diversas funções, da construção civil ao paisagismo. Com dívidas, dois filhos e sem conseguir se fixar em um emprego e ter estabilidade, Ricky decidiu “ser seu próprio chefe”. Na entrevista antes de se vincular à empresa que realiza entregas de mercadorias de lojas virtuais, o personagem ouve, então, que ali ele não vai ser um trabalhador, mas sim um colaborador. O contratante não poderia ser mais claro: “Você não trabalha para nós. Você trabalha conosco. […] Você realiza serviços. Não há salário, e sim honorários”. O protagonista seria livre para gerenciar seu próprio tempo e trabalho. Mas a cultuada liberdade neoliberal no novo serviço é colocada em xeque ao longo do filme.
Abby, ao saber dos planos do marido, tenta alertá-lo para o fato de que ele terá de trabalhar 14 horas por dia, seis dias por semana, além de vender o carro dela, para ter um salário que cubra as despesas para começar o serviço. “Eu nunca te vejo. Nós nunca nos vemos”, queixa-se ela.
O diálogo fictício entre o casal de Newcastle, cidade do norte da Inglaterra conhecida pela sua tradição de luta dos operários da indústria mineira, está mais próximo da realidade brasileira do que podemos imaginar. Se revezando em turnos de 12 horas no trabalho de motorista de aplicativo, o casal Rafaela e Elisangelo se vê apenas durante pequenos intervalos, na garagem de casa, na periferia da zona leste de São Paulo. Ficção e não ficção, as histórias de Ricky, Abby, Rafaela e Elisangelo escancaram que o empreendedorismo neoliberal extrapola a esfera econômica e afeta as relações pessoais e familiares mais íntimas.
Diferente do casal brasileiro, Abby não trabalha em revezamento com o marido. A narrativa do filme nos mostra que ela é cuidadora de idosos e passa o dia de casa em casa dedicando horas do seu tempo àqueles que precisam do auxílio de alguém até para atividades como comer, tomar banho ou trocar de roupas. Além do trabalho remunerado do cuidado, Loach é magistral ao mostrar como recai sobre Abby a responsabilidade do cuidado com os filhos, um casal de adolescentes, que sentem as consequências da falta da presença dos pais. É Abby quem liga para dar as instruções cotidianas aos filhos e saber como eles estão, é ela quem prepara e avisa onde está a comida, quem vai às reuniões da escola, quem fala com os vizinhos pedindo ajuda e, finalmente, é Abby, a mãe, quem atua como mediadora quando a relação entre o marido e o filho mais velho fica estremecida.
Abby é cuidadora em tempo integral, realizando trabalhos que são pagos, mas também aqueles que não o são. Ela sai de casa às sete horas da manhã e só retorna às nove da noite, lidando com situações humilhantes e emocionalmente desgastantes. Quando se queixa do cansaço, ouve do marido como ela é “mole” (“Abby, you are too soft!”) porque não confrontou o diretor da escola na reunião em que Ricky sequer esteve presente, ou por querer o carro para se deslocar com mais rapidez entre as casas dos clientes.
Em uma cena impactante, após se sentir impotente em oferecer ajuda aos filhos, Abby desabafa: “eu preciso cuidar mais dos meus filhos”. Sem uma rede de apoio ou qualquer ajuda do Estado, Abby reproduz na sua fala uma individualização e uma moralização da responsabilidade do cuidado que é muito cara à lógica neoliberal. E a reprodução dessa lógica afeta diretamente as estruturas democráticas das sociedades atuais, como destaca a filósofa Wendy Brown.
Segundo Wendy Brown, o conservadorismo sempre esteve no projeto neoliberal, que considerava, em suas formulações iniciais, que seriam necessários dois instrumentos para organizar os indivíduos: os mercados e a tradição. A desregulamentação progressiva do Estado e o aprofundamento das políticas neoliberais criaram um cenário extremamente precário para a maioria da população: subempregos ou desemprego, desvalorização da educação, fim de serviços assistenciais e pouco ou nenhum investimento social.
Neste cenário de “ruínas”, para usar o termo de Brown, forças antidemocráticas passaram a encontrar espaço e serem mobilizadas, já que a política institucional está submetida à lógica dos mercados. Assim, o discurso de liberdade e moralidade é utilizado para atacar a democracia e a igualdade social, vistos como um empecilho para a inserção plena dos interesses mercadológicos e empresariais nas agendas políticas.
De todo modo, o que o neoliberalismo e o conservadorismo têm a ver com família? Wendy Brown (2019) e Melinda Cooper (2017) nos alertam sobre como o papel da família é crucial para o projeto neoliberal, porque ela passa a ser a responsável por assegurar saúde, educação e bem-estar para os seus, já que esses serviços não são mais ofertados pelo Estado. É a partir da moral da família patriarcal e heterocisnormativa que a responsabilidade coletiva e pública do cuidado passa a ser individualizada e, em última instância, a servir também aos interesses econômicos neoliberais.
Apesar de o peso dessa responsabilidade ser sentido por todos aqueles que são desassistidos pelo poder público, ela incide de maneira muito específica sobre as mulheres. A separação capitalista entre o trabalho reprodutivo (ou seja, a execução daquelas intermináveis tarefas que mantêm as pessoas vivas: cozinhar, limpar, enfim, cuidar), do trabalho produtivo (aquele que gera lucro ao capital), se baseia primordialmente nos papéis de gênero. Desse modo, o trabalho reprodutivo, seja ele pago ou não pago (ou ambos, como no caso de Abby), acaba sendo, em sua maioria, imposto às mulheres, numa reinvenção da opressão das mulheres. Esse trabalho do cuidado – complexo e indispensável à manutenção da sociedade – sobrecarrega as mulheres, é o que alerta o manifesto feminista de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser.
Se o neoliberalismo impõe um cenário social de nenhuma assistência e de extrema privação, onde todas as relações sociais são relações de mercado, as funções e serviços de cuidado passam a ficar a cargo da família, o que significa dizer que ficam sob a responsabilidade das mulheres. As mulheres, em particular as mais empobrecidas, são sobrecarregadas com a necessidade de trabalharem fora de casa em um trabalho pago e dentro de casa, no trabalho não pago. Esse é o retrato da vida de Abby. O roteiro de Paul Laverty nos brinda com um brilhante diálogo, onde Abby diz: “parece que quanto mais trabalhamos, mais nos afundamos nesse buraco”. Ela poderia estar falando dos empregos precários a que ela e o marido precisam se submeter, mas, na verdade, falava da relação caótica de sua família, que não conseguia se entender, explicitando a profunda relação entre o neoliberalismo e a desestruturação das relações familiares. Nessa equação, precisamos incluir também o autoritarismo e as forças antidemocráticas, que abrem as portas para o aprofundamento da desigualdade social e de gênero, criando cenários como o que vemos atualmente no Brasil, onde bilionários acumulam ainda mais riquezas, e empobrecidos atacam caminhões de lixo em busca de ossos.
Não poderia finalizar esse texto sem deixar manifesto que a luta do movimento feminista precisa estar comprometida com a libertação de todas as mulheres. O que significa dizer que o feminismo precisa debater as implicações do neoliberalismo na opressão de gênero, especialmente em um contexto no qual forças antidemocráticas desorganizam a solidariedade e a distribuição de direitos pautada na igualdade social.
Referências Bibliográficas
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.
COOPER, Melinda. Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism. New York: Zone Books, 2017.
DELLA TORRE, Bruna. A sagrada família: neoliberalismo e neoconservadorismo na extrema direita hoje. Entrevista com Melinda Cooper. Marxismo Feminista, 30 jun. 2020.
LOACH, Ken. Você não estava aqui. [Sorry we missed you].
MACHADO, Leandro. “Só nos vemos na garagem”: as famílias que dividem o carro para trabalhar 24h por dia em apps de transporte. BBC News Brasil, São Paulo, 25 nov. 2019.
Como citar este artigo:
PEREIRA, Clarisse dos Santos. Armadilhas neoliberais: reflexões sobre feminismo e trabalho. História da Ditadura, 26 jan. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/armadilhasneoliberais-reflexoessobrefeminismoetrabalho . Acesso em: [inserir data].
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