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Foto do escritorHistória da Ditadura

“Arquivos da repressão” e redemocratização: uso de documentos para garantia de direitos

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Sabe quando você solicita o seu passaporte e precisa ir à Polícia Federal ou então ao cartório para firmar um contrato de aluguel? Certamente percebeu que esses processos cotidianos geram uma quantidade considerável de documentos. Os Estados costumam ser altamente burocratizados, tanto em regimes democráticos quanto em ditatoriais. Em governos de caráter autoritário, a geração de documentos transpassa as práticas cotidianas e, através de órgãos de investigação e repressão, reúnem informações (reais ou forjadas) sobre indivíduos e grupos de resistência contrários aos posicionamentos do Estado. Assim, durante a ditadura brasileira não foi diferente: produziu-se muitos documentos que constituem hoje os chamados “arquivos da repressão”.

Charge Arquivos da Ditadura (Reprodução Internet)


O relatório Los Archivos de la Seguridad del Estado de los Desaparecidos Regímenes Represivos, conduzido por Antônio Quintana (1998), numa parceria estabelecida entre a UNESCO e o Conselho Internacional de Arquivo, afirma que os arquivos da repressão se tornaram um instrumento social insubstituível para conformar as relações sociais da atualidade e, por conta disso, requer do documentalista e do historiador uma profunda reflexão. Segundo os autores, a existência desses arquivos está relacionada a direitos individuais e coletivos, e podem ser usados como elementos para reafirmação democrática, dentre outras atribuições.

O relatório lista quatro direitos coletivos que poderiam ser garantidos a partir do uso dos arquivos da repressão: o direito dos povos e nações de elegerem sua própria transição política; o direito à integridade da memória escrita; o direito à verdade; e o direito de conhecer os responsáveis pelos crimes contra os direitos humanos. Entre os individuais, são listados seis: direito a conhecer o paradeiro de familiares desaparecidos; direito ao conhecimento dos dados existentes sobre qualquer pessoa nos arquivos repressivos; direito à pesquisa histórica e científica; direito à anistia para presos e perseguidos políticos; direito à compensação e reparação de danos sofridos pelas vítimas da repressão e direito à restituição de bens confiscados.

Arquivos do DEOPS-SP (Imagem: Reprodução Internet)


Esse é chamado de “efeito bumerangue”; o arquivo deixou de ser acusatório para ser probatório (BAUER, 2013). A partir dessa documentação, os órgãos de repressão agiam e violavam os direitos humanos; hoje, esses arquivos deixaram de ser institucionais e podem ser usados para comprovar a perseguição política e, assim, garantir os direitos à anistia e à reparação.

Por conta da burocracia estatal, esses arquivos contêm registros e informes da polícia política, pois cada uma dessas ações passava por uma hierarquia que as autorizava e registrava – exceto, evidente, as ações clandestinas.[i] Contêm ainda informações pessoais de investigados, muitos deles ainda vivos, o que conduz à reflexão ética (e política) sobre a organização, a preservação e a difusão desses documentos; o que, por sua vez, pode afetar o contexto no qual os documentos foram adquiridos.

A historiadora Caroline Bauer (2013, p. 15) associa o acesso aos arquivos da repressão ao direito à verdade no processo transicional, pois se trata do direito à memória.

Quando se fala em “verdade” ou em “direito à verdade”, se trata de esclarecer as circunstâncias em que ocorreu a repressão da ditadura, e como ela mesma funcionava. Neste sentido, o direito à verdade possui alguns desdobramentos, implicando também o direito à memória e à informação, esta fundamental, pois a memória sobre determinado acontecimento somente pode ser construída a partir do conhecimento dos fatos; e também o direito à justiça, pois a verdade implica o reconhecimento público da responsabilidade pelos crimes cometidos. Em relação ao direito à informação, ele remete diretamente à disponibilização dos arquivos da repressão.

A autora argumenta que não é uma ausência de debate sobre a ditadura que dificulta a disponibilização dos arquivos, e sim uma decisão política de não permitir o acesso aos registros das arbitrariedades estatais do período. As políticas de memória ainda não abarcaram completamente esses arquivos que, apesar do direito à informação, estão recolhidos de acordo com o grau de sigilo. Significa, portanto, que pesquisadores e as próprias vítimas, interessados diretos, não têm acesso à boa parte dessa documentação porque se encontram inacessíveis – seja por sigilo, seja por descarte propriamente.[ii]

A dificuldade de acessar os arquivos da repressão implica numa série imensa de interrupção de direitos. Dificulta o acesso à Justiça, impedindo a atribuição de responsabilidades das ações perpetradas pelos agentes do Estado;[iii] impede o direito irrestrito à memória e à verdade, pois o acesso limitado a esses documentos dificulta as pesquisas acadêmicas e jurídicas; dificulta gravemente o acesso aos documentos que comprovam a perseguição do Estado a militantes de diversas áreas durante a ditadura, o que acarreta na impossibilidade de garantir a reparação pelos danos causados.

Arquivos dos Superior Tribunal Militar (Imagem: Reprodução Internet)


Esse acesso é impedido ou permitido por meio de leis, ou seja, por meio do Poder Legislativo e conta com a sanção do Poder Executivo. É uma questão exclusivamente política para garantir interesses igualmente políticos.

A disponibilização completa desses arquivos representaria um passo gigantesco para a consolidação da democracia no Brasil, considerando que esta abertura é uma das demandas para assegurar o direito à memória e à verdade. Entretanto, a sua importância não é apenas para ampliar as fontes para historiadores e pesquisadores em geral, mas em garantir os direitos constitucionais dos atingidos pela repressão, que hoje almejam alcançar a categoria de anistiado político e suas atribuições. Portanto, o acesso aos arquivos está diretamente relacionado ao acesso à Justiça; sendo fundamentais para o cumprimento das próprias leis de reparação existentes. O que então torna necessário pensar os arquivos da repressão como protagonistas do processo de transição política a fim de fortalecer a recente e precária democracia brasileira.

Fernanda Abreu é historiadora.

 

Bibliografia:

A. Barahona Brito. Justiça transicional e a política da memória: uma visão global. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça: Brasília, 2009. nº1.

C. S. Bauer. O papel dos historiadores nas garantias dos direitos à memória, à verdade e à justiça. Aedos nº 12 vol. 5 – Jan/Jul 2013.

K. Grinberg. A História nos Porões dos Arquivos Judiciários. In: Pinsky e Luca (orgs), O Historiador e suas fontes. São Paulo: Ed. Contexto, 2012.

G. Konrad; J. Lopes. Arquivos da Repressão e Leis de Acesso à Informação: os casos brasileiro e argentino na construção do direito à memória e à verdade. Aedos nº 13 vol. 5 – Ago/Dez 2013.

Antonio Quintana. Los Archivos de la Seguridad del Estado de los Desaparecidos Regímenes Represivos. Documento de Expertos UNESCO, Paris, 1998. Disponível em: UNESCO

S/A. Coronel Brilhante Ustra é responsabilizado por torturas. Revista Consultor Jurídico. 09 out 2008. Disponível em: Conjur.

 

Notas:

[i] No entanto, vale ressaltar que não se pode atribuir um valor de verdade absoluta aos documentos gerados pelo Estado, já que essa produção estava relacionada a interesses circunstanciais em que os agentes poderiam falsear informações a respeito dos perseguidos

[ii] Embora seja um grande avanço no que tange ao acesso à informação, a Lei de Acesso à Informação (n. 12.527 de 18 de novembro de 2011) permite ainda que sejam classificadas como sigilosas informações “imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado”: vida, saúde e segurança da população e/ou soberania nacional, relações internacionais e inteligência. Dessa maneira, documentos podem ser classificados como ultrassecretos, secretos ou reservados (graus de sigilo) e, assim, receber prazos para acesso (25 anos, 15 anos e 5 anos, respectivamente). (KONRAD e LOPES, 2013).

[iii] Ainda que a Lei de Anistia (nº 6.683/79) garanta anistia aos agentes do estado envolvidos em violações a direitos, o coronel Brilhante Ustra, reconhecido como torturador, fora processado numa ação declaratória (ou seja, que tem apenas valor de declaração) em que o juiz Gustavo S. Teodoro julgou procedente que “o pedido formulado pelos autores César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida, para declarar que entre eles e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais”. Tendo em vista este caso, compreende-se que o possível acesso aos documentos produzidos pelas polícias políticas ou então pelos órgãos de informação auxiliaria nos processos de responsabilidade civil contra agentes e não contra o estado em si. Disponível em: Conjur .

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