Arquivos da OEA, entre intervenções e ditaduras
“A equipe de auditores não pôde validar o resultado da presente eleição, e recomenda um outro processo eleitoral. Qualquer futuro processo deverá contar com novas autoridades eleitorais para poder levar a cabo eleições confiáveis.” dizia o relatório preliminar da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre as eleições bolivianas de 2019 que elegeram Evo Morales, do Movimento Ao Socialismo (MAS), em primeiro turno. “As manipulações do sistema de informática”, continuava o fatídico relatório, “são de tal magnitude que devem ser profundamente investigadas pelo Estado boliviano para chegar a fundo e demarcar as responsabilidades nesse caso grave.”
O relatório que recomendava uma nova votação levantou suspeitas sobre a legalidade da eleição e contribuiu decisivamente para a desestabilização política e para o golpe de Estado que aconteceu na sequência. As alegações da OEA iam ao encontro de grupos da extrema direita, que já vinham falando previamente que Morales e o MAS tentariam fraudar as eleições para seguir no poder. A atuação da organização acendeu o sinal verde para que a extrema direita ocupasse as ruas e iniciasse um processo generalizado de violência. Como consequência, em 11 de novembro de 2019, o então presidente Evo Morales se afastou da presidência em meio às alegações de fraudes e à escalada violenta de milícias conservadoras pelo país. A farsa, recentemente desmantelada, havia concretizado sua tarefa: a deposição de um presidente democraticamente eleito e a ascensão ao poder de Jeanine Áñez.
Este texto tem como objetivo apresentar o fundo arquivístico dessa instituição como uma possibilidade documental para historiadores. Para isso, acredito ser necessário apresentar momentos marcantes da história da OEA. Meu enfoque será as intervenções antidemocráticas promovidas pela entidade.
A serviço do Imperialismo
A intervenção na Bolívia em 2019 não foi um momento fora da curva da história da OEA, pelo contrário. Esta intervenção integra um número de ações que ajudaram a moldar a América Latina. Antes de qualquer coisa, é importante dizer que a OEA foi fundada em 30 de abril de 1948, substituindo a União Internacional das Repúblicas Americanas, criada ainda no século XIX. A organização foi estabelecida a partir dos fins de “cooperação” entre seus Estados membros, sob a hegemonia dos interesses estadunidenses. Nascida na Guerra Fria, a OEA expressou as contradições desse contexto, sendo por vezes chamada a intervir, inclusive militarmente, contra governos progressistas da região. Dois casos emblemáticos das intervenções da OEA foram o golpe de 1954 na Guatemala e a invasão à República Dominicana em 1965. Em 1954, o progressista Jacobo Arbenz foi eleito democraticamente para assumir a presidência da Guatemala. Em seguida, Arbenz foi derrubado por um exército de mercenários apoiado pela Central Intelligence Agency (CIA). Com isso, o militar e político conservador Carlos Castillo Armas chegou ao poder, gerando lutas internas, repressão e instabilidade política que se arrastaram por longos anos na Guatemala. A OEA assistiu a tudo de forma complacente.
Uma década depois, a Força Interamericana de Paz, organizada pela OEA, desembarcou na República Dominicana a fim de apoiar o golpe de Estado contra o político, historiador, escritor, ensaísta e educador, Juan Bosh. Nesse episódio, a ditadura militar brasileira enviou cerca de 4 mil soldados para a República Dominicana, em sua maioria jovens recrutas.
Além disso, a OEA serviu de abrigo e legitimou outras experiências ditatoriais de direita, inclusive a ditadura militar brasileira. A ditadura militar brasileira participou ativamente de seus fóruns, como o Conselho de Segurança da OEA. Naquele que foi, provavelmente, seu ato mais famoso, em 1962, a organização expulsou Cuba de seus quadros por considerar que seu regime político era incompatível com os ideais defendidos por ela. Na ocasião, a ação foi defendida sob a justificativa de que “o método subversivo dos governos comunistas e de seus agentes constitu[iam] uma das mais sutis e perigosas formas de intervenção em assuntos internos dos outros países”.
Em 1977, ventos diferentes sopravam nos Estados Unidos, o democrata Jimmy Carter passou a ocupar a Casa Branca e promoveu um maior distanciamento da política externa americana em relação às ditaduras latinas e caribenhas, então em curso. A presidência de Carter teve reflexos diretos na OEA, principalmente na linha política da Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH) e na criação, em 1979, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A CIDH é um órgão vinculado à OEA, cuja função é a promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano. É integrada por sete membros independentes que atuam de forma pessoal. Enquanto a Corte IDH é uma corte judiciária autônoma composta de sete juízes, de nacionalidades distintas, de Estados membros da OEA, eleitos ou indicados por seus pares em âmbito nacional, cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Nesse contexto político específico, esses dois órgãos ligados à OEA, a CIDH e a Corte IDH, constituíram como espaços de crítica e desmonte das ditaduras militares que outrora haviam sido legitimadas pela instituição. Sem a visita da CIDH à Argentina durante sua última ditadura militar, por exemplo, dificilmente as Madres da Plaza de Mayo teriam ganhado a legitimidade que possuem hoje.
Outro exemplo de que a OEA se flexiona de acordo com a linha da política externa estadunidense é o governo de Barack Obama. Em 2010, dois momentos relevantes são indícios da complexidade que a política externa americana havia adquirido. Naquele ano, o Brasil foi condenado pela Corte IDH, em um marco para a justiça de transição brasileira, no caso da Guerrilha do Araguaia. No mesmo ano, a OEA interveio nos resultados eleitorais do Haiti ao exigir que o candidato posicionado em terceiro lugar, cantor educado nos EUA, Michel Martelly, participasse do segundo turno da eleição, junto à candidata que ficou em primeiro lugar, a ex-primeira-dama Mirlande Manigat, retirando da eleição June Célestin, o segundo classificado. Um relatório da OEA considerou que Célestin havia fraudado as eleições. Desta forma, o candidato vinculado ao movimento popular e camponês ficou fora do pleito para satisfazer a política de Washington. As eleições forram vencidas por Michel Martelly. O primeiro presidente negro dos Estados Unidos interferiu na soberania do país que abrigou a primeira revolução negra do mundo.
Desde 2015, a OEA passou a ser presidida pelo advogado, político e diplomata uruguaio Luis Almagro. Almagro nasceu em Cerro Chato, Uruguai, em 1963, é um político controverso e de escolhas pragmáticas. Estreou na política no Partido Nacional, ou Partido Blanco, conglomerado que engloba diferentes movimentos de centro-direita e de direita. Mais tarde, migrou oportunamente para a coalizão de esquerda chamada de Frente Amplio, tornando-se, em seguida, chanceler durante o governo de Pepe Mujica (2010-2015). Atuação que o gabaritou para o pleito da presidência da OEA em 2015, com o apoio do chamado dos governos progressistas de esquerda da região, inclusive o boliviano e o venezuelano. Uma vez na presidência da OEA, sua agenda política rapidamente se modificou. Aquele era um momento novo de ascensão das direitas na América do Sul. Assim, Almagro foi de um polo a outro, passando a atacar países como Bolívia, Equador e Venezuela em seus discursos. Em 2018, passou a defender publicamente a intervenção militar na Venezuela. Em 14 de agosto de 2018, por exemplo, Almagro, em visita à cidade colombiana de Cúcuta, disse: “Quanto à intervenção militar para derrocar o regime de Nicolás Maduro, creio que não devemos descartar nenhuma opção”. Diante do fato, num flagrante desrespeito às resoluções do partido e à própria aliança que havia lhe dado a presidência da OEA, a Frente Amplio reuniu-se em Plenário Nacional e decidiu por unânimes setenta e cinco votos pela expulsão de suas fileiras.
O giro político que Almagro foi dando acompanhou de certa forma a movimentação da política latino-americana e caribenha. Com a ascensão de figuras da extrema direita nas Américas, a OEA passou a acompanhar a agenda trumpista e adotou uma postura ainda mais agressiva, que relembrava sua atuação na Guerra Fria. Foi nesse contexto também que Almagro se tornou protagonista das costuras políticas do chamado Grupo de Lima, que reuniu figuras como Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Mauricio Macri (Argentina), Lenin Moreno (Ecuador), Sebastián Piñera (Chile) e Iván Duque (Colômbia) – sem falar no autoproclamado Juan Guaidó (Venezuela), a figura quase cômica em quem os norte-americanos depositaram suas fichas contra a Constituição venezuelana.
Uma instituição com esse histórico pode ser mais acionada pelos historiadores na construção de suas narrativas, sejam elas especificamente voltadas para o papel da instituição na região ou não. O arquivo da OEA pode gerar trabalhos que contribuam com o entendimento transnacional de eventos e personagens relacionados à Guerra Fria ou rupturas democráticas recentes, que por lá deixaram rastros arquivísticos.
O Arquivo da OEA
Enquanto a América Latina girava para a direita e a OEA de Almagro intensificava seu apelo intervencionista, em Washington DC, mais especificamente na Constitution Ave. NW, entre as ruas 18th e 19th, ao lado do Campo Elipse no Parque dos Presidentes e dos Jardins Constitucionais, está o Columbus Memorial Library, centro arquivístico da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Um acervo da OEA obviamente vem carregado de história e significados. O curioso conjunto documental que essa organização produziu sobre as ditaduras latino-americanas e, mais especificamente, sobre a brasileira, pode ajudar pesquisadores a entenderem a dimensão das colaborações transnacionais entre os governos. Essa rica documentação está sob os cuidados da Columbus Memorial Library, biblioteca criada em 24 de janeiro de 1902, quando ocorreu a Segunda Conferência Internacional Americana, reunida na Cidade do México. Este órgão é responsável por gerir a memória institucional da OEA e do Sistema Interamericano.
O prédio da biblioteca, uma espécie de monumento ao colonialismo nas Américas, foi construído em pedras brancas; o estilo arquitetônico do prédio finalizado em 1910 é o neoclássico, com direito até a duas esculturas gregas ao lado das portas em arcos. Sem falar na escultura em homenagem à Rainha Isabel I de Castela, conhecida por seu patrocínio às expedições de Colombo, que discretamente repousa sem ser incomodada por manifestantes de(s)colonizadores, dando as boas-vindas na entrada do prédio.
Para chegar lá, a estação de metrô mais próxima é Farragut West, que está a cerca de um quilômetro de distância. É uma caminhada boa, mas dá para aproveitar e ver a Casa Branca e os jardins, se o tempo estiver bom.
É nesse arquivo que está também a documentação oficial de conferências e reuniões especializadas dos diversos comitês constituídos no âmbito da OEA, bem como publicações de seus órgãos especializados. Muitos dos documentos podem ser buscados na ferramenta do site e depois solicitados pelo e-mail CMLibrary@oas.org – o que torna o acesso relativamente fácil em tempos de pandemia e com o dólar valendo quase seis reais. O acervo contém registros de reuniões e comitês que abordaram temas que vão da agricultura até a segurança dos países americanos e caribenhos. Os documentos tratam de todos os países membros e Cuba, como não poderia deixar de ser. Parte dos documentos pode ser acessada em inglês e espanhol. Destacamos na imagem abaixo um trecho de teor anticomunista do 8th Meeting of Consultation of Ministers of Foreign Affairs. Act. Punta del Este, Uruguay, January 22-31, 1962. (OEA/Ser.C/II.8), momento em que a OEA excluiu Cuba de seu quadro de países membros.
Além da documentação relativa à Guerra Fria, há um conjunto de “obras históricas, geográficas e literárias, mapas, manuscritos e documentos oficiais relativos à história e à civilização da América”, que podem ajudar historiadores de outros períodos. As coleções da Columbus Memorial Library contêm livros, periódicos, documentos, manuscritos, microfilmes, fotografias e outros materiais gráficos e audiovisuais. O acervo geral tem em seu catálogo mais de 500.000 volumes distribuídos por treze fundos (Collections).
Entre os manuscritos, documentos e relatórios, é possível percorrer a história latino-americana, principalmente os aspectos que a conectam com o imperialismo estadunidense. Se sua pesquisa se relaciona com aspectos transnacionais das ditaduras latino-americanas e caribenhas, é melhor dar uma boa olhada no material cuidadosamente guardado na Columbus Memorial Library, sob a vista da estátua de Isabel.
Entre intervenções, inflexões e descontinuidades, a OEA foi se constituindo como um canal de intervenção e legitimação da ação dos EUA na região, seja fomentando ditaduras ou desmontando-as. A necessidade de construção de uma organização que possa ser um espaço de garantia da autonomia nacional, da promoção dos direitos humanos na região e da articulação dos países no fortalecimento de suas economias, segue sendo um desafio. Desafio que também pertence aos historiadores e historiadoras, na sua tarefa de narrar os caminhos e descaminhos da América Latina e caribenha.
Créditos da imagem destacada: Evo Morales. Autor: Joel Alvarez. 2008. Wikimedia Commons.
Os detalhes de como a OEA chegou a conclusões tão trágicas foram descritos em artigos como o de David Rosnick, publicados na Jacobin Brasil.
Para mais informações sobre o golpe de Estado na Bolívia ver Becker, Thomas; Farthing, Linda. Coup: A Story of Violence and Resistance in Bolivia. Chicago: Haymarket Books, 2021.
Cuba foi suspensa da OEA em 31 de janeiro de 1962, após o seu governo declarar o caráter socialista da Revolução Cubana e se aliar à URSS, tornando-se perigosa na visão dos países membros sob a liderança dos EUA. A decisão foi adotada na 8ª Assembleia em Punta del Este, Uruguai. Em 2009, a assembleia da OEA revogou tal decisão, numa derrota histórica da diplomacia americana.
Pan American Health Organization; Inter-American Children's Institute; Inter-American Commission of Women; Pan American Institute of Geography and History; Institute for Cooperation on Agriculture; Inter-American Commission on Human Rights; Inter-American Court of Human Rights; Inter-American Drug Abuse Control Commission; Inter-American Indian Institute; Inter-American Development Bank; Inter-American Defense Board; Inter-American Committee against Terrorism; Inter-American Committee on Natural Disaster Reduction; Inter-American Committee on Ports; Inter-American Telecommunication Commission; Justice Studies Center of the Americas; Pan American Development Foundation
Como citar este artigo:
BARBOSA, Caio Fernandes. Arquivos da OEA, entre intervenções e ditaduras. História da Ditadura, 25 jan. 2022. Disponível em: ttps://www.historiadaditadura.com.br/post/arquivosdaoeaentreintervencoeseditaduras Acesso em: [inserir data].
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