Aruanda: um Nordeste esquecido
Atualizado: 1 de dez. de 2021
“Você já assistiu Bacurau?” Provavelmente, sim! Mas não, este texto não é sobre o cinema contemporâneo realizado no Nordeste, embora pudesse ser (quem sabe, em breve?). Esta coluna é sobre as narrativas que construíram e constroem imagens sobre esta região do país. E você já viu Aruanda? Trago para nossa coluna um pouco da história do célebre documentário paraibano dirigido por Linduarte Noronha, cineasta acusado de “comunista” pelo teor social de seus projetos.
A história de Aruanda antecede a realização do filme. Em agosto de 1957, o jornal paraibano A União publicou em duas partes a reportagem As Oleiras de Olho d’Àgua da Serra do Talhado, trabalho singular de Linduarte Noronha, que também escrevia críticas cinematográficas no periódico. Ao fazer essa reportagem, o jornalista teve contato com a realidade das mulheres ceramistas da Serra do Talhado, comunidade remanescente do quilombo fundado por Zé Bento no século XIX.
Linduarte Noronha tornou pública uma realidade esquecida do Nordeste brasileiro por meio da reportagem com imagens fotográficas de sua própria autoria. Daquela experiência surgiu uma inquietação, que ficou em sua cabeça: fazer um filme documental. O amadurecimento desta ideia levou-lhe a realizar, entre 1959 e 1960, o filme Aruanda, resultado de suas inquietações como jornalista e crítico cinematográfico.
O documentário de vinte e um minutos teve uma equipe modesta: Linduarte Noronha, na direção e no roteiro; Rucker Vieira, na câmera, fotografia e montagem; e Vladimir Carvalho e João Ramiro Mello, na assistência de produção. Contou ainda com o apoio do Instituto Nacional de Cinema Educativo, que, através da figura de Humberto Mauro, concedeu uma câmera de corda Aymour e um tripé, e do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de onde obtiveram os recursos financeiros para a produção.
Aruanda marcou o início do denominado ciclo de cinema documentário paraibano (1959-1979), importante movimento cinematográfico na região e objeto de pesquisa do professor José Marinho de Oliveira (1998).
Imagens do filme Aruanda (Linduarte Noronha, 1960). Fonte: Cinemateca Pernambucana. Reprodução.
Aruanda foi, inicialmente, apresentado no Rio de Janeiro, no auditório do Palácio Capanema (Ministério de Educação e Cultura), em sessão fechada. Em seguida, estreou em João Pessoa e Recife. Naquele período, foi também exibido no Clube de Cinema do Rio de Janeiro. Porém, foi em São Paulo que o filme alcançou o reconhecimento nacional, quando exibido na I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, entre os dias 12 e 15 de novembro de 1960, e, posteriormente, na Bienal de São Paulo de 1961. Jean-Claude Bernardet afirmou: “Vindo das lonjuras da Paraíba, Linduarte Noronha dava uma das respostas mais violentas às perguntas: que deve dizer o cinema brasileiro? Como fazer cinema sem equipamento, sem dinheiro, sem circuito de exibição?”.
O curta-metragem tornou-se um marco para uma nova fase do cinema brasileiro, aliando a crítica social a uma definição de Brasil. Os filmes Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, 1959) e Aruanda são considerados matrizes ideológicas do Cinema Novo brasileiro, inaugurando uma nova forma estética de representar o país. Em Arraial do Cabo, a instalação de uma indústria química em um reduto de pescadores no litoral do Rio de Janeiro traz consequências sociais àquele município. Enquanto Aruanda representa o Nordeste brasileiro, o sertão paraibano, onde um ex-escravo funda um quilombo em meio à geografia inóspita. Ambos os documentários trabalhavam questões sociais e os efeitos da ausência do poder público naquelas regiões.
As origens do Cinema Novo passaram pelo documentário, seja por suas formas de contestar e transgredir as regras impostas pelo cinema comercial, seja por realizar um cinema fora dos estúdios, do “cinema verdade”, da experimentação. Glauber Rocha (2003) afirmava que esse modo de fazer cinema era a melhor escola. Como também referenciou Bernardet ao falar de Aruanda: “uma realidade subdesenvolvida filmada de modo subdesenvolvido”.
Nesta nova fase do cinema brasileiro, o Nordeste, tanto nos documentários quanto nos ficcionais, transformara-se em um personagem presente, como uma das faces de um Brasil esquecido. Na década de 1960, passou a ser representado em vários filmes e explorado seus aspectos sociais, de carestia e abandono, de modo que foi se construindo uma imagem sobre a região. Nesse sentido, filmes como Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) foram emblemáticos.
Vidas Secas, por exemplo, é uma versão homônima do romance de Graciliano Ramos, escrito no final da década de 1930, sobre a vida de uma família retirante. A obra-prima do escritor alagoano, que se tornou um filme referencial do diretor Nelson Pereira dos Santos e do Cinema Novo.
Segundo Vladimir Carvalho, Aruanda influenciou uma geração posterior de filmes sobre o Nordeste, especialmente no Cinema Novo. Vidas Secas se inspirou na fotografia cinematográfica do filme paraibano. Inspiraria também Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Barravento (1969), ambos de Glauber Rocha. Nasce então um mito fundador.
O cinema deveria abordar temas nacionais e populares, que revelassem os problemas sociais, políticos e econômicos do país. Mesmo nos ficcionais, as discussões se pautavam em questões contemporâneas: “Para Nelson Pereira Santos, por exemplo, transpor Vidas Secas para a tela visou contribuir com o debate da problemática da reforma agrária no Nordeste, que estavam na ordem do dia”.
Rudá de Andrade afirma que Aruanda foi realizado no “ano em que terminava a euforia desenvolvimentista de Juscelino, passava-se pelos delírios de Jânio, para se cair no período reivindicatório de Jango”. De acordo com Carvalho, são anos decisivos:
Todo um ciclo histórico estava começando; o Brasil pós-JK, posso dizer, ao apagar das luzes do governo Juscelino, em 59/60. É o nascimento dessa coisa com a classe média começando a ascender e a gente começando a descobrir o próprio Brasil, o morro carioca, o povo etc., etc. É difícil recompor isso hoje e passar às novas gerações o que era esse sentimento.
O termo “Aruanda”, que dá título ao documentário, é considerado uma variação de Luanda. Remonta o desejo dos homens e das mulheres negras escravizadas em voltar a sua terra natal, ou de ter sua terra, com condições para viver. Tornou-se um símbolo espiritual nas religiões afro-brasileiras. Metaforicamente, o filme associou a vida no Talhado a este símbolo.
A temática quilombola, entretanto, era debatida pelas Ciências Sociais desde finais dos anos 1940, após a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Em 1947, o etnólogo baiano Edison Carneiro, considerado um dos pioneiros em conceber uma sociologia própria dos quilombos no Brasil, lançou o livro O Quilombo dos Palmares, sobre a mais famosa comunidade formada por escravos fugidos do país.
Na Paraíba de Aruanda, o então secretário de Educação e advogado Ivaldo Falconi publicou em 1949 no Correio das Artes (suplemento do A União) o artigo Um Quilombo Esquecido, sobre Caiana dos Crioulos, uma comunidade quilombola localizada na zona rural do município de Alagoa Grande, próximo a Campina Grande, agreste paraibano.
O debate crescia e tornava-se pauta das Ciências Sociais. Foram ainda mais conhecidas as reflexões do sociólogo Florestan Fernandes, através do seu principal livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes, originado a partir da tese defendida em 1964 e publicada em 1965. Para Fernandes, o grau de integração do negro na sociedade brasileira é um parâmetro para a nossa democracia:
O negro vai ser sempre, enquanto não houver democracia no Brasil, o nosso melhor ponto de referência para determinar que o Brasil não é uma sociedade democrática. (...) Uma democracia deve ser um regime político, econômico, cultural, social que permite estabelecer igualdade entre todas as raças.
Aruanda atestou o abandono do poder público aos remanescentes quilombolas, situação agravada com o golpe de 1964. Florestan Fernandes, Linduarte Noronha e outros tantos intelectuais e artistas foram atingidos pela ditadura que se instaurou. Após a promulgação do Ato Institucional nº 5, Florestan Fernandes foi aposentado compulsoriamente da Universidade de São Paulo.
Já o diretor de Aruanda foi ao Rio de Janeiro às vésperas do golpe em busca de uma câmera cinematográfica para a Universidade da Paraíba, onde era professor. Adquiriu uma Kohbac 35 de fabricação soviética, o que lhe rendeu, com o advento da ditadura, seu afastamento da instituição e as portas fechadas para uma série de projetos, como as adaptações de Geografia da Fome e Jangada. Essa história foi narrada no documentário Kohbac - A Maldição da Câmera Vermelha (2009), de Lúcio Vilar.
Para o Serviço Nacional de Informações (SNI), a câmera foi considerada uma “oferta da chefia da Exposição Soviética à Reitoria da Paraíba”. A ditadura apreendeu ainda uma cópia do seu mais famoso documentário, Aruanda. Em 1967, o diretor requereu ao Comando do 15º Regimento de Infantaria (PB) o filme apreendido, que se encontrava no Comando da 7ª Região Militar (PE), conforme apresentado pelo projeto Documentos da Ditadura. Apenas em 1979, com a anistia, recuperaria seu cargo de professor da UFPB, onde se aposentou.
Um dossiê do SNI - Agência Recife revela que Linduarte Noronha foi monitorado pela ditadura durante anos, suspeito de comunismo por conta do teor social de seus projetos fotográficos e cinematográficos. Demonstrar os problemas sociais do nosso país, a questão dos quilombos, criticar a ausência de políticas públicas e manifestar uma posição contra as desigualdades foi e continua sendo uma suposta prática comunista.
Talvez, este tipo de documentário não seja sobre um Nordeste esquecido, mas sobre um Brasil que se procura esquecer. Ainda hoje. Especialmente hoje. E a função do historiador e da historiadora, vocês sabem qual é.
PARAIBARUANDA singular plural.
Mito e contramito da nordestinidade.
Para narrar, tecer e desmascarar as cruéis marcas do subdesenvolvimento,
a câmera puxa e repuxa o audiovisual estourando as percepções.
Como o primeiro estouro de uma boiada...
(Poema de Jomard Muniz de Bitto)
Créditos da imagem destacada: Cena do documentário Aruanda. Reprodução.
Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009.
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GOMES, João de Lima (Org.). Aruanda: jornada brasileira. João Pessoa: Ed. UFPB, 2003.
MARINHO, José. Dos homens e das pedras: o ciclo do documentário paraibano (1959-1979). Niterói: EdUFF, 1998.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
José Bento Carneiro, ou Zé Bento, ficou conhecido pela tradição oral da comunidade como o fundador do quilombo. Segundo os relatos, ex-escravo, organizou o Talhado em 1860 depois de uma rápida passagem pelo quilombo das Pitombeiras, no Piauí. Zé Bento era carpinteiro, enquanto sua esposa, Cecília Maria da Purificação (Mãe Cizia), louceira. Foram à Paraíba em busca de madeira e barro, materiais indispensáveis para seus ofícios.
O Prof. José Marinho de Oliveira (1933-2021) faleceu recentemente, em julho de 2021. Pernambucano, ele foi professor do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF), onde ingressou em 1971 para participar da implantação do Curso de Cinema, fundado por Nelson Pereira dos Santos. Paralelamente, trabalhou como ator no cinema, teatro e televisão. Atuou nos filmes “Terra em Transe” (1967) de Glauber Rocha e “O Bandido da Luz Vermelha” (1968) de Rogério Sganzerla, nas peças “Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come” direção de Gianni Ratto da peça de Oduvaldo Vianna Filho, “Senhor Puntilla e seu Criado Matti”, peça de Bertold Brecht e direção de Flávio Rangel e “Dom Quixote de la Mancha”, em adaptação de Luiz Augusto Marones, e nas telenovelas “Roque Santeiro” e “O Rei do Gado” (1997) da TV Globo.
Glauber Rocha escreveu sobre o tema no artigo Documentários: Arraial do Cabo e Aruanda, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (RJ) em 6 de agosto de 1960.
Além de Edison Carneiro, Clóvis Moura, autor de Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959), é considerado um autor da “tradição quilombola”, contemporâneo à realização de Aruanda.
Florestan Fernandes em entrevista para o programa Vox Popolli, 1984.