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Foto do escritorMonyse Ravena

As crianças Sem Terrinha são filhas dos Sem Terra?

Atualizado: 12 de dez. de 2023

Nos anos iniciais de organização, em plena ditadura, o mais comum era as crianças representando a esperança no futuro, a imagem que sensibiliza a sociedade.


Ano após ano, durante o mês de outubro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realiza a Jornada de Lutas das Crianças Sem Terrinha. Este ano, mesmo com a turbulência de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que teve como objetivo criminalizar o MST e as lutas sociais, não foi diferente. As crianças se juntaram, debateram, brincaram, marcharam, lutando por educação e por uma vida digna. São as crianças Sem Terrinha, filhas dos Sem Terra?


Crianças assentadas participam de atividade educativa de plantação de mudas
Crianças assentadas participam de atividade educativa de plantação de mudas. Imagem: Dowglas Silva. Reprodução.

Ao tratar a infância como parte ativa de um todo e as crianças como sujeitos de direitos e com autonomia, o MST ajuda a quebrar a lógica histórica da infância como um universo específico, considerado separado do mundo dos adultos. Nesse sentido, a infância comporta, portanto, dupla perspectiva: de um lado, dada a importância nos cuidados da família e da sociedade com o desenvolvimento e a educação da criança, a infância converteu-se num dos sustentáculos da moral e da ordem do Estado moderno, mas não da perspectiva ativa de sujeito social. De outro, a atenção especial a ela dispensada, despertando novos sentimentos, nova afetividade, elevou à criança à condição de sujeito – portador não apenas de deveres, mas também de direitos.


A partir dos anos 1990, diversas áreas de conhecimento acadêmico, movimentos populares e parcelas do Estado passaram a incorporar a temática da infância em suas agendas. Contudo, as crianças, mulheres, negros, indígenas e outros sujeitos sociais ainda continuam sendo definidos no discurso hegemônico como Outros. Negros, mulheres, crianças são categorias que só vigem no espaço social em que são estabelecidas, negociadas, desestabilizadas e reconstruídas. Até que esperneiam, acham a voz, gritam, fazem barulho e, pouco a pouco, vão invertendo a posição nos discursos, daí passam a ser sujeitos falantes.


A construção identitária das crianças que passam de “filhos de Sem Terra” a “Sem Terrinha”, com nome e identidade próprios, é um dos mecanismos de elaboração de identidade do Movimento. Mesmo que isso permaneça ancorado na visão de que a criança é o futuro do MST, é preciso forjar convicções desde a infância, o que se observa nos mecanismos de convívio coletivo e da experiência de uma pedagogia da militância no presente.


Saci Pererê.
Saci Pererê. Reprodução. Wikimedia Commons.

A identidade Sem Terrinha é trabalhada a partir de várias matrizes do conhecimento e da dinâmica da vida social. Um dos aspectos dessa dinâmica é a valorização da cultura camponesa e da cultura popular, que perpassam a infância desde algum tempo. Esses elementos são recuperados e, por vezes, ressignificados – como é o caso do Saci Pererê, que, entre os Sem Terrinha, é reconhecido como “guardião das matas e dos saberes populares”.


A perspectiva das crianças como sujeitos de direitos no MST foi construída a partir da trajetória política do Movimento. Nos anos iniciais de organização, em plena ditadura, o mais comum era que as crianças representassem a esperança no futuro. Foi assim com Marco Tiaraju, filho de Roseli Nunes e a primeira criança nascida no acampamento da Fazenda Annoni; a própria criança representava o “marco” da luta.


Essa prática de homenagear a luta com nome de crianças se repete em vários outros lugares, como no acampamento da fazenda Ipaneminha, em São Paulo, no ano de 1992. A primeira criança nascida ali teve o nome Marcos Ipanema. Os pais da criança eram boias-frias, antes de irem para a ocupação. Marcos Ipanema foi recebido pelas famílias do acampamento com um berço feito de galhos, uma espécie de “manjedoura”, recuperando a parábola bíblica.


Desde 1981, ainda em um período da vigência do autoritarismo, no Boletim Sem Terra – primeiro veículo de comunicação do movimento que, anos depois, se transformou no Jornal Sem Terra –, as crianças apareciam em suas páginas porque estavam, de fato, nos barracos de lona, junto a suas famílias na luta pela terra. As crianças e suas famílias sofreram as mais terríveis violências pelas mãos dos latifundiários e de seus jagunços e nas ações truculentas da polícia. Hoje em dia, elas continuam nos acampamentos, assentamentos e mobilizações, mas também nas escolas do campo e nas cirandas infantis, produzindo cultura, comunicação e escrevendo a história.


Quando caminhamos em direção aos anos 1990, encontramos a educação como o principal assunto relativo à infância. Essa é uma temática frequente nas páginas do Jornal. Em meados dos anos 1990, junto à educação, vamos percebendo as crianças como sujeitos sociais da luta do MST. Começam os destaques tanto às mobilizações específicas das crianças Sem Terrinha e nas mais diversas atividades do Movimento, como os Congressos Infantis e Encontro dos Sem Terrinha. A perspectiva das crianças como sujeitos de direitos no MST foi construída a partir da trajetória política do Movimento.


As crianças que existem, moram, vivem, brincam e choram nos acampamentos do MST, desde o início de sua organização, são vítimas de intensa violência por parte do Estado brasileiro – personificado, para elas, como a polícia – e pelos grandes latifundiários, que se diziam donos das terras ocupadas pelas crianças e suas famílias.


 

Como citar este artigo: RAVENA, Monyse. As crianças Sem Terrinha são filhas dos Sem Terra? História da Ditadura, 11 dez. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/as-criancas-sem-terrinha-sao-filhas-dos-sem-terra. Acesso em: [inserir data].

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