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Foto do escritorJúlia Guimarães

As disputas pelo sentido da anistia a partir da Lei nº 6.683 de 1979

Atualizado: 3 de mai. de 2022

No ano de 1985, em sua última entrevista como presidente, o general e ditador João Baptista Figueiredo expressou seu desejo para os anos que se seguiriam: “E que me esqueçam”. Esse desejo de esquecimento já estava presente em 1979, quando, em mensagem dirigida ao Congresso Nacional para o encaminhamento do Projeto de Lei que daria origem à Lei nº 6.683/1979 (mais conhecida como a Lei de Anistia), o general comunicou que, “ao fazê-lo, o Governo tem em vista evitar que se prolonguem processos que, com certeza e por muito tempo, irão traumatizar a sociedade com o conhecimento de eventos que devem ser sepultados em nome da paz” (BRASIL, 1982, p. 22).


João Figueiredo assina, em 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia. Foto: Orlando Brito. Fonte: Agência Senado. Wikimedia Commons.

Assim, o esquecimento foi a ordem que norteou o Projeto de Lei gestado pelo Poder Executivo. Escrita por Petrônio Portella, então ministro da Justiça do governo Figueiredo, e com interesse direto de Golbery do Couto e Silva (MEYER, 2012), a proposta chegou sem discussão prévia ao Congresso Nacional, que o aprovou com poucas alterações devido à maioria governista que compunha suas cadeiras.


Promulgada no dia 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia pode ser vista como uma imposição do regime, integrando sua política de abertura lenta e gradualmente controlada. Isso fica claro a partir de seu dispositivo mais controverso: o artigo 1º, que prevê quais crimes seriam anistiados. Este artigo dispõe que seriam anistiados os crimes políticos e conexos a eles, sendo estes “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” (BRASIL, 1979). Em outros termos, seriam anistiados os crimes políticos praticados pelos opositores do regime – excetuando-se “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” (BRASIL, 1979) –, bem como aqueles que praticaram crimes conexos. Todavia, o que seriam esses crimes conexos?


Para o regime, a expressão “crimes conexos” abarcaria os crimes cometidos por agentes públicos, civis e militares, que praticaram graves violações de Direitos Humanos durante o período que vai de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Anistiados, esses agentes não poderiam sofrer sanções penais por seus crimes, que deveriam ser esquecidos. Seria o sepultamento em nome da paz, nos termos do general Figueiredo.

Manifestantes pressionam Congresso. Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo. Fonte: Agência Senado. Wikimedia Commons.

Desse modo, o que se percebe e o que caracteriza a lei como imposta é fundamentalmente sua seletividade ao anistiar apenas uma parte dos que lutaram contra a ditadura e sua generalidade ao estabelecer a impunidade dos agentes públicos que compuseram a violenta engrenagem do regime.


Todavia, mesmo imposta, podemos atribuir a promulgação da lei sobretudo à luta pela anistia travada por opositores políticos e seus familiares, que exerceram importante mobilização para abertura do regime. Nesse sentido, é importante mencionar que a bandeira por uma anistia “ampla, geral e irrestrita” levantada por parte da sociedade civil – sobretudo nos Congressos Nacionais pela Anistia – não dizia respeito a uma anistia de mão dupla ou um perdão para os torturadores, mas a necessidade de exclusão do parágrafo da lei que restringia a anistia a certos perseguidos políticos (MEYER, 2012).


Contudo, os opositores políticos do regime não se encontravam em pé de igualdade para estabelecer qualquer tipo de “acordo político” ou “conciliação” para a feitura da lei, visto que esta foi gestada por um governo ditatorial e por um Congresso controlado – o que não retira, de modo algum, a importância das mobilizações da sociedade civil no processo de redemocratização (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017). Apesar da Lei de Anistia fazer parte da lenta e gradual abertura do regime, ainda vivíamos sob uma ditadura. Basta recordar a manutenção do arcabouço jurídico ditatorial, o que Anthony W. Pereira (2010) denominou como “legalidade autoritária”, que pode ser exemplificado, sobretudo, na permanência de uma Constituição imposta por meio de emenda à carta autoritária de 1967 (EC nº 1 de 1969).


Não obstante a impossibilidade de se verificar qualquer tipo de “acordo político” na elaboração da lei, no ano de 2010 o Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF 153/DF), compreendeu que a expressão “crime conexo” poderia abarcar a anistia aos agentes da ditadura, uma vez que teria ocorrido um acordo político legitimador da Lei de Anistia – possibilitando uma transição conciliada para a democracia (BRASIL, 2010).


Por iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a ADPF n. 153/DF foi ajuizada contra o disposto no § 1º do Art. 1º da Lei Federal nº 6.683/1979 sob o argumento da existência de controvérsia constitucional. Esta seria se esse artigo, considerando a promulgação da Constituição de 1988, também teria anistiado crimes praticados por agentes públicos durante a ditadura (1964-1985), já que a expressão “crime conexo” seria obscura. Mas qual foi o pedido dessa ADPF?

O Conselho Federal da OAB requereu que a Lei 6.683/1979 fosse interpretada conforme a Constituição de 1988, o que impediria a compreensão de uma anistia concedida aos agentes públicos do regime, visto que essa interpretação feriria uma série de preceitos fundamentais. Todavia, esse não foi o entendimento do STF, que julgou o pedido improcedente, conforme já mencionado. Apesar dessa decisão, a ADPF 153/DF ainda se encontra em fase de julgamento de recurso interposto pelo Conselho Federal.


Muitas foram as críticas direcionadas à decisão, que se deram tanto no sentido de que o Tribunal se arvorou da função de historiador, mas de um historiador que distorce os fatos ao compreender a existência de um “acordo político”, como no sentido de uma decisão que desrespeitou normas constitucionais e internacionais (MEYER, 2012). No que diz respeito às questões jurídicas, o que se questiona é o fato de que, não obstante a presença de uma retórica em prol da democracia, a decisão ignorou o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este, ao qual o Brasil já devia respeito antes mesmo do golpe de 1964, prevê a necessidade de punição das graves violações de Direitos Humanos, crimes de natureza imprescritível.


Reprodução.

No mesmo ano do julgamento do pedido do Conselho Federal da OAB, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) julgou o caso Gomes Lund (também conhecido como “Guerrilha do Araguaia”) e condenou o Brasil por unanimidade a investigar legalmente os crimes perpetrados por seus agentes durante a Guerrilha do Araguaia. A Corte também reconheceu que a decisão do STF na ADPF n. 153/DF desrespeitava a normativa internacional da qual o Brasil é signatário (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).


O Caso Gomes Lund abriu possibilidade para a ampliação da discussão da Lei de Anistia. Assim, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressou com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, requerendo que o Brasil cumpra a decisão da CIDH e rejeite quaisquer interpretações que estendam a anistia a crimes de lesa-humanidade praticados por agentes públicos durante a ditadura (PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE, 2019).


No ano de 2014, a Procuradoria-Geral da República emitiu parecer favorável a ação do PSOL, que hoje se encontra apensada à ADPF nº 153/DF, que ainda está pendente de julgamento. Isso significa que as ADPF nº 320 e nº 153 foram unidas devido a sua semelhança temática, já que a decisão daquela pode alterar o entendimento firmado nesta quando do julgamento da improcedência do pedido do Conselho Federal da OAB.


A partir do exposto, observa-se que o sentido da anistia na Lei 6.683/1979 ainda se encontra em discussão. Compreende-se, no entanto, que a única anistia possível é para aqueles que lutaram contra uma ditadura que encarcerou, matou, desapareceu e torturou milhares de vidas.


Assim, a anistia não pode ser compreendida como esquecimento, já que a impossibilidade de clareamento das circunstâncias e dos crimes cometidos oculta parte significativa dos acontecimentos. Tal ocultamento afeta diretamente a esfera pública, visto que à sociedade é negada não somente a punição de crimes contra os Direitos Humanos, mas o acesso a parte importante de sua história.

Não esqueceremos, Figueiredo.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Mista sobre Anistia. Anistia. Volumes I e II. Brasília, 1982.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/DF. Relator: Ministro Eros Grau, 29 de abri. de 2010. Brasília, DF: 2010.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. 2010, pg. 64.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A democracia sem espera: Constituicionalização e transição política no Brasil. In: MEYER, Emílio Peluso Neder (org.). Justiça de transição em perspectiva transnacional. Belo Horizonte: Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG, Secretaria da Rede Latino-Americana de Justiça de Transição e Initia Via, 2017. p. 97-133.

MEYER, Emílio Peluso Neder. Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 153/DF pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2012. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina, São Paulo: Paz e Terra, 2010.

Como citar este artigo:

GUIMARÃES, Júlia. As disputas pelo sentido da anistia a partir da Lei nº 6.683 de 1979. História da Ditadura, 8 mar. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/asdisputaspelosentidodaanistiaapartirdalein6683de1979. Acesso em: [inserir data].


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