As livrarias como espaços de resistência
Atualizado: 2 de set. de 2021
Se você é um apaixonado por livro – pelo objeto e pelas letras que ele carrega – e ainda não conhece o escritor, tradutor e editor argentino Alberto Manguel, vale muito a pena conhecê-lo. Ele tem o dom de escolher as palavras certas para exprimir os sentimentos que cercam tal objeto. Uma frase dele foi a primeira epígrafe da minha dissertação de mestrado: “Somente anos depois, quando toquei pela primeira vez o corpo amado, foi que percebi que às vezes a literatura podia ficar aquém do evento real” (1997, p. 21). Bem, optei por abrir o texto com esta citação – e a força que ela carrega –, mas minha ideia ao trazer Manguel é levar a discussão a cerca dos livros para o seguinte caminho.
Manguel se aproximou do escritor Jorge Luis Borges quando, por causa da perda da visão, Borges precisou do jovem que trabalhava em uma livraria para ser os seus olhos nas leituras que não podiam cessar. O escritor tinha uma frase que ficou muito conhecida: “Sempre imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca”. É fácil encontrar as mesmas palavras “adaptadas” da seguinte maneira: “Sempre imaginei o paraíso como um tipo de livraria”. Sem entrar na discussão de tal imprecisão e dos interesses intrínsecos nela, pode-se ter um olhar compreensível em relação à afirmação. Ambas – biblioteca e livraria – são espaços de literatura e de conhecimento: são espaços que resistem. É justamente a partir do pressuposto de que livrarias são espaços de resistência que desenvolvi minha dissertação de mestrado e realizo minha pesquisa no doutorado em Literatura.
Meu interesse pelo tema começou ainda na faculdade, quando decidi escrever um livro reportagem sobre a livraria que meu avô materno, Olavo Tormin, abriu em Goiânia. Com um nome curioso, Bazar Oió [I], o espaço deixou marcas importantíssimas na história cultural da cidade, mas faltava um registro escrito que reunisse informações básicas e consistentes sobre a livraria. Tomei para mim essa tarefa – uma mistura de pesquisa acadêmica, trabalho jornalístico e viagem ao passado, na busca por uma história familiar.
A livraria Bazar Oió existiu entre 1951 a 1974. Meu avô criou um espaço de convivência acessível, com produção de jornal cultural, realização de eventos e divulgação da produção literária local. Entre os nomes que lançaram seus livros lá, encontramos desde autores de Goiás que já tinham alcançado reconhecimento no campo literário – para recorrer à expressão usada por Pierre Bourdieu –, como Bernardo Élis e Regina Lacerda, nomes como Mário Palmério e José Mauro de Vasconcelos e também os recém-chegados, como Cora Coralina, poeta que só alcançou reconhecimento de seus pares literários treze anos após a publicação de seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais (1965), lançado na livraria de Olavo Tormin. [II]
Com a ideia de aprofundar mais essa discussão – inclusive do ponto de vista teórico – decidi ingressar no mestrado. Encontrei no Departamento de Pós-Graduação de Literatura da Universidade de Brasília e na figura do meu orientador, Anderson da Mata, o apoio que precisava. Pense você que a livraria não era vista como objeto de estudo no âmbito das pesquisas em Literatura. Os trabalham eram focados, e ainda são, em sua maioria, no texto literário, no gênero e na figura do autor. Foi uma aposta que deu certo. Deu certo ao ponto de que o tema segue no trabalho de doutoramento.
No primeiro momento, analisei a livraria Bazar Oió e o livreiro Olavo Tormin dentro do contexto local e nacional, bem como as formas como eles conseguiram desenvolver dinâmicas e estabelecer conexões que pudessem ser pensadas a partir do conceito de campo literário, de Pierre Bourdieu. Para o sociólogo, é possível fazer uma análise científica da obra de arte, algo que até então não se fazia: “A renúncia ao angelismo do interesse puro pela forma pura é o preço que é preciso pagar para compreender a lógica desses universos sociais [...] e oferecer uma visão mais verdadeira” (2002, p. 15). Ao fazer isso, Bourdieu olha e reflete sobre pontos que eram até então propositadamente ignorados, como as disputas de poder, imposição de interesses, relação entre produtores culturais e entre o campo artístico/literário com outros campos, como o político e o econômico.
E onde entra a ditadura nessa história? Bem, Olavo Tormin e o Bazar Oió eram vigiados de perto pelos militares. Segundo documento do Serviço Nacional de Informações (SNI), a livraria era vista como um “local de reunião dos intelectuais esquerdistas da capital goiana, e onde sempre estão à venda com destaque livros de propaganda comunista”. [III] No mesmo documento, afirmam que o livreiro “exercia em função do seu próprio temperamento dinâmico grande influência no funcionamento da Caixa (Econômica Federal)”, onde trabalhava; questionam a atuação dele como dono de um comércio tendo em vista que era servidor público; e pontuam que Tormin foi o responsável pelo contrato de distribuição exclusiva da coleção História do povo brasileiro (1968), de Jânio Quadros.
Em 1969, poucos meses depois da instauração do AI-5, foi criada uma subcomissão da Comissão Geral de Inquérito, cujo comando foi assumido pelo major Eurides Curvo. Somados à visão que os militares tinham da livraria Bazar Oió e de Olavo Tormin, havia ainda conflitos de cunho pessoal. Curvo tinha sido demitido da Caixa Econômica Federal pouco tempo antes “sob acusação de incompetência e de perseguir deliberadamente funcionários que entendiam serem contrários ao regime militar que mandava na época” (Diário da Manhã, 1999). Após assumir a SubCGI, o major se voltou contra Olavo Tormin, que era tesoureiro da CEF, além de outros dois funcionários, Calixto Antônio e Thirso Corrêa Rosa, que era o presidente da seção em Goiás e que o tinha demitido. A denúncia – nunca provada – foi a de desvio de recursos públicos da instituição financeira. Anos depois, testemunhas que depuseram no processo de indenização confirmaram que “toda a acusação e o inquérito contra Thirso e os outros dois foram ‘em decorrência de vingança ou de ‘birra’ de uma autoridade federal” (Diário da Manhã).
Aproveitando-se do seu cargo temporário e de toda arbitrariedade permitida pelo governo ditatorial, Curvo mandou prender Tormin, tomar seus bens e confiscar o estoque da livraria. Por processos muito semelhantes passarem também Thirso Corrêa Rosa e Antônio Calixto. No caso de Olavo, foram aproximadamente trinta dias de prisão, além de prejuízos financeiros que levariam, anos mais tarde, ao fechamento do espaço e ao esgotamento emocional do livreiro. A população goiana também sofreu prejuízos pois contava com um espaço de cultura único, em uma cidade ainda muito jovem. [IV]
Em entrevista ao jornal O Popular, em julho de 2012, Eurides Curvo disse que se negou a dar depoimento à Comissão Nacional da Verdade e defendeu o que ele chama de “Revolução de 64” e todas as suas atitudes nos anos de ditadura. Suas ações foram recompensadas ou, ao menos, ignoradas: ele chegou ao posto de tenente-coronel de Infantaria e aposentou-se como professor titular da Escola de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Federal de Goiás.
Casos como este não são exceção: é por isso que investi no assunto para minha pesquisa de doutorado. Atualmente analiso a relevância de algumas livrarias que funcionaram como espaços de resistência durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Uma delas foi a Jinkings, em Belém do Pará, criada justamente após seu dono, Raimundo Jinkings, ser aposentado compulsoriamente como servidor público por causa da perseguição política que sofria. Ele era sindicalista, foi um dos fundadores do PSB no Pará e foi presidente do PCB paraense. Após criar a livraria, ele continuou como alvo dos militares e o local chegou a ser metralhado pelo Comando de Caça aos Comunistas. Entre as outras livrarias pesquisadas, temos como exemplos, a Encontro, do português Victor Alegria, que funcionou por onze anos em Brasília, mas que foi fechada por causa das constantes apreensões da censura; e a Livro 7, no Recife (PE), do livreiro Tarcísio Pereira, que se tornou um centro de referência para os artistas e intelectuais pernambucanos durante o regime militar.
Muitos pesquisadores se dedicaram a estudar a história da leitura, da censura e da violência contra os livros. Manguel lembra que colocar fogo em livros é uma prática registrada desde 411 a.C. – em Atenas, com as obras de Protágoras – até a contemporaneidade, na Alemanha nazista: “a história da leitura está iluminada por uma fileira interminável de fogueiras de censores, dos primeiros rolos de papiro aos livros de nossa época” (1997, p. 315). Para a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro (2002) [V], a repressão às ideias é “secular e universal”. Desde fins da Idade Média, agentes da censura usavam como justificativa a necessidade de “purificação social”. Tais atos ainda hoje se repetem, como na ocasião em que o presidente da Fundação Palmares decidiu se dedicar ao desmonte do acervo sob o pretexto de que há obras de “doutrinação comunista”.
Neste momento de intolerância, ignorância e preconceito, a resistência está presente nas suas diversas formas e em diferentes campos. É assim também com as livrarias. As que conseguiram continuar suas atividades, apesar da pandemia, seguem superando novos desafios. Um deles é a concorrência desleal e destruidora da Amazon, em que um título chega a ser vendido com valor menor do que o da própria editora, haja visto que o livro é tratado, armazenado e comercializado, pela empresa, como mais um dos seus milhares de produtos. Quem discute bem essa questão é o catalão Jorge Carrión em Contra Amazon (2020).
Carrión é escritor e um apaixonado por livrarias, autor também de Livrarias (2020), em que escreve sobre as particularidades desses espaços que se transformam e ultrapassam a barreira do comercial. E ele enfatiza que isso acontece por causa da atuação de uma figura tão necessária nesse cenário: a do livreiro ou da livreira: “Definitivamente, uma livraria é muito mais hospitaleira quando, na repetição de visitas ou acasos, se faz amizade com algum de seus livreiros [...] Porque algo tem todo bom livreiro de médico, farmacêutico ou psicólogo. Ou de barman” (p. 268). Que tenhamos cada vez mais livrarias, livreiros e espaços de resistência.
NOTAS:
[I] Cada letra “O” se refere a um dos sócios da livraria: Olavo e Othelo. Os dois eram irmãos. A sociedade durou pouco tempo, mas o nome continuou.
[II] Para ler mais sobre a trajetória da poeta, ver: “De uma literatura combativa a uma literatura pacificada: a questão do controle sobre a poesia de Cora Coralina”, disponível abaixo.
[III] Ver o documento presente no Arquivo Nacional (AN) com código de referência: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_RRR_82001747
[IV] A pedra fundamental foi lançada em 24 de outubro de 1933; a transferência da capital da Cidade de Goiás para Goiânia foi publicada em 23 de março de 1937, pelo Decreto Estadual n.º 1.816; e o batismo cultural ocorreu em julho de 1942.
[V] Carneiro fez um trabalho sobre os livros e textos censurados e confiscados pela polícia política brasileira entre os anos 1930 e 1985 a partir de documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social – DEOPS/SP.
Referências
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, ideias malditas: o DEOPS e as minorias silenciadas. 2ª edição ampliada. São Paulo: Ateliê Editorial, PROIN – Projeto Integral Arquivo do Estado/USP; Fapesp 2002.
CARRIÓN, Jorge. Livrarias: uma história da leitura e de leitores. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
PRATEADO, Hélmiton. Justiça corrige imoralidade. Diário da manhã. Goiânia, s.p., 16 set. 1999.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MOLLO, Lúcia Tormin. Bazar Oió: uma livraria, um livreiro e um campo literário. 2016. x, 135 f., il. Dissertação (Mestrado em Literatura) —Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
MOLLO, Lúcia Tormin; MATA, Anderson Nunes da. De uma literatura combativa a uma literatura pacificada: a questão do controle sobre a poesia de Cora Coralina. Acta Scientiarum. Language and Culture, 39(3), p. 255-262. 2017.
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