As valas comuns dos internatos canadenses e o genocídio dos povos indígenas
Este é o primeiro texto da coluna Descolonizando o Pensamento, na qual pretendo compartilhar reflexões sobre violência, colonialidade e Direitos Humanos, com foco no Brasil e no Canadá, país em que realizei meu estágio de doutorado sanduíche em 2018 e para onde me mudei em 2020 para morar com meu companheiro.
O Canadá virou notícia internacional recentemente, após diversas descobertas de valas comuns com restos mortais não identificados de mais de mil crianças indígenas que viviam nas chamadas residential schools, um sistema colonialista de internatos que visava à assimilação forçada das populações originárias à cultura ocidental.
A opinião pública reagiu com espanto e choque. Parcela da sociedade se revoltou e realizou diversas ações de desobediência civil. Como 70% dos internatos era gerida por congregrações religiosas católicas, pelo menos quatro igrejas na província da Colúmbia Britânica foram queimadas e outras ao redor do Canadá foram objeto de intervenções artísticas com tinta vermelha, representando o sangue indígena. Além disso, estátuas de figuras da realeza britânica – vistas como símbolos do colonialismo – foram derrubadas.
As crianças indígenas eram separadas à força de suas famílias e levadas para os internatos, onde eram proibidas de falar sua própria língua e submetidas a diversos outros tipos de violações e humilhações. Muitas eram até mesmo estupradas; algumas tentavam fugir e morriam no caminho de volta para casa.
O objetivo último dos internatos era promover o extermínio dos povos originários e facilitar a apropriação de seus territórios pelos colonizadores ingleses e franceses.
Mais de 150 mil crianças indígenas passaram por esse sistema de internatos desde o final do século XIX, quando começaram a ser implementados, até a segunda metade do século XX, quando começaram a ser fechados. A última residential school fechou em 1996. Trata-se, portanto, de um passado recente, com muitas vítimas ainda vivas e sendo obrigadas a lidar com o trauma das violências sofridas e a revivê-lo cada vez que novas descobertas são divulgadas.
Em 1991, em resposta a crescentes conflitos entre indígenas e não-indígenas, o governo canadense criou uma comissão nacional para tratar da questão indígena no país. Os povos indígenas estavam insatisfeitos com a forma como o Estado canadense vinha desrespeitando acordos firmados com representantes indígenas e ignorando suas reivindicações em decisões sobre projetos de infraestrutura e de “desenvolvimento” em terras indígenas. A comissão fez uma série de recomendações, tais como restituição de terras e maior respeito aos acordos entre o Estado canadense e os povos indígenas. Porém, a maior parte das recomendações não foi cumprida.
Ao longo dos anos 1990, milhares de indígenas sobreviventes dos internatos passaram a entrar com ações judiciais, requerendo reparação pelas violações a que foram submetidos. Um dos desdobramentos dessas inicativas foi a assinatura de um acordo entre o Poder Judiciário, a Assembleia das Primeiras Nações (organização que representa os povos indígenas em nível nacional no Canadá) e o Governo Federal, que resultou, entre outros encaminhamentos, na implementação de medidas de justiça de transição, como a criação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR). Criada em 2008, a CVR se voltou especificamente à investigação das violações de Direitos Humanos cometidas contra crianças indígenas em tais internatos.
A comissão atuou até 2015, investigando as diversas formas de violências praticadas nas residential schools, realizando audiências públicas e ouvindo cerca de seis mil sobreviventes. Em seu relatório final, a comissão apontou que cerca de 3.200 crianças haviam morrido nos internatos, em razão de suicídios, de afogamentos, de acidentes, das condições degradantes a que eram submetidas, ou mesmo de razões ainda não identificadas. Uma das principais conclusões da comissão foi que os povos indígenas no Canadá foram vítimas de genocídio cultural, uma vez que a intenção do governo ao criar o sistema de internatos era matar as culturas e identidades dos povos originários para facilitar a apropriação de seus territórios.
A CVR concluiu ainda ser provável que muitas outras mortes tenham ocorrido sem serem registradas. As descobertas das valas comuns, que agora vêm à tona, confirmam a hipótese e mostram que o número de vítimas desse passado violento pode ser muito maior.
O Vaticano tem sido cobrado a fazer um pedido oficial de desculpas. Em junho, o Papa Francisco se solidarizou com os povos indígenas e expressou sua “dor” pela descoberta dos restos mortais das crianças, mas não pediu oficialmente desculpas. A Igreja Católica tem sido igualmente cobrada a disponibilizar arquivos sob sua guarda que possam ajudar a compreender as violações ocorridas e as pessoas responsáveis.
Embora alguns documentos tenham sido disponibilizados, percebe-se uma reticência por parte dos líderes católicos em manchar ainda mais a reputação da Igreja junto à opinião pública.
As descobertas dessas valas comuns têm gerado um debate sobre o que é o Canadá e o que significa ser canadense. Algumas cidades cancelaram as comemorações do Canada Day (“Dia do Canadá”), celebrado anualmente no dia 1º de julho, data da unificação de três colônias britânicas em 1867 para formar o Canadá. Como toda “tradição inventada”, tal como proposto por Eric Hobsbawm, o Canada Day busca enfatizar os aspectos positivos do país e de sua história, secundarizando a dimensão colonialista de sua história, o genocídio indígena e os demais feitos dos quais não é possível se orgulhar.
Como os restos mortais encontrados escancaram essa dimensão geralmente secundarizada, as lideranças indígenas organinzaram marchas e atividades voltadas à conscientização sobre esse passado mórbido do Canadá ao longo dos séculos XIX e XX. Com os slogans Truth before Reconciliation (“A verdade antes da reconciliação”) e Every Child Matters (“Toda criança importa”), as manifestações cobraram a abertura dos arquivos ainda não disponibilizados, mais financiamento para a investigação de outras valas e o fim do racismo contra os povos indígenas que constitui uma forma de reprodução do colonialismo por meio da exclusão social, do encarceramento, assassinatos e desaparecimentos, principalmente de mulheres indígenas.
Mas não houve consenso em torno das decisões de cancelar as comemorações do Canada Day e boa parte delas foi mantida. Opositores da ideia têm argumentado que o Canadá tem mais características positivas para se orgulhar do que negativas para se envergonhar e que as recentes descobertas não justificariam cancelar as festividades.
Trata-se, portanto, de uma disputa em torno de quais valores estarão sendo fortalecidos no feriado do dia 1º de julho. Nesse contexto, algumas lideranças indígenas propuseram uma sugestão intermediária de não cancelar por completo o Canada Day, mas incluir atividades de reflexão sobre o legado dos internatos na contemporaneidade e sobre as recomendações da Comissão da Verdade e Reconciliação.
Apesar da grande cobertura que a comissão teve pela imprensa, o choque de muitos canadenses frente às recentes descobertas evidencia a falta de conhecimento histórico sobre os internatos e a forma como o Estado canadense lidou com os povos indígenas ao longo de sua formação.
O debate sobre o legado desses internatos no Canadá nos leva a refletir sobre situações semelhantes no Brasil. Embora não tenha sido criado um sistema nacional de internatos como o canadense, houve iniciativas de remoção forçada de crianças indígenas para escolas salesianas na região Norte do país, onde eram proibidas de falar suas línguas e sujeitas a trabalho forçado e castigos corporais, como mostrou reportagem de Natália Viana, da Agência Pública.
Superar o legado colonial que caracteriza o Canadá, o Brasil e o Sul Global como um todo exige o esforço de não se deixar esquecer as atrocidades cometidas em nome de uma supremacia branca, cristã e genocida. Assim como a memória em torno da ditadura empresarial-militar de 1964-1985 no Brasil, a memória dos passados coloniais canadense e brasileiro também está em disputa. Dependendo de como ela é construída e vivenciada, pode levar à reprodução ou à superação das práticas colonialistas que marcaram a história desses países e que os constitui enquanto nações.
Créditos da imagem destacada: Memorial improvisado próximo ao antigo internato em cujos arredores restos mortais de 215 crianças foram descobertos. Reprodução.
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