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Foto do escritorThiago Sales

Caetano, as contradições da censura e a razão

Em dezembro de 1981, a gravadora Polygram Discos encaminhou para a Turma de Censura e Diversões Públicas (TCDP) do Rio de Janeiro, órgão regional submetido à Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP), sete das doze canções que integrariam o álbum Cores, Nomes de Caetano Veloso, a ser lançado no ano seguinte. Como de praxe nos processos de censura à música, as gravadoras deveriam endereçar ao órgão as letras das composições, que, na maioria dos casos, eram analisadas por mais de um censor. Entretanto, diferentemente da avaliação censória de filmes, peças de teatro e programas de TV, em caso de liberação do material, os pareceres poderiam se resumir a simples carimbos estampados no documento, contendo a assinatura do censor responsável pela apreciação e o selo “Aprovo”. Por outro lado, se o texto sofresse cortes pontuais ou fosse sumariamente proibido, os censores deveriam indicar as razões da intervenção, bem como a fundamentação legal que embasava a decisão.


Eram tempos de abertura política, nos quais o conjunto de engrenagens repressivas do regime militar passava por modificações e rearranjos operacionais tendo em vista o andamento do delicado processo de transição. O fim do “milagre brasileiro” a partir de 1974 – período em que o produto interno bruto atingiu índices acima de 10% ao ano, aliado à crise internacional do petróleo – que impactou significativamente a economia mundial, bem como o retorno das grandes manifestações popular – capitaneadas por sindicatos e movimentos sociais, marcaram a lenta marcha da distensão orquestrada pelos militares. Conforme aponta Francisco Carlos Teixeira da Silva (2019), esse processo, que durou dez anos, no entanto, consistiu mais em uma reconstitucionalização do regime do que propriamente na redemocratização do país.

A partir da segunda metade dos anos 1970, uma série de medidas foi tomada no campo da censura às diversões públicas, no sentido de adequar gradualmente os despachos da área àquele momento da ditadura. A descentralização da censura teatral, que voltou a ser de responsabilidade dos estados, assim como a implementação do Conselho Superior de Censura – instância recursal composta por representantes da sociedade civil capaz de reverter decisões impostas pela DCDP – e o fim da censura prévia de livros, sinalizavam a disposição do governo em reformar parte das atividades censórias.

Contudo, a preocupação com obras de maior alcance popular, como músicas e programas televisivos, se manteve, em grande medida, da mesma forma desde o recrudescimento da ditadura com a edição do AI-5. Tais produtos culturais eram considerados pelo regime ora como instrumentos do comunismo internacional, ora como empecilho direto à formação dos jovens. Foi somente em janeiro de 1980 que o chefe da DCDP, José Vieira Madeira, determinou, por meio de portaria interna, que o exame de letras musicais deveria se concentrar em Brasília, exceto o repertório de carnaval e os festivais de música. Até aquele momento, o órgão central dividia essa responsabilidade com as agências estaduais, que passaram a apenas receber as demandas das gravadoras (GARCIA, 2008). Graças a essa determinação e ao próprio nível de profissionalização alcançado pelo setor desde meados da década anterior, assistiu-se a uma significativa elevação do número de vetos a letras musicais nos últimos anos do regime (CAROCHA, 2007).

No processo relativo ao álbum de Caetano Veloso, os censores se responsabilizaram pela análise das músicas Sina, Queixa, Cavaleiro de Jorge, Surpresa, Um canto de afoxé para o Bloco do Ilê, Trem das cores e Ele me deu um beijo na boca. Com exceção da primeira, composta por Djavan, as demais foram escritas pelo cantor e compositor baiano, sozinho ou em parceria. A polêmica, porém, concentrou-se na leitura de Ele me deu um beijo na boca pela censora Alzira Silva de Oliveira, que aprovou as demais canções, mas considerou imoral o verso que dá título à obra por ser interpretado por um homem: o próprio Caetano. Com mais de sete minutos de duração, a canção é marcada por elementos dialógicos entre duas pessoas e toca em diversos temas daquele período: filosofia, política e movimentos culturais. Porém, “Ele me deu um beijo na boca/ E eu correspondi àquele beijo” foram os únicos versos que incomodaram a censora, que defendeu a interdição integral da letra, pois, segundo sua interpretação, “claro está que se trata de homossexualismo, configurando dessa forma a contradição ao art. 41 item “c” do Regulamento do Dec. 20493/46 que diz: ‘Será negada autorização [...] c) divulgar ou induzir os maus costumes”. (OLIVEIRA, 1982)

A tradição moralizadora da censura das diversões públicas, cuja legislação remonta aos anos 1940, historicamente classificou a representação das sexualidades dissidentes como uma ameaça à estabilidade da sociedade brasileira. No contexto da Guerra Fria, a esse argumento heteronormativo foi adicionada uma nova camada: a sua suposta dimensão subversiva. Condenada como manifestação da subversão, a homossexualidade foi vista pelos teóricos do regime como “uma tática da guerra revolucionária”, com potencial capacidade “degenerativa à segurança nacional anticomunista” (COWAN, 2014, p. 28-29).

A defesa dos “bons costumes” estava expressa claramente no Decreto nº 1.077 de 1970, que atualizou a legislação censória e regulamentou a censura de livros e periódicos com objetivo de “proteger a instituição da família, preservar-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade” (BRASIL, 1970). A noção de contaminação dos valores morais é bastante característica desse discurso, assimilando o contato com os elementos ditos subversivos com uma espécie de contágio contra o qual era necessário se prevenir, assegurando, desse modo, a saúde da nação.


Letra de “Ele me deu um beijo na boca” presente no processo submetido à DCDP.

A recusa da liberação da letra de Caetano pela referida censora e a justificativa que a motiva são indícios de como esse princípio moral atravessou as políticas censórias no país. A resolução final, entretanto, estava condicionada à apreciação de outros três censores, que abriram divergência em relação à opinião de sua colega. Coriolano Fagundes – servidor do órgão desde os anos 1960 e que, inclusive, veio a se tornar chefe da DCDP nos últimos anos de exercício da instituição – considerou que a canção em questão não passava de uma “longa, cansativa, xaroposa brincadeira poético-musical” e defendeu, na sequência, que o censor não poderia “partir de pressupostos, de preconceitos, de deduções aleatórias, para concluir por uma intenção homossexual do compositor”, devendo se ater “ao exame da verdade factual e processual, a qual, na espécie, não vai além do que contém a letra em si mesma”. Por fim, recomendou a liberação, sem restrições.

Na mesma direção, a censora Geralda Coelho julgou que, na obra em análise, a representação da homossexualidade não se configurava concretamente pois, em sua interpretação, a letra se refere apenas à “união de dois homens que se aceitam, apesar da divergência de ideias”. O último parecer, assinado por Maria Resende, reforça a mesma indicação, permitindo execuções fonográficas da música. A fim de resolver o impasse, o processo foi submetido à consideração da chefe da DCDP, Solange Hernandes, que se limitou a inserir um carimbo de liberação, concordando com a decisão manifestada pela maioria dos técnicos encarregados pelo exame.

A historiadora Cecília Riquino Heredia (2015) analisou todos os processos de censura à música produzidos pela DCDP e classificou as recomendações de interdição em cinco categorias: questão moral, questão política, questão social, erros gramaticais e crítica estética, observando que da totalidade de pareceres favoráveis ao veto, 81% deles foram embasados em razões morais. Desse recorte, a abordagem da homossexualidade foi a quarta maior motivadora de interferências nas letras musicais, representando 4,12% do total. A temática foi superada por temas como erotismo (64,98%), linguagem imprópria (11,56%) e drogas (4,70%). Heredia concluiu ainda que, no que diz respeito à orientação de veto, conteúdos como homossexualidade e drogas costumavam conter baixo índice de discrepância entre as decisões dos censores responsáveis por aquele determinado exame. A análise da música Ele me deu um beijo na boca, todavia, escapou a essa tendência.


A iniciativa de centralização da censura em Brasília – aliada à atualização da legislação, à reestruturação da DCDP ao longo dos anos 1970 e à oferta de cursos de capacitação voltados para os censores – visava, sobretudo, padronizar os despachos no órgão. Em grande medida, esses esforços resultaram em um maior alinhamento de pareceres censórios distintos, embora as discrepâncias tenham se mantido e podem ser observadas em processos de naturezas diversas, seja entre colegas de seção ou destes com instâncias superiores. Somente o mergulho na rotina laboral dos censores, por meio dos inúmeros documentos produzidos por eles ao longo dos mais de vinte anos de ditadura, nos permite apreender as particularidades desse exercício. Longe de se restringir à simples determinação do veto, a censura deve ser compreendida como a institucionalização de um crivo estatal que visava se estender sobre os diversos âmbitos da produção cultural e intelectual do país, de modo que até mesmo conteúdos classificados como livres para todos os públicos deveriam, necessariamente, submeter-se a essa chancela.

Com a medida favorável à solicitação da Polygram, o álbum Cores, Nomes foi lançado meses depois, em março de 1982. Em entrevista ao jornal O Globo acerca do novo disco, Caetano é perguntado se a letra de Ele me deu em beijo na boca demonstra seu apego à razão. Concordando com a observação, o compositor pontuou: “quero que a razão sempre cresça [...], nos ilumine e que, para isso, ela esteja sempre aberta a todas as possibilidades” (BAHIANA, 1982). Depois de ser preso e exilado em decorrência da repressão, Caetano Veloso, como diversos outros artistas de sua geração, foi obrigado a conviver com a vigilância sobre seu repertório musical, o que não o impediu de sempre questionar os desafios impostos ao Brasil. Neste caso, frente ao obscurantismo representado pela censura e pelo próprio regime ainda vigentes naquele período, o chamamento à razão deve ser encarado não só como uma advertência sutil, mas como um manifesto por rupturas inadiáveis.

 

REFERÊNCIAS:

BAHIANA, Ana Maria. Os muitos nomes e as cores várias de quem não tem nada a ocultar. O Globo, Rio de Janeiro, 28 de março de 1982.

BRASIL. Decreto-Lei 1.077, de 26 de fevereiro de 1970.

CAROCHA, Maika Lois. Pelos versos das canções: um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

COELHO, Geralda de Macedo. Parecer nº 21/82 referente à música Ele me deu um beijo na boca, de Caetano Veloso. Brasília, 27 de janeiro de 1982. Arquivo Nacional/DF, Fundo DCDP, Seção Censura Prévia, Série Música, Subsérie Letras Musicais, 1982.

COWAN, Benjamin. Homossexualidade, ideologia e “subversão” no regime militar. In: GREEN, James; QUINALHA, Renan (Org.). Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2014.

FAGUNDES, Coriolano de L. C. Parecer nº 17/82 referente à música Ele me deu um beijo na boca, de Caetano Veloso. Brasília, 26 de janeiro de 1982. Arquivo Nacional/DF, Fundo DCDP, Seção Censura Prévia, Série Música, Subsérie Letras Musicais, 1982.

GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). 2008. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

HEREDIA, Cecília Riquino. A caneta e a tesoura: dinâmicas e vicissitudes da censura musical no regime militar. 2015. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

OLIVEIRA, Alzira Silva de. Parecer nº 5402/82 referente à música Ele me deu um beijo na boca, de Caetano Veloso. Brasília, 20 de janeiro de 1982. Arquivo Nacional/DF, Fundo DCDP, Seção Censura Prévia, Série Música, Subsérie Letras Musicais, 1982.

RESENDE, Maria Angélica R. de. Parecer 24/82 referente à música Ele me deu um beijo na boca, de Caetano Veloso. Brasília, 27 de janeiro de 1982. Arquivo Nacional/DF, Fundo DCDP, Seção Censura Prévia, Série Música, Subsérie Letras Musicais, 1982.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano (vol. 4). O tempo do regime autoritário: ditadura militar e redemocratização: Quarta República (1964-1985). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.



Como citar este artigo:

SILVA, Thiago de Sales. Caetano, as contradições da censura e a razão. História da Ditadura, 5 set. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/caetanoascontradicoesdacensuraearazao. Acesso em: [inserir data].


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