Canto do Amor Armado: 88 anos de Sérgio Ricardo
Atualizado: 13 de abr. de 2022
O público que esteve presente no Teatro da Universidade Federal Fluminense (UFF), no dia 2 de outubro de 2018 pôde conferir o show O Cinema na Música de Sérgio Ricardo. O artista dividiu o palco com seus filhos Marina Lutfi, Adriana Lutfi e João Gurgel. E ainda recebeu os amigos João Bosco, Alceu Valença, Dori Caymmi e Geraldo Azevedo para uma participação especial. O evento amalgamou três pontos centrais da carreira de Sérgio: a música, o cinema e o engajamento que permeou toda sua obra. Foi uma maneira de comemorar uma carreira longeva dedicada à arte. O show se desdobrou em CD e DVD e é um convite para descobrir ou redescobrir Sérgio Ricardo, que comemorou 88 anos em 20 de julho de 2020.
Nascido em Marília, estado de São Paulo, no ano de 1932, Sérgio Ricardo foi batizado João Lutfi. Primeiro filho de Abdala Lutfi e Maria Mansur Lutfi. Seu pai nasceu na Síria e emigrou para o Brasil em 1926. Sua mãe, filha de árabes, nasceu no Brasil em 1912, mas chegou a morar na Síria por um tempo. Pertencente a uma família muito musical, sua mãe o matriculou no conservatório Santa Cecília, onde começou a aprender piano. Aos 17 anos, começou a articular sua saída de Marília. Primeiro foi para São Vicente, onde morou na casa de um tio que era proprietário de uma rádio na qual Sérgio trabalhou em diversas funções. Depois de um período em São Vicente, o artista mudou-se para o Rio de Janeiro e, sob os cuidados de outro tio, Sérgio Ricardo matriculou-se no Instituto Lafayette e trabalhou como locutor. Tempos depois, toda a família se mudou para o Rio de Janeiro (PACE, 2010; RICARDO, 1991).
Tocando piano na noite carioca, Sérgio Ricardo foi ficando conhecido no meio artístico. Em 1957, gravou seu primeiro 78 RPM. O convite para gravar partiu de Nazareno de Brito, que havia rejeitado as canções de Sérgio em razão de supostas dificuldades para o mercado assimilar a música considerada mais moderna. As canções gravadas foram Vai Jangada, de Newton Castro e Geraldo Serafim, e Sou Igual a Você de Nazareno de Brito e Alcyr Pires Vermelho.
Foi somente após Maysa gravar a composição Bouquet de Izabel (1958), no disco Convite Para Ouvir Maysa Nº 2, que Sérgio Ricardo teve oportunidade de gravar suas próprias músicas. Sobre a importância da canção interpretada por Maysa, ele lembra: “eu passei a ser um sujeito conhecido, porque a música fez sucesso, tocava muito no rádio”. O convite para participar das reuniões da Bossa Nova partiu de Miele, então assistente de estúdio de Sérgio na TV Continental. O cantor começou a frequentar as famosas reuniões no apartamento de Nara Leão, embora ele já fizesse parte do grupo de pianistas que tocava na noite carioca e já produzisse uma “música moderna”, como era também o caso de Tom Jobim e Jhonny Alf. Sérgio lembra que o pessoal da Bossa Nova gostava de suas músicas mais românticas, como Pernas e O Nosso Olhar, já que essas canções eram mais próximas das temáticas do movimento bossanovista, que acontecia na Zona Sul do Rio de Janeiro (SARAIVA, 2018).
O Engajamento
O historiador Arnaldo Daraya Contier escreve sobre o engajamento do cantor Sérgio Ricardo, com destaque para a canção Zelão, gravada em abril de 1960, quatro anos antes do golpe civil-militar e dois anos antes da redação do projeto do CPC (Centro Popular de Cultura). Para o pesquisador, a canção marca o rompimento de Sérgio Ricardo com a Bossa Nova. A letra apresenta a temática da vivência no morro, uma chuva joga no chão o barracão de Zelão – personagem central da música – e como diz a letra “Nem foi possível salvar o violão”. Para Contier, “Zelão sintetiza essa fusão de uma proposta mais politizada do texto poético com suas novas experimentações no campo da linguagem musical”. Foi a partir de Zelão que Chico de Assis convidou Sérgio para participar do CPC da UNE (União Nacional dos Estudantes), em 1962. Segundo o pesquisador, a temática da canção correspondia aos “pressupostos ideológicos dos partidários da arte revolucionária nas áreas do teatro, cinema, literatura, música, entre outras” (CONTIER, 2013, p.354-6).
Entre os quadros dos frequentadores do CPC, havia nomes como Cacá Diegues, Leon Hirszman, Carlos Lyra e Oduvaldo Vianna Filho. Todos buscavam construir uma arte engajada, que falasse para o “povo”. Diferentemente dos temas bossanovistas, a arte engajada tinha temáticas populares como a vida no morro, o sertão e o cotidiano do trabalhador. Sobre sua participação no CPC, Sérgio recorda que nem ele nem Carlos Lyra “deixamos de ser românticos por causa disto, líricos, e nem deixamos de ser sociais”. Com o golpe civil-militar de 1964, a UNE foi fechada e consequentemente o CPC deixou de existir. Entretanto, o engajamento dos seus participantes foi visível durante a vigência da ditadura.
Como exemplo do engajamento de Sergio Ricardo podemos citar a canção Calabouço (1973), uma homenagem ao estudante Edson Luís de Lima Souto, morto no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, em 1968. No refrão, Sérgio repete a expressão “cala-boca, moço / cala-boca, moço”. Estava evidente a alusão à censura. A capa do disco corrobora esse protesto: o cantor aparece com uma das mãos levantadas com um microfone à frente, no lugar da boca um retângulo branco, no canto direito, a boca está sendo levada por um boneco e poderá ser vista novamente no encarte do disco, onde surge com um balão onde consta as letras das canções do disco.
Esse engajamento de Sérgio Ricardo fez com que ele tivesse seus passos fiscalizados pelo regime militar. Em documento do CISA (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica), datado de 17 de dezembro de 1974, Sérgio Ricardo é descrito como “contestador do regime, ou cripto-comunista conforme se depreende da leitura dos documentos anexos”. No documento confidencial, ainda estão arroladas as atividades de Sérgio Ricardo consideradas contrárias à ditadura vigente.
Sérgio Ricardo numa moviola examinando negativos do filme Juliana do Amor Perdido, década de 1970. Acervo: Sérgio Ricardo.
O Cinema
O mundo do cinema também faz parte da obra de Sérgio Ricardo. Em 1961, ele filmou seu primeiro curta-metragem, O Menino da Calça Branca (1961), filme permeado pela temática social e bem próximo do que era feito pelo Cinema Novo. O curta teve como montador Nelson Pereira dos Santos. A aproximação com o pessoal do Cinema Novo fez com que Sérgio Ricardo recebesse o convite de Glauber Rocha para fazer a trilha do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol[2] (1964), clássico do cinema nacional estrelado por Othon Bastos e Yoná Magalhães. Nas dezenas de entrevistas que Sérgio deu sobre a trilha do filme, ele lembra que Glauber o fez “berrar como um feirante”, para afastar do estilo bossanovista. No ano de 1964, Sérgio Ricardo lançou seu primeiro longa-metragem, o filme Esse Mundo É Meu, no qual protagoniza as agruras da vida do trabalhador ao lado de Antônio Pitanga. Sérgio interpreta um operário e Antônio, um engraxate.
No filme Juliana do Amor Perdido (1970), a trama se passa em uma aldeia de pescadores controlada por um comerciante. O líder da aldeia falseia a ideia de que sua filha é uma santa para ter o controle da aldeia e dos pescadores. A “santa”, por sua vez, se apaixona pelo maquinista com o qual tenta fugir. Em A Noite do Espantalho (1974), cordel musical gravado em Nova Jerusalém, um dragão vem comprar as terras do coronel Fragoso, mas as quer sem os camponeses, que não as cederão sem grande resistência.
O último filme lançado por Sérgio Ricardo foi Bandeira de Retalhos (2018), um filme ficcional que aborda a verídica história da tentativa de remoção do morro do Vidigal[3], no Rio de Janeiro, na década de 1970. Sérgio possuía um barraco que havia sido marcado para ser derrubado e entrou na briga contra a remoção. O jurista Sobral Pinto resolveu fazer a defesa do cineasta sem ganhar nada. Ganhou a causa na justiça e a remoção foi suspensa. Sérgio transformou essa luta na história do filme cuja figura central é a personagem Tiana (Kizi Vaz), personagem que vive um triângulo amoroso e participa ativamente na luta contra a remoção.
Como se pode observar, todos os filmes de Sérgio Ricardo possuem forte temática social. Em suas mais de oito décadas, o artista soube entrar em boas lutas e é visível sua preocupação em informar por meio da arte. Pelas telas, Sérgio exibiu críticas sociais que fazem sentido para a sociedade brasileira ainda hoje.
A Música
Antônio Houaiss, em texto para o encarte do disco Arrebentação, de 1971, escreveu sobre Sérgio Ricardo: “Sua música é para mim um bem tão grande, que, para ser maior, só poderia desejar que o fosse também de todos os brasileiros”. Para o crítico literário, Sérgio é “artista de espantosa mobilidade criadora” no cinema, enquanto intérprete, mas, é na criação musical “que sua personalidade atinge o ponto mais alto, pois nela tem o seu próprio eixo de coerência e de razão de ser”.
Com uma produção de pouco menos de vinte discos, o que pode ser considerado pouco perto de alguns colegas contemporâneos que lançavam discos anuais, Sérgio não chegou a se vincular a gravadoras por longo tempo. Seus discos estão espalhados nos catálogos das gravadoras Todamérica, Odeon, Forma, Elenco, Philips, Equipe, Continental e RCA Victor. Também foram gravados de forma independente e os dois últimos discos foram lançados pela Biscoito Fino. A preocupação do artista nunca foi mercadológica, antes, Sérgio buscou desenvolver seus trabalhos nas diversas formas de arte.
Sérgio Ricardo tem um grande trabalho autoral, além de ter feito parte da trilha sonora de filmes de outros colegas cineastas e de seus próprios filmes. As músicas do cantor fizeram parte também de trilhas de novelas como em Gina (1978), onde ele interpreta a canção O Nosso Olhar, ou no Long Play do Sítio do Pica-Pau Amarelo (1977), onde ele interpreta sua canção em homenagem à personagem Emília. O lado intérprete também aparece nas trilhas: em O Cafona (1971), sua voz pode ser ouvida ao interpretar a canção Tudo Que eu Sou eu Dei, canção de Carlos Lyra e Ruy Guerra.
A maioria das canções de Sérgio Ricardo são feitas exclusivamente por ele, mas entre seus parceiros, temos nomes como Ruy Guerra, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Chico de Assis, Gianfrancesco Gaurnieri e Ziraldo. Todos demostraram preocupação social em suas obras, mostrando também que o engajamento de Sérgio perpassa toda sua carreira, inclusive na escolha dos parceiros musicais.
Entre os artistas que já gravaram as canções de Sérgio Ricardo, temos uma lista extensa. A já citada Maysa, Elis Regina, Pery Ribeiro, Nara Leão, Alceu Valença, Elza Soares, Marília Medalha, Quarteto em Cy e MPB-4, entre outros nomes reconhecidos na música brasileira.
Sérgio Ricardo
No ano de 1969, em entrevista para o jornal O Pasquim, e em função do tempo que Sérgio Ricardo estava sem gravar, o jornalista o perguntou se estava compondo, ao que Sérgio respondeu: “Tenho feito sim, mas sem qualquer preocupação de colocar no mercado. As minhas últimas composições são fruto de uma necessidade puramente artística”. Ao ser questionado novamente se as músicas não seriam gravadas, o artista afirmou: “Se me surgir uma possibilidade muito boa, mas não procuro”. Ao longo da entrevista, ele ainda aventa a possibilidade de gravar de forma independente, criando uma gravadora. Naquele momento, Sérgio Ricardo estava em vias de terminar o filme Juliana do Amor Perdido e pensava sua criação sem propósitos de vendagem e mercado, algo que balizou toda sua obra, como reafirmam outras entrevistas e memórias.
Seria impossível, em poucas linhas, resumir os 88 anos de vida de Sérgio Ricardo. Nosso panorama de suas produções no cinema e na música é um convite à obra deste artista cujas memórias constituem registros fundamentais da construção artística e histórica de nosso tempo. Além disso, mesmo após décadas de trabalho, ainda há muito da carreira de Sérgio Ricardo para ser redescoberto e pesquisado, pouco dimensionados pela historiografia dedicada às artes no Brasil. Há também novos trabalhos a serem lançados pelo artista, como o romance Igarandé, escrito em 2013 e ainda sem editora.
Notas:
[1] Trecho da canção Canto do Amor Armado, composição de Sérgio Ricardo do LP Arrebentação (1971).
[2] Todas as canções da trilha do filme são assinadas por Sérgio Ricardo e Glauber Rocha. O disco com a trilha sonora foi lançado pela gravadora Forma no ano de 1963.
Referências:
CONTIER, Arnaldo Daraya. Sérgio Ricardo: Modernidade e engajamento político na canção. In: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
Música naquela base. Entrevista de Sérgio Ricardo a Sérgio Cabral. O Pasquim. Edição 23. 1969.
PACE, Eliane. Sérgio Ricardo: Canto Vadio. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
RICARDO, Sérgio. Quem quebrou meu violão. Rio de Janeiro: Record, 1991.
SARAIVA, Daniel. Um Sr, Talento: Sérgio Ricardo – Da Bossa Nova à Canção Engajada. In: SARAIVA, Daniel; HAGEMEYER, Rafael (Org.). Esse mundo é meu: as artes de Sérgio Ricardo. Curitiba: Appris, 2018.
Crédito da imagem destacada: Piri, Fred, Cássio, Franklin e Paulinho de Camafeu com Sérgio Ricardo. Continental, 1973.