Cara ou coroa, de Ugo Giorgetti, e o imperativo da complexidade
Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias, chegou aos cinemas carregado por um movimento de defesa da liberdade de expressão, que envolveu artistas e jornalistas após a proibição do filme pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). No entanto, em meio à celebração e ao sucesso de bilheteria, o cineasta cinemanovista Ruy Guerra criticou duramente Farias pelo tratamento dado aos militares na narrativa. Os homens que torturam e matam o protagonista não são explicitamente vinculados ao governo e o único militar que aparece em todo o filme, um general, se mostra horrorizado com o sequestro de cidadãos brasileiros por grupos paramilitares de extrema-direita.
Farias tinha, claro, a justificativa da permanência da ditadura e da censura como forças limitadoras do que poderia ser dito em Pra Frente, Brasil. É curioso, por isso, encontrar uma representação bastante semelhante trinta anos depois, em tempos democráticos, no filme Cara ou Coroa (2012), de Ugo Giorgetti. O personagem interpretado por Walmor Chagas, avô da namorada de Getúlio (Geraldo Rodrigues), um dos protagonistas, é um general da reserva absolutamente digno e que, apesar de conservador, condena as práticas persecutórias da ditadura militar. Numa cena emblemática, ele recebe em casa um tenente-coronel da ativa que tenta lhe convencer a tornar público seu descontentamento. Na conversa entre os dois surge, inclusive, a afirmação de que a tortura e o assassinato seriam restritos aos “porões”, quando se tratava, na realidade, de uma política de Estado:
General: – Eu ouvi tudo que você disse. Eu já tinha tido algumas informações, mas nunca imaginei que a coisa tivesse chegado a este ponto. Francamente, não sei o que dizer.
Tenente-coronel: – Ora, General, o senhor me surpreende. O senhor sempre disse, claro e alto, tudo que pensava.
General: – Isso em outros tempos. Agora eu estou velho, cansado. E muito afastado. Esses relatos que você faz... veja, eu custo a acreditar, não se ofenda, eu tenho você em muita consideração e acho que você é um homem de bem. Eu custo a acreditar que... o meu Exército! Que coisas assim estejam acontecendo no meu Exército. Ainda que nos porões. Você sabe tudo que eu tive de suportar, não é?
Tenente-coronel: – É por isso, General, é por isso que o senhor é necessário neste momento.
General: – Não, a única coisa que eu posso fazer é oferecer o meu exemplo para quem quiser. Não gosto de comunista, nem de esquerdista. Mas isso nunca me afastou um milímetro da lei. Nem do código do Exército. Sempre fui, acima de qualquer coisa, um soldado. Vivo do meu soldo e unicamente dele! Mal posso manter essa casa, que por sinal é um bem de família. Sempre me chamavam de intolerante, de inflexível... ah, mais perdi do que ganhei com tudo isso. Ganhei principalmente antipatia e ódio em todos os quarteis por onde eu passei. Bom, você sabe como é que me chamavam, não é? “Aquele chato”!
Tenente-coronel: – Tudo que o senhor me disse, General, não só eu sabia, como foi justamente o motivo que me trouxe aqui. Aliás, correndo riscos, como o senhor bem sabe. Mas a dignidade do Exército precisa ser restaurada. O seu exemplo ilumina, sem dúvida, mas não é o suficiente. É necessária sua presença, sua força de soldado absoluto.
General: – Parece que eu precisei chegar perto do fim para finalmente alguém, um outro soldado, me definir dessa maneira. Soldado absoluto. Você não pode imaginar como essa expressão me atingiu. Mas um homem tem que conhecer os limites da sua energia. O seu apelo me comove, sinceramente, e a sua coragem também. Mas não posso, meu amigo. Não posso mais.
Mas Cara ou Coroa é um bom filme, que encontra um tom discreto e acertado para abordar o passado ditatorial, escapando de alguns clichês e construindo personagens com zelo pela complexidade. O tio taxista dos protagonistas, por exemplo, interpretado por Otávio Augusto, é um sujeito conservador, anticomunista e apegado a valores familiares antiquados, mas capaz de gestos de bondade, inclusive direcionados a um sobrinho que detesta, o diretor de teatro João Pedro (Emílio de Mello). Já o militante comunista encarna outro tipo de conservadorismo, ligado à ortodoxia do Partidão, que o impede de ver valor político na peça contracultural que está ajudando a viabilizar, mas extrapola o estereótipo ao protagonizar, no final, um momento bastante bonito, ainda que recatado, de congraçamento com aqueles aos quais não atribuía muito valor. João Pedro também é uma figura interessante, que carrega uma melancolia decorrente da sucessão de fracassos que marca sua vida, e mesmo o general da reserva é muito bem defendido pelo sempre excelente Walmor Chagas.
Esse personagem recebe um tratamento em geral idealizado, mas que acaba concretizando uma espécie de ideia-chave de Cara ou Coroa: a de que em tempos complexos como os da ditadura militar, as ações de alguns nem sempre seguem uma lógica esperada. O velho general é apresentado como o homem moralista e contrito, que recomenda à neta não se envolver com Getúlio, mas logo esse lugar de repressão é matizado pelas sucessivas demonstrações de afeto pela jovem. Posteriormente, quando ela se envolve na trama para dar guarida a dois militantes comunistas perseguidos, o avô volta a representar uma ameaça, materializada pelo diretor numa ótima cena que chega a remeter ao gênero horror: Lilian (Júlia Ianina), a neta, entra em casa de madrugada, tensa após abrigar os dois clandestinos, e se depara com o general parado nas escadas, filmado em contraplongée como uma enorme sombra, um Nosferatu aterrador. O fato de ele usar nesse momento uma roupa que remete à farda do Exército Brasileiro torna sua imagem uma espécie de síntese do pavor causado pelos militares naquele contexto. Mas, novamente, essa impressão sobre o personagem é descontruída pelo filme, na medida em que Giorgetti insinua que ele tinha conhecimento sobre a ajuda dada por sua neta aos perseguidos – e optou por guardar segredo.
O mesmo procedimento é usado no início da já referida cena do encontro entre o general da reserva e um tenente-coronel. Esse último chega na casa do primeiro de jipe e é recebido por uma Lílian muito assustada. O diretor filma o militar da ativa descendo do carro em câmera lenta, destacando seus óculos escuros e uniforme por meio de um primeiríssimo plano e um close-up. Lílian, nesse momento já totalmente implicada na trama para proteger os comunistas, imagina o pior: o homem estaria ali para prendê-la. Mas o sujeito se revela um crítico da repressão política baseada em torturas e assassinatos. O motivo da visita é nobre.
“Cara ou coroa” é um mote que remete à dicotomia, à necessidade imperativa de escolha. Associado ao contexto da ditadura militar, constrói a aparência de se tratar de um filme puramente maniqueísta, que, como tantos outros do pós-redemocratização, aborda esse período histórico como um embate simplista do bem contra o mal. Mas Cara ou Coroa vai aos poucos acrescentando nuances nessa realidade. Isso é ótimo. O cinema brasileiro carece de olhares mais complexos para os anos 1960 e 1970, que escapem das caricaturas e incorporem avanços promovidos pela historiografia mais recente – mas sem recorrer a um psicologismo barato como fez Bruno Barreto em O Que é Isso, Companheiro? (1997), ao inserir referências descuidadas e preguiçosas a eventuais traumas experimentados por um torturador.
Talvez o problema do filme de Giorgetti seja só mesmo essa incompreensão acerca da barbárie como prática institucional (a fala sobre os “porões” é lamentável) e uma certa idealização do passado das Forças Armadas, que acaba emergindo da relação do personagem do velho general com a memória dos tempos de Força Expedicionária Brasileira (FEB).
* Cara ou Coroa está disponível no serviço de streaming Amazon Prime Video.
Em 8 de abril de 1982, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou o manifesto de repúdio à censura divulgado pela Associação Paulista de Críticos e pela Associação Brasileira de Documentaristas; no mesmo dia, o jornal Zero Hora deu voz ao cineasta Gustavo Dahl, presidente da Associação Brasileira de Cineastas, que também repudiou a ação censória contra o longa-metragem de Farias; no dia 12 de abril, foi divulgado manifesto em defesa da liberdade de criação no cinema, assinado pela Associação Brasileira de Produtores Cinematográficos, pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio de Janeiro, pela Associação Brasileira de Cineastas, pela Associação Paulista de Cineastas, pela Associação dos Técnicos de Cinema, pela Associação Brasileira de Documentaristas (seções do Rio de Janeiro e de São Paulo) e pelo Conselho Nacional de Cineclubes (GUEDES, 2020).
A famigerada Operação Bandeirante (Oban), por exemplo, era subordinada ao II Exército (São Paulo). No livro Como eles agiam (2001), o historiador Carlos Fico cita o depoimento de “uma alta autoridade militar” confirmando a criação da Oban como o atendimento a uma demanda existente entre as forças da repressão por maior articulação que permitisse um combate efetivo à “guerra revolucionária” então em curso no Brasil. Segundo Fico, ocorriam reuniões da Oban todas as quartas-feiras no quartel-general do II Exército, contando com a presença do chefe desse e comandante da Oban, major Waldyr Coelho, de um representante da 2ª Seção do II Exército, do oficial chefe da 2ª Seção do Distrito Naval, do chefe da 2ª Seção da Polícia Militar de São Paulo, de um representante da Polícia Federal e de dois representantes do Dops. A Oban serviu de principal modelo, espécie de projeto-piloto, para a criação do sistema de repressão DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), que, articulado em diversas regiões do país, reunia membros das Forças Armadas, das polícias civis, militares e federal e do Serviço Nacional de Informações (SNI).
O contraplongée é um tipo de enquadramento de baixo para cima, que tende a tornar grandiosos os personagens ou objetos enquadrados.
No primeiríssimo plano, a pessoa é enquadrada dos ombros para cima.
O close-up, ou primeiro plano, é um enquadramento que captura a pessoa da altura do peito para cima.
Esse tipo de caracterização do período da ditadura faz parte de uma memória social das resistências surgida no período da abertura e que se consolidou nos anos seguintes. Segundo Denise Rollemberg (2010), “a partir do ano da anistia, silenciava-se sobre o fato de que aqueles foram anos de ouro para muitos; a consagração da metáfora porão que torna invisível – leia-se, ignorado – o inadmissível, uma vez que nos subterrâneos. A partir dali, a sociedade construía a imagem de si mesma como essencialmente democrática, que repudiara o arbítrio, desde o início, desde sempre, numa uta intransigente contra os militares. Na verdade, o golpe tinha sido militar; a ditadura, militar; o regime, imposto; a sociedade, vítima.”
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