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Foto do escritorHistória da Ditadura

Carolina Maria de Jesus e a ditadura do silenciamento.

Atualizado: 15 de out. de 2020

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) voltou à cena cultural brasileira de forma mais expressiva em 2014 – ano do centenário de seu nascimento. Escritora ainda hoje pouco conhecida entre nós, Carolina foi um dos nomes da literatura brasileira mais traduzidos para o exterior no século XX. Seu livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em São Paulo em 1960, se tornou best-seller e foi traduzido para treze idiomas. Naquela época, Carolina morava na favela do Canindé, em São Paulo.

Após a grande repercussão de Quarto de Despejo no Brasil, alguns críticos tentaram deslegitimar a obra alegando que teria sido escrita pelo jornalista Audálio Dantas e não por Carolina – Audálio tinha conhecido a escritora em 1958 e viabilizou a publicação do seu primeiro livro junto à Livraria/Editora Francisco Alves. Carolina responderia às críticas publicando mais três obras: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), Pedaços de fome (1963) e Provérbios (1963).

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É preciso enfatizar que Carolina escancara, com seu livro, a porta do quarto de despejo do Brasil – a favela – no início dos anos 1960, desconstruindo a visão romântica de alguns músicos e intelectuais sobre esse espaço, denunciando o descaso do poder público para com os pobres enquanto o país vivia a “Era JK” e a bossa nova. A escrita de Carolina incomodava. Recebeu o apelido de “língua de fogo”. Depois do boom da primeira publicação, as obras subsequentes não tiveram a mesma repercussão do livro de estreia no nosso país.

Podemos inferir que o silenciamento de Carolina teve início aí, mas é emblemático que sua última publicação seja datada de 1963, um ano antes do golpe civil-militar de 1964 e que em 1971, o documentário Favela – Das Leben in Armut (Favela: a vida na pobreza), da diretora alemã Christa Gottmann-Elter, não pôde ser exibido no Brasil. Episódio que até hoje permanece nebuloso, pois não houve, ao que tudo indica, censura oficial ao filme, que trazia como atriz principal a própria Carolina Maria de Jesus interpretando a si mesma. Há suspeitas de que o governo brasileiro mobilizou seus recursos diplomáticos para isso. Não seria conveniente para o governo, no auge do “Milagre econômico”, reavivar a figura pública da escritora com a exibição de Favela – Das Leben in Armut. Carolina, pobre e isolada num sítio, estava praticamente esquecida pela imprensa e por leitores brasileiros.

Não cabe aqui discutir a qualidade estética do documentário, mas o fato é que ele só seria exibido no Brasil 43 anos mais tarde, por ocasião do centenário de Carolina de Jesus e iniciativa do Instituto Moreira Salles (IMS) que localizou a obra em uma cinemateca no interior da Alemanha e providenciou sua restauração e tradução.

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Depois de 1964, Carolina não publicou mais. Não porque tinha parado de escrever, mas sim porque não conseguiu espaço e nem dinheiro suficiente para viabilizar a publicação de suas novas produções literárias no Brasil. No início dos anos 1970, na ânsia de ter mais um livro publicado, Carolina entregou a duas jornalistas francesas os manuscritos de Um Brasil para brasileiros. O material foi traduzido para o francês e publicado somente em 1982 com o título Journal de Bitita (Diário de Bitita). Carolina não chegou a ver a edição, ela falecera em 1977.

Nos últimos anos de sua vida, pobre e esquecida em sua casa em Palheiros (SP), Carolina Maria de Jesus ocuparia as páginas da Folha de S. Paulo mais algumas vezes, em manchetes que insinuavam que ela estaria feliz (ou louca) longe do sucesso literário: “Carolina de Jesus quer viver com os indígenas” (FSP, 5 fev. 1970) e “Após a glória, solidão e felicidade” (FSP, 29 jun. 1975) e “Carolina: vítima ou louca?” (FSP, 1 dez 1976).

Postumamente foram publicados mais três livros de Carolina: Meu estranho diário e Antologia pessoal, ambos em 1996, e Onde estaes felicidade?, em 2014. A maioria dos cadernos da escritora, ainda inéditos, estão disponíveis na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. O número de leitores brasileiros interessados nas obras de Carolina, impulsionado pelo centenário da escritora em 2014, aumentou mas ainda hoje quase nada da escritora é reeditado e seus livros viraram artigos de luxo em sebos e livrarias.

Mulher, negra, ex-colona, ex-favelada. Filha de mãe solteira e mãe solteira de três filhos. Carolina foi catadora de papel, empregada doméstica e só cursou dois anos de escola formal. O gosto pela leitura, que havia adquirido na infância, ampliou seu olhar sobre o mundo e sobre as pessoas e aguçou seu desejo de escrever. Por meio da escrita, Carolina denunciou em seus livros o descaso do poder público, a corrupção dos políticos e também a corrupção diária do ser humano, as dificuldades da vida na favela, e também no campo – nascida no interior de Minas Gerais, a denúncia da exploração do camponês e a defesa da distribuição de terras aos pobres era constante em seus escritos. Um dos exemplos mais bonitos está no poema O colono e o fazendeiro.

Carolina sonhou: “O céu já está salpicando de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido”.

Carolina sentiu e lutou contra a fome, sentenciando o futuro do país numa das passagens mais fortes de Quarto de Despejo: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”.

Carolina Maria de Jesus tem uma biografia que afronta os padrões da cultura letrada e incomoda as classes dominantes de todas as épocas.

Miriane Peregrino é doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ. Educadora e comunicadora popular, realiza, desde 2013, rodas de leitura no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro.

Para saber mais:

Livros publicados

  1. Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960)

  2. Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961)

  3. Pedaços de fome (1963)

  4. Provérbios (1963)

Publicação póstuma

  1. Diário de Bitita (1982)

  2. Meu estranho diário (1996)

  3. Antologia pessoal (1996)

  4. Onde Estaes Felicidade (2014)

– Outras fontes

Sérgio Barcellos (Org). Vida por Escrito. Guia do acervo de Carolina Maria de Jesus. Sacramento: Bertolucci, 2015.

Eliana de M. Castro; Marília N. de Mata Machado. Muito bem Carolina! Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.

José Carlos S. B. Meihy; Robert M. Levine. Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

MEIRELES, Maurício. IMS comemora centenário de Carolina com documentário e debate: curta metragem mostra rotina da catadora de papel que virou best-seller nos anos 1960. O Globo. 14 mar 2014. Disponível em: Jornal O Globo.

Joel Rufino dos Santos. Carolina Maria de Jesus, uma escritora improvável. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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