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Centenário de Paulo Freire: a juventude popular em busca de uma educação libertadora

Foto do escritor: Carolina Maciel Carolina Maciel

No último mês de setembro, mais precisamente no dia 19, Paulo Reglus Neves Freire, o nosso Paulo Freire, comemoraria cem anos de vida – vida dedicada à transformação da educação brasileira. Nos últimos anos, a extrema direita e certos grupos conservadores, antes recolhidos em sua realidade paralela, esbravejam, nas redes sociais e nos grupos de mensagens, ofensas e injúrias contra o educador, apoiados por líderes e políticos que chegaram ao poder após o golpe de 2016. Como afirmou o professor Ítalo Francisco Curcio em entrevista à Deutsche Welle Brasil, a grande maioria nunca chegou a conhecer minimamente a proposta educacional do autor e acaba repetindo inverdades “apregoadas por líderes com os quais se identifica”. E ainda há quem associe as ideias de Freire a questões político-partidárias e prefira rejeitá-las sem tomar maior conhecimento. A bem da verdade, a obra de Paulo Freire é essencialmente política, como afirma o sociólogo Abdeljalil Akkari, na matéria citada acima. Mas enquanto uns e outros se ocupam difamando a obra de Paulo Freire, mesmo correndo o risco de serem punidos judicialmente, nós, educadores e educadoras críticos, saudamos nosso patrono e seguimos firmes nessa jornada por uma “educação como prática de liberdade”.


Capa Pedagogia do Oprimido

A coluna Faces da Juventude não poderia deixar passar em branco esta data tão especial para todos e todas. Com essa módica reflexão sobre o uso da pedagogia freiriana nos movimentos de juventude popular – mais especificamente, sobre o uso da pedagogia popular pela Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) –, presto homenagem ao patrono da educação brasileira. Afinal, a obra de Paulo Freire é muito mais que um texto pedagógico, é um feixe de esperança e um vislumbre de dias melhores.


A experiência freiriana em Angicos

“Em nome dos alunos falaram o Sr. Antônio Ferreira e o Sr. Geraldo que, emocionado, disse: - Foi muito pouco tempo, mas hoje já sei ler. Não uso mais o dedo, agora escrevo o meu nome. Como é que eu devo provar? É lendo”. 

Em 1963, na pequena cidade de Angicos (RN), um carro de som passou pelas ruas da cidade chamando o povo para se inscrever nas escolas de um tal de professor Paulo Freire. Partindo da realidade daqueles sujeitos, iniciou-se uma audaciosa tarefa: alfabetizar trezentos homens e mulheres em quarenta horas. Anteriormente, em 1962, um grupo de estudantes universitários catalogou mais de trezentas palavras que estavam no cotidiano da população de Angicos, pois elas seriam a base para o desenvolvimento das aulas.


Em 2 de abril de 1963, com a presença de várias autoridades, inclusive o presidente João Goulart, foram entregues os primeiros diplomas para os, agora alfabetizados, alunos e alunas de Angicos. Reprodução.

Havia a previsão de instalação de mais de vinte mil círculos de cultura pelo Brasil inteiro, mas eis que o golpe civil-militar de 1964 tolheu o sonho da revolução educacional no país. Paulo Freire foi preso e exilado, enterrando por longos anos o projeto de alfabetização pela conscientização social, um método mais humano de ensinar e aprender a ler e escrever, mais citado, estudado e saudado em todo o mundo.

Em seu exílio no Chile, Paulo Freire escreveu, em 1968, na forma de ensaio, o livro Pedagogia do Oprimido. Proibido no Brasil, o livro somente chegou às terras tupiniquins em 1974. Dividida em quatro capítulos, a obra propõe uma nova forma de relação entre os agentes da educação: o professor, o estudante e a sociedade. O educador critica a concepção “bancária” da educação, sendo esta um instrumento de opressão e mantenedora do status desigual da sociedade. Freire propõe uma educação que seja libertadora, ou seja, que contribua para que os oprimidos, em sua tarefa histórica, libertem-se e sejam os sujeitos de sua própria história, superando a dominação através da educação problematizadora e humanística.

Utilizando as táticas dialógicas, em busca da superação das contradições inerentes à relação opressor-oprimido, Paulo Freire, com sua pedagogia da libertação, tornou-se inspiração para vários movimentos sociais que, no final da década de 1970, estavam retomando e reorganizando-se para a luta contra o regime ditatorial e as opressões que o sistema capitalista operacionalizava.

A Pastoral da Juventude do Meio Popular


Entre os muitos movimentos populares que tomaram para si o projeto educacional libertário de Paulo Freire, destaca-se a Pastoral da Juventude do Meio Popular, grupo de jovens católicos herdeiros da Juventude Operária Católica. Além das ideias do educador pernambucano, a Pastoral se apropriou dos ensinamentos de Jesus Cristo em prol da libertação dos condenados da terra.


A PJMP floresceu em meio à realidade sofrida de boa parte do Nordeste brasileiro, no final da década de 1970. Foi durante o 3º Encontro de Assessores e Animadores do grande Recife, em Pernambuco, em 1978, que alguns grupos de jovens das periferias e do campo se identificaram com o meio popular, e assim surgiu uma nova proposta de ser/estar no/com o mundo.


Os jovens da PJMP buscam e lutam juntos por saídas para a transformação social impulsionados pelo projeto de Jesus Cristo Libertador. Conforme define Pe. Zé Teixeira, assessor nacional da PJMP na década de 1990, a pastoral “[...] é uma forma dos jovens empobrecidos da cidade e do campo serem Igreja e, ao mesmo tempo, se engajarem nos organismos intermediários para contribuírem na transformação da sociedade à luz do projeto libertador de Jesus Cisto, na fidelidade à classe oprimida”.


Um dos principais objetivos da Pastoral é o despertar da consciência crítica de jovens sob uma perspectiva de classe, à luz do Evangelho, desenvolvendo suas reflexões a partir do meio onde vivem e atuam. Tal proposta dialoga com o projeto educacional freiriano experenciado em Angicos e teorizado na Pedagogia do Oprimido.


Além da leitura do texto freiriano em si, a Pastoral da Juventude do Meio Popular – mais precisamente o núcleo da regional Nordeste II e Domingos Corcione– publicou pelas Edições Paulinas o livro Em busca de uma pedagogia libertadora (1984). O texto seria a base para auxiliar e dar continuidade à formação de uma consciência crítica entre a juventude empobrecida.


O subsídio pastoral produzido por Corcione em colaboração com o núcleo de PJMP do Regional NE II da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi dividido em seis questionamentos-eixo. Para melhor compreensão, entenderemos esses questionamentos como os capítulos da obra. A partir dessas questões, que envolvem uma avaliação do processo libertador por meio da educação, são desenvolvidas no livro problematizações sobre a estrutura, os métodos, a articulação dos grupos de jovens e o engajamento em movimentos populares na comunidade e nos partidos. A ideia central é que possa ser um roteiro para a avaliação da atividade pastoral. Em sua descrição, lê-se: “Trata-se, pois, de um legítimo subsídio pastoral que tem como meta última o Reino de Deus”.


A primeira questão levantada pelo livro de Corcione se refere a opção pelos jovens pobres. Aqui, voltamos a identificar o discurso, que estará sempre presente, sobre a força histórica das pessoas pobres, desenvolvido por Gustavo Gutiérrez (1981), segundo o qual a verdadeira opção pela juventude empobrecida se justifica pela crença na sua força de transformação da realidade e das situações de injustiça. Mas não só isso, essa opção se manifesta na dedicação dos animadores e animadoras culturais e na convivência com os grupos jovens, ajudando-os a organizarem-se entre si e com o povo em busca da libertação. Pois que os jovens, de acordo com o material e com os discursos sobre a juventude, ocupam um lugar importante no processo de mudança, são “[...] forças vivas, novas e criativas. Eles podem fortalecer ainda mais a garantia da vitória final dos pobres na História dos homens”.


No tópico seguinte, o debate é direcionado ao clima de escuta que deve ser proporcionado nos encontros de jovens e animadores. Partindo da afirmação de Paulo Freire “ninguém educa ninguém, nem a si mesmo; os homens se educam em comunhão”, é debatida a postura na qual o sujeito animador popular deve se mostrar à comunidade. A proposta é que essa relação seja permeada por uma atitude de escuta, assim, “[...] vai-se criando entre todos — agentes de pastoral e jovens — um relacionamento rico de calor humano, suscitador de amizades profundas”.


A atitude de escuta tem o caráter de compreensão do universo em que aquele jovem está inserido. Dito de outro modo, é uma tentativa, como está posto no material de formação, de descobrir, “[...] ao mesmo tempo, os valores e os contravalores do povo, lutar contra a ideologia dominante, que se infiltra entre as massas populares, ensaiar, no meio popular, uma nova maneira de agir e de pensar”.


Em todos os pontos trabalhados nesse material feito para animadores em idade adulta, são propostas atividades para serem postas em prática tanto no momento de sua formação quanto no encontro com a juventude da comunidade. São questões que buscam aprofundar o tema debatido ou apresentar alguma ideia para ser desenvolvida com os(as) jovens. Por exemplo, a atividade proposta para a produção desse clima de escuta é uma sugestão de pesquisa feita pelos(as) jovens em sua comunidade ou na própria escola. Neste caso específico, como podemos observar na imagem abaixo, a ideia é que os/as jovens, através das questões propostas, possam conhecer sua escola e comunidade escolar e, assim, ao estarem cientes dos problemas que os cercam, possam agir/transformar seu meio.


Ficha para pesquisa a ser realizada por jovens em suas comunidades e escolas; integra o livro Em busca de uma pedagogia libertadora (1984), produzido por Domingos Corcione em colaboração com o núcleo de PJMP do Regional Ne II da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com base na leitura da obra de Paulo Freire.

Entendemos que essa estratégia da ferramenta da pesquisa a ser realizada pelos(as) jovens materializa o pensamento de Paulo Freire (2002, p. 53) sobre a questão da práxis. Esta entendida como “[...] ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.” (FREIRE, 2013. p. 52)


No material apresentado, os diferentes espaços e situações vividas pelos(as) jovens são trabalhados, como a sexualidade, as questões socioeconômicas, as relações na escola, com a família, as questões políticas, o lazer e a religião. Segundo o texto-base, esses espaços e relações nas quais jovens empobrecidos(as) estão imersos(as) podem acabar levando-os(as), no caso do não acesso a uma educação libertadora, à introjeção da imagem do sujeito opressor.


Dito de outro modo, sem o reconhecimento de sua situação de opressão, através de uma reflexão verdadeira, nas palavras de Paulo Freire, não é possível o engajamento na luta, na ação direta pela transformação da realidade opressora.



É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu convencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de reflexão e de ação. Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à crítica desta mesma situação e ao ímpeto de transformá-la. (FREIRE, 2002, p. 54)

Mais que uma forma de empreender a reflexão e a ação em comunhão entre animadores adultos e os jovens da PJMP, a busca por uma educação para a libertação foi a grande questão levantada pelo subsídio produzido pela Pastoral. O desenvolvimento de uma educação libertadora leva em conta todos os aspectos da vida do jovem, pois “[...] uma caminhada libertadora não visa apenas transformar as estruturas injustas: ela tem o objetivo de transformar também a consciência dos homens”.

Como pudemos observar nesta curta reflexão, a Pastoral da Juventude do Meio Popular, por meio de sua compreensão do que seria uma educação libertadora, pautada no projeto libertador de Jesus Cristo e tendo como importante figura norteadora o educador Paulo Freire, pôde desenvolver sua própria maneira de estimular na juventude empobrecida a sua tomada de consciência e seu engajamento para a transformação da realidade. Assim como Paulo Freire (2013, p.50), a PJMP também acreditava que “a libertação é possibilidade; não sina, nem destino, nem fardo”, além de uma constante busca por humanizar-se, por ser mais na transformação do mundo.

Viva a Educação Libertadora!
Viva Paulo Freire!

Créditos da imagem destacada: Paulo Freire. 1977. Autor: Slobodan Dimitrov. Wikimedia Commons.


 
  1. Este texto traz algumas reflexões desenvolvidas em minha pesquisa de doutorado, atualmente em curso, pelo Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade Federal do Ceará.

  2. LYRA, Carlos. As quarenta horas de Angicos: uma experiência pioneira em educação. São Paulo: Cortez, 1996. p. 109

  3. PJMP. Semente do novo na luta do povo. s/d. p. 9.

  4. Domenico Corcione Domingos foi assessor da Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Olinda e Recife, quando Dom Hélder Câmara era o Arcebispo. Foi professor do Instituto de Teologia do Recife e da universidade Católica de Pernambuco. Cofundador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares. Atualmente faz parte do CAIS (Centro de Apoio e Assessoria a Iniciativas Sociais) e presta serviço de Consultoria a Organizações do Primeiro, Segundo e Terceiro Setor.

  5. CORCIONE, D. Em busca de uma pedagogia libertadora. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 12

  6. Ibd. p. 14.

  7. CORCIONE, D. Em busca de uma pedagogia libertadora. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 27

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CORCIONE, Domingos. Em busca de uma educação libertadora. São Paulo: Edições Paulinas, 1984.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

LIRA, Carlos. As quarenta horas de Angicos: Uma experiência pioneira de educação. São Paulo: Cortez, 1996.


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