Cláudio Guerra, Silvinei Vasques e as vidas que importam
Em junho de 2023, Cláudio Guerra, um ex-delegado do DOPS do Espírito Santo, foi condenado pela Justiça Federal pela prática de ocultação de cadáveres de opositores políticos durante a ditadura militar brasileira. Foi a primeira vez que o Judiciário brasileiro aceitou a tese de que o desaparecimento forçado é um crime continuado, afastando a Lei de Anistia e rompendo o véu de impunidade por ela representado. Ainda assim, é apenas uma exceção que confirma a regra, tendo em vista que o diploma legal de 1979 continua servindo para garantir a não-responsabilização dos torturadores.
Na peça de acusação do Ministério Público Federal, um trecho chama a atenção. Em dado momento, o MPF aponta: “Cláudio Antonio Guerra informa que sugeriu o forno da Usina Cambahyba, como forma de eliminação sem deixar rastros, dado que já utilizava a usina e seus canaviais para desova de criminosos comuns”.
Em uma outra ocasião, o MPF já havia se deparado com relato semelhante. Ao ser questionado sobre sua atuação no DOI-Codi, em meio a investigações sobre o desaparecimento forçado do ex-deputado federal Rubens Paiva, Riscala Corbage, um major da Polícia Militar do Rio de Janeiro, respondeu: “eu passei muito tempo interrogando presos de favelas, para conseguir descobrir onde estava o depósito de armas. Então a gente vai pegando prática. Eu tinha experiência”.
Em ambas as declarações, agentes da ditadura diretamente envolvidos com violações de Direitos Humanos de militantes da oposição afirmam ter aprendido com as práticas de violência de Estado perpetradas contra indivíduos e grupos que não se enquadravam na categoria de presos ou perseguidos políticos.
Essa expertise de terrorismo de Estado foi formulada ao longo de séculos, a partir de recortes de território, raça e classe. No entanto, a incorporação dessas tecnologias de produção da barbárie por parte dos militares foi posteriormente apagada da História. O período da ditadura militar passou a ser tematizado – pela indústria cultural, pela historiografia e pelas políticas públicas – exclusivamente pela chave da violência política.
Em seu clássico texto Discurso sobre o colonialismo, Aimé Cesaire inaugurou uma tradição crítica acerca daquilo que, em uma abordagem contemporânea, Judith Butler caracterizou como “distribuição desigual do luto”. Publicado no pós-Segunda Guerra Mundial, o texto de Césaire ressaltava que o choque dos europeus diante das atrocidades nazistas não era produzido exatamente pela brutalidade do Holocausto. O que teria gerado o repúdio coletivo era o fato de que a violência havia sido promovida na Europa, contra homens brancos. Afinal, muitas daquelas práticas haviam sido anteriormente aplicadas nos territórios coloniais da África e da Ásia – e seguiram sendo utilizadas após o final da Segunda Grande Guerra.
Mais recentemente, vem se avolumando uma literatura historiográfica e sociológica que desenvolve a premissa de Césaire. A partir de pesquisas empíricas, esses trabalhos têm mostrado que o genocídio perpetrado pelos nazistas foi possibilitado pela apropriação de tecnologias de violência e de formas de hierarquização racial instituídas durante a dominação colonial[1].
As declarações de Guerra e Corbage nos permitem afirmar que essa percepção é plenamente válida para o caso brasileiro. Os militares só puderam assassinar Rubens Paiva sob tortura porque estavam “acostumados a interrogar presos em favelas”. Só puderam queimar corpos de militantes políticos nos fornos de Cambahyba, porque lá já estavam as ossadas dos “criminosos comuns”.
Um dos motes que permitiu a constituição da frente ampla que derrotou eleitoralmente Jair Bolsonaro em outubro de 2022 foi a defesa da democracia. Após os acontecimentos do 8 de janeiro de 2023, tornou-se ainda mais forte o coro, vocalizado por amplíssimos setores da sociedade, sobre a necessidade de construir formas de resguardar e defender o regime democrático contra a ameaça representada pelo bolsonarismo.
Mas o que significa, na prática, essa defesa?
No último mês de agosto, as polícias de São Paulo, da Bahia e do Rio de Janeiro mataram mais de sessenta pessoas – dentre elas, Thiago Menezes Flausino, um garoto de treze anos e morador da Cidade de Deus. As diferenças geográficas, porém, não trazem nenhuma variação na forma das ações, muito menos no perfil das vítimas: são sempre jovens, negros, moradores de favelas e periferias, todos mortos em circunstâncias em que abundam indícios de torturas e execuções sumárias.
Para alguns setores que se apresentam como ardorosos democratas, no entanto, as chacinas em série não são compreendidas como uma ameaça à democracia. Já ficou evidente que, para muitos, desde que o processo eleitoral esteja assegurado de quatro em quatro anos, é possível continuarmos chamando de democrático o regime em que crianças e adolescentes são mortos cotidianamente pela polícia.
Tal como ocorreu na transição pós-ditadura militar, estamos observando a constituição de uma clivagem radical. De um lado, certas ações e violências são consideradas inaceitáveis e sobre as quais deve pairar o imperativo da não-repetição, como os ataques do 8 de janeiro. De outro, variadas formas de violação de Direitos Humanos podem ser plenamente integradas à dita normalidade democrática, a depender do CEP e da cor da pele de suas vítimas.
Se levarmos a sério as declarações de Claudio Guerra e Riscala Corbage, iluminadas pela perspectiva de Césaire, fica claro que há algo ausente nessa perspectiva. Quero argumentar que é impossível fazer uma separação entre os ataques que o bolsonarismo promoveu contra o sistema eleitoral e a violência perpetrada diariamente pelas polícias nos becos e vielas.
O exemplo mais visível dessa conexão talvez seja a Polícia Rodoviária Federal. Transformada em uma espécie de Gestapo particular de Bolsonaro, a mesma PRF que tentou explicitamente impedir eleitores de Lula de votar é a que participou de chacinas no Rio de Janeiro e assassinou Genivaldo de Jesus Santos após transformar uma viatura em uma câmara de gás.
Assim como Guerra só utilizou os fornos da Usina de Cambahyba para queimar corpos de opositores políticos porque já os usava para eliminar sujeitos considerados socialmente indesejáveis, Silvinei Vasques só pôde tentar evitar o trânsito de eleitores de Lula no dia da eleição porque sua polícia estava plenamente autorizada a promover chacinas e a transformar viaturas em veículos da morte. Bolsonaro só conseguiu falar em “fuzilar a petralhada” na campanha porque antes, ao longo de décadas, seus elogios aos grupos de extermínio que executavam “bandidos comuns” eram vistos como algo plenamente banal – e mesmo desejado – no horizonte de uma democracia.
Apagar esses nexos é uma forma de reafirmar, da mesma maneira que parcelas majoritárias da sociedade brasileira fizeram durante a redemocratização, que há sujeitos e grupos para os quais as proteções da democracia não precisam valer.
Nota:
[1] Ver, por exemplo, os trabalhos: TRAVERSO, E. The origins of Nazi violence. New York: New Press, 2003 e ZIMMERER, J. Colonial Genocide and the Holocaust. Towards an Archaelogy of Genocide. In: Moses, Dirk (Org.). Genocide and Settler Society. Frontier Violence and Stolen Indigenous Children in Australian History, New York 2004.
Como citar este artigo:
PEDRETTI, Lucas. Cláudio Guerra, Silvinei Vasques e as vidas que importam. História da Ditadura, 21 nov. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/cl%C3%A1udio-guerra-silvinei-vasques-e-as-vidas-que-importam. Acesso em: [inserir data].