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Foto do escritorThiago Mourelle

Como vemos as ditaduras de 1937 e 1964

Atualizado: 11 de jan. de 2023

Em geral, somos críticos com a ditadura de 1964 e mais condescendentes com a de 1937. Por quê? É uma pergunta difícil, mas que me arrisco a responder, mesmo que parcialmente, aqui neste texto.

Para começar, é importante destacar que estudamos História influenciados pelos acontecimentos do presente. Como disse Benedetto Croce, toda História é História Contemporânea – ou seja, escrevemos a partir das preocupações da atualidade e do nosso lugar de fala. Logo, por mais que tenhamos um método para produzir História, de alguma forma nossas preocupações atuais estão espelhadas no resultado de nosso trabalho. Nesse sentido, vamos refletir sobre as memórias que temos sobre as ditaduras de 1937 e 1964, e pensar como essas memórias influenciam nossa escrita sobre esses dois fatos históricos.

Semelhanças e diferenças

O primeiro ponto a se perceber é o distanciamento temporal em relação a ambas. Enquanto o Estado Novo está mais distante de nós, a ditadura militar gerou memórias que permanecem muito presentes. Afinal, ainda estão vivas muitas pessoas que sofreram com torturas e perseguições naquele período. Parece que foi ontem que nossos direitos, liberdade de expressão e participação política eram negados. Ou seja, tudo relativo a 1964 ainda é muito recente.


Golpe de 1964 em Brasília. Fonte: Arquivo Nacional.

Outro ponto é que, por mais que a chapa vitoriosa nas eleições indiretas – Tancredo Neves e José Sarney –, em 1985, tivesse um tanto de moderada, a derrota de Paulo Maluf simbolizou a derrota do candidato da ditadura. Já no momento imediatamente seguinte ao final do Estado Novo, Eurico Dutra, o presidente eleito, tinha ligação direta com o regime ditatorial anterior, tendo sido inclusive figura fundamental para a concretização do golpe de 1937. E nas eleições de 1950, cabe lembrar, o próprio ex-ditador retornou eleito pelo voto popular. Portanto, se 1964 não foi passado a limpo com a ausência de punição aos responsáveis pelo rompimento democrático e pela violência de Estado, o mesmo ocorreu com 1937, com o agravante da vitória de líderes da ditadura varguista logo nas duas eleições seguintes para o cargo máximo do país. A ditadura militar levou vinte e um anos para terminar, marcando toda uma geração que cresceu sob forte controle e truculência do governo. Já a ditadura de Vargas durou “apenas” oito anos, de acordo com a historiografia. Porém, ela se amplia se somarmos ao Estado Novo os quatro anos do chamado Governo Provisório (1930-1934), momento que o próprio Vargas chama, em seu diário, pelo nome de ditadura, nos diversos trechos em que menciona esse período histórico. Afinal, governava-se por decretos, com a constituição de 1891 suspensa e sem um Poder Legislativo. E mais: se levarmos em conta a violência governamental que sucedeu os movimentos armados de 1935 (conhecidos vulgarmente como Intentona Comunista), e que foi amparada pelas reformas da Constituição e da Lei de Segurança Nacional, o período de pleno funcionamento das instituições democráticas diminui ainda mais.

Getúlio Vargas é saudado em desfile de operários pela celebração do Dia do Trabalho, no Rio de Janeiro, em 1942. Fonte: Arquivo Nacional.

Para muitos militantes de esquerda, inclusive Luís Carlos Prestes, o período de 1935 a 1937 foi mais repressivo até do que o de 1937 a 1945 – talvez porque, no início do Estado Novo, a oposição já estava quase toda debelada pela repressão dos anos anteriores, seja no exílio, na prisão ou no cemitério. Portanto, defendo aqui o período de 1930 a 1945 como sendo de autoritarismo e violência de Estado, com uma curta exceção, talvez, entre julho de 1934 e abril de 1935, entre a criação da Constituição e a assinatura da Lei de Segurança Nacional, tendo esta última viabilizado a retomada da perseguição e criminalização dos movimentos sociais que a promulgação da Carta Magna havia refreado alguns meses antes.



As leis trabalhistas: um salvo-conduto para a memória sobre Vargas

Há uma diferença que talvez seja a mais marcante entre esses dois regimes de exceção: a ditadura de Getúlio Vargas deixou ganhos sociais que são inegáveis mesmo para seus críticos. O trabalhismo, consagrado na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de 1943, gerou um capital político para o ditador que lhe valeu apoio popular e o retorno à presidência em 1950. Já a ditadura militar, em momento algum chegou perto de apresentar às classes trabalhadoras avanços sociais semelhantes aos dos anos 1930 e 1940, nem mesmo – e menos ainda – em seu período de maior crescimento econômico, durante o governo Médici (1969-1974).


Trabalhadores homenageiam Vargas na Esplanada do Castelo, 1940. Rio de Janeiro (RJ). (CPDOC/ CDA Vargas)

Logicamente, esses fatos influenciam a visão a respeito do governo Vargas. O final trágico da vida de Getúlio colabora ainda mais para o salvo-conduto que recebeu contra críticas. Não à toa, ele é muito mais lembrado pela relação próxima com os trabalhadores, pela CLT e pelo suicídio do que pela tortura, repressão, prisões, deportações ou pelo quase aniquilamento que promoveu contra o movimento operário independente. Para usar uma expressão atual, constantemente “passa-se pano” para o governo ditatorial varguista. Afinal, em um país que carrega o peso de séculos de grandes benefícios a uma minoria, excluindo a maioria de sua população, há desconforto em se fazer uma crítica mais dura a um presidente-ditador que, em seu governo, implementou uma série de leis trabalhistas, o voto feminino, entre outras medidas. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi extremamente eficiente em usar as leis trabalhistas para consolidar a ideia de Vargas como o “pai dos pobres”, utilizando não apenas censura, mas principalmente uma propaganda massiva. A chamada “democracia autoritária”, defendida pelos teóricos do governo, transmitia para a população que o importante era ter a legislação social como fiadora da democracia e que a liberdade política, de opinião e de manifestação não eram essenciais. Filinto Muller, mantido por Vargas como chefe de polícia de 1932 a 1942, estranhamente não tem sua ação violenta associada ao presidente. Enquanto, por exemplo, atribui-se a Médici a responsabilidade pela repressão de seu governo, a memória popular reservou a Vargas uma imagem “positiva”, que quase o isenta das prisões e torturas ocorridas quando estava no poder. Da mesma forma, deportações como a da militante comunista Olga Benário, que foi enviada grávida para a Alemanha nazista e morreu em um campo de concentração, quase sempre recebem um espaço secundário nas escritas biográficas sobre o gaúcho de São Borja.


Continuidades de 1937 para 1964

Uma herança maldita do Estado Novo reverberou na ditadura militar. E não me refiro apenas à presença de pessoas como Francisco Campos – o responsável pela redação da Constituição de 1937, que também participou da edição do AI-1 e do projeto constitucional em 1966 – ou os militares que ainda estavam na ativa e atuaram tanto no Estado Novo como no regime de exceção iniciado em 1964. Refiro-me, especialmente, à polícia política, à tortura, ao uso da Lei de Segurança Nacional como mecanismo de repressão e aos discursos e práticas anticomunistas. Tudo isso foi aproveitado – e muito – pela ditadura seguinte.


Francisco Campos (1891-1968). Autor desconhecido. Wikimedia Commons.

Atualmente, vemos pessoas que “passam pano” para a ditadura de 1964 – alguns continuam a chamando de “revolução” –, o que acirra a batalha da memória sobre o período. Muitos tentam relativizar a violência que a ditadura impôs sobre a população ao demonizar a resistência civil como ações de “terroristas” e ao apontar as vítimas do Estado como criminosos responsáveis pela ação repressora e, consequentemente, pela própria morte. Pensamento um tanto absurdo e injustificável, pois valida que o Estado aja de forma ilegal, desrespeitando os direitos humanos tal qual criminosos o fazem.

Esse discurso é muito parecido com o que foi utilizado para absolver a violência do regime varguista. Getúlio usou fartamente da retórica anticomunista e em moldes muito parecidos com o que foi feito em 1964 – retórica que ainda está presente nos dias de hoje. Por isso, revisitar 1937 é essencial para compreendermos 1964 e 2022. Nessas datas, vemos surgir justificativas para o fortalecimento do Poder Executivo e de suas ações violentas, que supostamente se dariam com o intuito de salvar o Brasil de uma ameaça comunista. Tal ameaça foi e continua a ser inventada por figuras autoritárias que procuram um pretexto qualquer para se perpetuarem no poder.



A herança maldita das ditaduras para a sociedade brasileira

É óbvio que os contextos históricos de 1937 e 1964 são diferentes. Em 1937, implantou-se uma ditadura que teve por objetivo fortalecer a figura do líder, copiando em muito os modelos de propaganda utilizados na Alemanha e na Itália. A partir de sua liderança, construiu-se os pilares do trabalhismo, a fim de colocar em prática reformas sociais de cima para baixo, evitando que a população continuasse a se organizar e a reivindicar seus anseios de forma autônoma e independente. Se, por um lado, obtiveram direitos sociais, por outro, os trabalhadores acabaram cerceados do livre direito de organização e foram colocados sob o controle do Estado, monitorados pelo Ministério do Trabalho e estando sob a vigilância constante do Ministério da Justiça.

Já 1964 ocorreu justamente em oposição ao até então vitorioso projeto trabalhista, impossibilitando a continuidade do governo João Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas. E se deu no contexto da Guerra Fria, sendo as mudanças propostas pelo governo – em especial a reforma agrária – taxadas de comunistas, mesmo que não o fossem. O objetivo golpista foi a manutenção de certos privilégios das elites e das classes médias, que temiam transformações sociais que pudessem afetá-las.

Porém, ambos os golpes – seja o que inaugurou uma ditadura reformista, seja o que produziu uma ditadura antirrevolucionária e antirreformista – se pautaram em uma visão autoritária da organização da sociedade. Nenhuma das duas deu ao trabalhador uma posição de real protagonismo na esfera política brasileira. Ambas as ditaduras usaram da violência e da censura como seus principais expedientes. Embora o regime de Vargas tenha obtido maior sucesso na estratégia do convencimento, facilitada pelos ganhos reais da legislação social, houve também – e ainda há – muitos que foram seduzidos pelo discurso ufanista de Médici e companhia na nossa ditadura seguinte.

Uma das cenas mais comuns da capital em construção: operários em carrocerias de caminhão nas ruas recém-abertas e poeirentas. Ao fundo, o edifício do Congresso, ainda em fase estrutural. Foto: Arquivo Público – DF.

Embora no Estado Novo tenha sido criada a CLT, nele também se consolidou uma herança maldita para a posteridade: além de se valer da censura para calar vozes dissonantes e eventuais críticas, o culto a Vargas fixou na cultura política nacional a crença no salvacionismo personalista, segundo a qual um só homem redime os problemas nacionais. Assim, o futuro da nação deveria ser delegado a esse homem, o “pai dos pobres”. Isso se repetiu com Jânio, Jango, Lula, Bolsonaro, entre outros.

Essa ideia tentou divorciar o povo brasileiro de seu passado de lutas e de organizações coletivas fortes, sem as quais nenhuma conquista foi possível. Aliás, está aí mais uma herança que as duas ditaduras deixaram para a nossa sociedade: uma visão negativa e preconceituosa em relação aos movimentos sociais, às greves, às manifestações em prol de direitos. E isso tem uma lógica: a ação coletiva é a maior força da democracia e, consequentemente, é vista como inimiga pelos regimes ditatoriais, que só a admitem caso seja liderada ou convocada pelo governo; nunca de forma independente.


Defender a democracia implica rejeitar toda e qualquer ditadura

É importante que cada uma das duas ditaduras seja compreendida dentro de seu contexto. Porém, ambas devem ser reconhecidas como partes da história do pensamento autoritário brasileiro que exclui a população de um papel ativo sobre seu próprio destino em prol de uma visão paternalista sobre a sociedade. Além disso, deve-se ressaltar que há certa continuidade entre 1937 e 1964, inclusive no que diz respeito aos seus executores e apoiadores, embora os principais agentes de cada golpe e os caminhos traçados posteriormente sejam distintos.

Por fim, é essencial que se tenha sempre em mente de que se trata de duas ditaduras, ambas com violações de direitos, repressão, prisões indevidas, torturas e mortes, cada qual a seu modo, com maior ou menor uso de uma prática ou outra. Nenhuma delas deve obter o consentimento de uma historiografia que busca se amparar em princípios democráticos. Caso contrário, estaremos a colaborar, direta ou indiretamente, com discursos e práticas autoritárias no nosso presente. Afinal, toda História é contemporânea.



Como citar este artigo:

MOURELLE, Thiago Cavaliere. Como vemos as ditaduras de 1937 e 1964. História da Ditadura, 10 jan. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/como-vemos-as-ditaduras-de-1937-e-1964. Acesso em: [inserir data].


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