Como compreender o papel da Funai entre a ditadura e a democracia no Brasil?
Atualizado: 20 de dez. de 2022
No dia 16 de junho de 2021, os povos indígenas reunidos no movimento “Levante Pela Terra”, em Brasília, assinaram uma carta coletiva reivindicando a renúncia de Marcelo Xavier do cargo de presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai). O documento levanta pontos importantes, como a omissão do Governo Federal na assistência aos indígenas para evitar o agravamento dos casos da COVID-19 nas comunidades. Outra questão fundamental é a oposição ao “Marco Temporal” em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de curta, a carta chamou minha atenção para um detalhe que pode ter passado despercebido pelo leitor que pouco conhece sobre a história da Funai. O terceiro parágrafo apresenta a seguinte afirmação:
Trata-se da pior gestão da história da Fundação, que deixou de cumprir a função de proteger e promover os direitos dos povos indígenas para negociar nossas vidas e instrumentalizá-la em prol de interesses escusos e particulares do agronegócio, do garimpo ilegal e de outras tantas ameaças que colocam em risco a nossa existência.
Atentemo-nos para a conjugação na terceira pessoa do pretérito perfeito do verbo “deixar”. Pode parecer besteira, mas meu comprometimento com a pesquisa que desenvolvo martelou essa frase em minha cabeça por semanas: “pior gestão da história da Fundação, que deixou de cumprir a função de proteger e promover os direitos dos povos indígenas (…)”. Afinal, a Funai deixou de cumprir essa função apenas na administração de Marcelo Xavier?
O projeto Funai
É necessário revisitar brevemente a história desse órgão indigenista e da própria política indigenista brasileira. Que fique claro: reconheço a importância de imputar ao então presidente da Funai toda a responsabilidade – que lhe é devida – pela catástrofe que tem se abatido sobre as comunidades indígenas habitantes do território brasileiro e pelo desastre anunciado que é a possível aprovação do Marco Temporal.
Isto posto, convido o leitor a refletir sobre algo que tenho afirmado em uma série de entrevistas e debates sobre o tema: para compreender o estado atual das coisas é necessário encarar o passado. Quando tratamos de questão indígena no Brasil, algumas respostas – e, quem sabe, possíveis soluções – estão nas origens da política indigenista nacional.
Antes da Funai ganhar vida, a questão indígena no Brasil era responsabilidade de outra instituição, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Criado na década de 1910, por recomendação e insistência de grupos progressistas e defensores da laicidade da então recente República, o SPI enfrentou, ao longo de sua história, grandes períodos de oposição de grupos conservadores, cortes de verbas e corrupção de seus servidores.
Esse cenário abriu brechas perigosas para que funcionários do SPI atuassem em conluio com fazendeiros, posseiros, empresas particulares, colonos e toda sorte de exploradores da terra para expropriá-la de seus habitantes indígenas utilizando meios violentos. Uma investigação iniciada em 1967, cujo resultado hoje é conhecido como “Relatório Figueiredo”, revelou o leque de transgressões cometidas sob os olhos e com o apoio de membros do órgão indigenista: sequestros, cárcere privado, contaminação com doenças, torturas, assassinatos, estupros… Todas cometidas contra membros de comunidades indígenas.
A Comissão de Inquérito instaurada, é importante ressaltar, não estava preocupada em reparar qualquer dano causado a esses povos, mas em combater a corrupção no serviço público e a legitimar o projeto de criação do novo órgão indigenista, a Funai. A investigação solicitada pelo então ministro do Interior acabou descobrindo crimes muito além do que interessava, criando um ambiente instável para a ditadura. Explicações sobre o escândalo foram exigidas pela ONU, pela Cruz Vermelha e pela Organização Internacional do Trabalho. A Comissão foi concluída com punições pontuais a agentes julgados culpados de envolvimento nos casos.
Pouco ou quase nada foi feito em prol das comunidades indígenas afetadas pelos anos de administração criminosa no SPI – afinal, isso era um tópico secundário. Em 1968, os holofotes se voltavam para o nascimento da Funai e o consequente fechamento do SPI. Sopravam ventos de uma nova era. Ou não?
Modernização e questão indígena na ditadura
Entre 1967 e 1969, a ditadura gestou o projeto modernizador que ganharia vida no governo de Emílio Médici (1969-1974). Para implementar as obras que transformariam o Brasil, colocando-o no século XX, como diziam seus idealizadores, seria necessária uma instituição mais moderna e sem as marcas e os vícios do SPI. Entre as mudanças mais significativas estava a militarização da cadeia de comando da instituição, o que começou a ser implementado no governo Médici. Entretanto, a base organizacional do SPI foi mantida. Postos e cargos sofreram poucas alterações e sertanistas e antropólogos que trabalhavam no SPI foram incorporados à Funai. A legislação que deu base ao trabalho da Funai era semelhante em diversos pontos às orientações de trabalho do SPI. A função de ambos era contatar os indígenas buscando evitar conflitos entre essas comunidades e os “civilizados” que chegavam às suas terras levados pelo avanço do “progresso”.
Na prática, o órgão continuava implementando práticas de coerção (como a cobrança da chamada “renda indígena”), controlando as terras indígenas e interferindo em seus processos de demarcação, além de decidir arbitrariamente sobre questões fundamentais como a integração desses povos ao mundo “civilizado” e as estratégias de contato com grupos isolados. Em seus primeiros anos, a Funai foi palco de disputas internas entre antropólogos e sertanistas e de conflitos externos entre os funcionários e as chefias que recorriam a imprensa para publicizar críticas e propostas. Na prática, a Funai serviu de instrumento para possibilitar e acelerar a implementação do projeto modernizador da ditadura.
Como afirmava de forma recorrente o então presidente do órgão, o general Oscar Jeronymo Bandeira de Mello, a Fundação deveria evitar conflitos entre indígenas e trabalhadores das obras de desenvolvimento nacional, “limpando” o caminho para que estradas, hidrelétricas, agrovilas, empresas e outros símbolos da modernização fossem estabelecidos em terras indígenas.
O saldo dessa empreitada até hoje não é inteiramente conhecido. Processos como a CPI do Índio, instaurada em 1977, tentaram mensurar os danos causados a diversas comunidades indígenas nos quase cinco anos de governo Médici. Entretanto, como dão conta os relatos de ex-sertanistas, a violência das remoções forçadas, das “marchas da morte” e da atuação da Guarda Rural Indígena, torna quase incalculável a magnitude que a tragédia abatida sobre os povos indígenas representou.
História indígena e ruptura com a institucionalidade
Contudo, a história dos indígenas não se resume a casos de violência, repressão e morte. Há episódios de força e de luta que precisam ser contados. Após 1974, começou a surgir uma nova militância indígena que entendia as regras do jogo político “civilizado”. Considerando que o órgão indigenista não estava ali para protegê-los, mas para facilitar o caminho do desenvolvimento que condenava os indígenas, organizaram-se conselhos e assembleias regionais formados por diversas etnias reunidas sob o nome de “indígenas”, apesar das suas diferenças culturais e sociais. Em 1989, por exemplo, surgiu a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, dedicada a reunir pautas e reivindicações comuns.
Esses espaços de formação e atuação política mostraram ao poder central que a Funai não detinha o controle sobre os povos indígenas. Alguns funcionários da instituição, sobretudo os mais afeitos à causa indígena e críticos da atuação do próprio órgão, apoiaram esse movimento. Outros tentaram, em nome da Funai, tomar a frente deste processo que era autônomo e orgânico. E outros, ainda, se silenciaram e continuaram o trabalho indigenista nos moldes tradicionais.
Em suma, a simpatia com a luta, quando vinda de dentro da Funai, foi pontual e não institucional ou oficial. Ademais, os anos 1980 viram o fortalecimento dessa frente combativa, com a eleição de Mario Juruna, primeiro indígena a assumir um cargo legislativo, e o surgimento de lideranças sociais importantes como Ailton Krenak, Raoni Metuktire e Davi Kopenawa. A Funai, por sua vez, encontrou na redemocratização um processo de desmilitarização das suas chefias, substituídas por representantes do agronegócio como o político conservador Romero Jucá, presidente da Funai entre 1986 e 1988, taxado de “o grande inimigo dos Yanomami”.
Revolucionar a Funai é possível?
Qual é o balanço dos anos de atuação do SPI, mas principalmente da Funai, até a redemocratização? E o que isso diz sobre a luta atual dos indígenas? A verdade é que a Funai não foi, desde a sua criação até a Nova República, uma instituição alinhada aos interesses das populações indígenas no Brasil. Primeiro porque já em sua origem o órgão foi construído sobre uma estrutura quase inteiramente dedicada a torná-lo um “agente” do desenvolvimento, da modernização, do progresso, enfim, chame como preferir. Em uma sociedade profundamente enraizada em valores autoritários, as consequências da livre atuação dessas estruturas demonstram-se invariavelmente catastróficas para os grupos sociais que são cotidianamente violentados pela ação “civilizadora”.
A violência contra os indígenas, que já precisava ser combatida quando praticada pelos representantes da iniciativa privada, foi incorporada pelo Estado brasileiro e transformada em política oficial com a criação do SPI, e aprofundada durante a ditadura com a formação da Funai. A Funai não fundou essa tendência: ela foi o projeto que expressou na sua essência essa aventura modernizadora que assumiu a repressão e a violência como ferramentas.
É necessário, contudo, fazer justiça aos funcionários da instituição que, partindo de dentro, buscaram alterar esse quadro grave, atribuindo uma função social compatível com a ideia de um órgão indigenista. Muitos sertanistas, antropólogos, indigenistas e outros agentes trabalharam incansavelmente para mudar o quadro de ataques aos direitos dos indígenas que partiam, muitas vezes, das próprias chefias da Funai. Como é possível imaginar, isso não foi suficiente para desconstruir de forma substancial o aparato legislativo e os métodos de atuação da instituição.
Urge a necessidade de uma Fundação Nacional do Índio para além da Funai atual. Não é o caso de destruir a instituição e erradicar a atuação do Estado na questão indígena. A solução passa pela ocupação, em todas as suas instâncias, de lideranças indígenas cujas vozes sejam verdadeiramente ouvidas no interior do órgão. A política indigenista nacional precisa ser construída pelos próprios indígenas, a quem leis arbitrárias e autoritárias são impostas há séculos.
Retomando o texto citado no início deste artigo, não é exagero dizer que a administração de Marcelo Xavier é a pior da história da Funai, sobretudo se compreendida a relevância política de dizê-lo. Mas é importante reforçarmos sempre: tal gerência só é possível pela estrutura que cerca e permeia a Funai. O apoio atualmente vem de fora, de um presidente da República que afirma que “não terá um centímetro quadrado demarcado” para terras indígenas. As razões que justificam tal administração na Funai estão em um modelo econômico, político e social que propõe uma modernização que obriga mulheres indígenas a recorrerem à prostituição forçada, que introduz doenças em comunidades indígenas e rouba suas terras para o agronegócio – estrutura que eleva taxas de depressão e suicídio entre os indígenas a níveis assustadores.
A permissão para que isso aconteça se dá por uma sociedade que ateia fogo ao índio Galdino, que mata a bala lideranças indígenas como Ângelo Kretã Kaingang, Marçal Guarani, Xicão Xucuru e Aldo Macux e que viu aumentar em 150% o número dos casos de violência contra indígenas; uma sociedade que discute se um indígena portando um celular e dirigindo um carro é mesmo um indígena, que acredita que a existência do povo Yanomami é uma conspiração internacional para tomar as terras amazônicas do Brasil e que trata a cultura indígena como fantasia de Carnaval. A Funai desempenhou essa função ao longo de décadas, pois é um produto institucional da realidade violenta e autoritária que cisma em permanecer entre ditaduras e democracias no Brasil.
Em suma, esse projeto determina que comunidades indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por elas antes da data de promulgação da Constituição de 1988.
Quando eram transferidos de suas terras para reservas indígenas, muitos indígenas eram obrigados a percorrer a pé e sob péssimas condições de alimentação, hidratação e de saúde, longas distâncias. Essa medida vitimava inúmeros indivíduos.
A Guarda Rural Indígena (GRIN) foi uma milícia criada pelo regime militar no Brasil na década de 1970, formada por indígenas de diversas etnias.
https://reporterbrasil.org.br/2021/06/romero-juca-o-maior-inimigo-dos-yanomami/.