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Foto do escritorTasso Brito

Construir túmulos, legar signos

Certa vez, a professora Jeanne Marie Gagnebin, me ensinou, numa aula, que a palavra sema, em grego antigo, representava ao mesmo tempo dois significados túmulo e signo. O que me levou a conclusão lógica que construir túmulos em certa medida é criar signos, construir signos é criar túmulos. Na Guerra de Troia, isso se relaciona com o dilema enfrentado por Aquiles, o grande modelo de herói grego, que é alertado se negar-se a guerrear teria uma vida longa e feliz, porém acabaria sendo esquecido, porém se fosse para batalha morreria e seu nome sempre seria lembrado. Aquiles partiu para a guerra. Nessa guerra, como sabemos foi morto depois de grandes confrontos contra os heróis troianos, assim conseguiu Sema, morte narrada tantas e tantas vezes por Aedos, poetas que contavam histórias, os túmulos para Aquiles.


Contar histórias é construir sema, abandonamos os túmulos e abraçamos os signos. Não se trata da história contada pelos profissionais da história, que tantas vezes se assemelham com os profanadores de túmulos. Mas, a história contada pelos Aedos, poetas criadores de túmulos, que se apresentam em nossa sociedade das mais variadas formas.


Em dezembro de 2019, uma noite, entre cachaça de jambu, risadas e o calor de Belém, me deparei com um grafite de frente ao bar que eu me encontrava. Registrei:


Grafite na Av. Alcino Cacela, 412, Umarizal, Belém-PA. Dezembro de 2019. Acervo do autor.

A imagem, grafitada numa casa abandonada, reinterpreta a fotografia mais famosa de Carlos Marighella líder comunista que fundou o movimento guerrilheiro Ação Libertadora Nacional (ALN). Essa reprodução transmídia reafirma a imagem para além do suporte artístico original, a fotografia, cria um signo a qual nos referimos. Entre aqueles que lembram de Marighella, esta é a imagem que vem a mente ao pensar no líder comunista.


Algum tempo depois, escuto, como se fosse pela primeira vez, um rap já conhecido: Mil faces de um homem leal (Marighella) dos Racionais MC’s, lançada em 2017. No videoclipe, Mano Brown interpreta Marighella e os demais Racionais, outros membros da Ação Libertadora Nacional (ALN).


Em suas rimas, Mano Brown remete Carlos Marighella à outras imagens, sacras e políticas de uma maneira que se tornam inseparáveis – “Um novo Messias”, “O destino de um fiel, se é o céu o que Deus quer”, “Tramam 30 fariseus contra Moisés, morô”, “Confesso que queria Ver Davi matar Golias” – são imagens sacras que são invocadas no rap para se dizer Carlos Marighella. Enquanto o videoclipe relampeja imagens de protestos, trabalhadores, políticos e intelectuais reais mesclados à encenação de uma ação armada da ALN, imagens dos Racionais e da periferia (provavelmente Capão Redondo, São Paulo-SP). Esse relampejar de imagens, muito comum em videoclipes, cria um signo sobre Marighella, enquanto as rimas sacralizam, o vídeo lhe traz para a política. Marighella passava a ter mais faces, por isso o título do rap. Uma profusão de signos que se somam, mas ainda assim trata-se de um túmulo no qual os Racionais são Aedos.


Outros artistas e intelectuais também participaram da construção do sema – túmulo e signo – de Marighella. Antônio Candido e Jorge Amado, registraram em seus escritos que Marighella era um autêntico herói brasileiro que defendia a população. Não se trata aqui de analisar esses conteúdos – podemos voltar para ele em um outro texto para a coluna – mas de perceber como artistas e intelectuais passaram a criar túmulos simbólicos para Carlos Marighella.


E a questão dos túmulos foi importante para a repressão ditatorial: desaparecer com os opositores políticos era negar o túmulo, peça fundamental para uma elaboração de luto. Mesmo com aqueles que não eram desparecidos, havia uma tentativa de negar-lhes o direito ao sepulcro. Foi o que aconteceu com Carlos Marighella.


Em 1969, Marighella foi atraído para uma emboscada em São Paulo, onde foi executado por agentes da repressão comandados pelo delegado, e famoso assassino, Sérgio Paranhos Fleury. Os legistas responsáveis pelo exame necroscópico fraudaram-no, para aparentar que Marighella foi morto em legitima defesa. Dias depois, Marighella seria enterrado em São Paulo, distante de Salvador, cidade natal, ou do Rio de Janeiro, onde viveu por anos. Em matéria de 7 de novembro de 1969, o Jornal do Brasil noticiou:


Jornal do Brasil, 07/11/69. Reprodução.

Assim, a ditadura negava signos de uma luta, de sua oposição, da discordância. No mundo moderno um dos principais medos da sociedade burguesa é cair no esquecimento. Assim, podemos observar que negar um túmulo – assumindo o túmulo como um signo de uma vida – é uma tentativa de apagar os rastros da existência de Marighella. Assassinar e negar os rastros das vidas foram atividades comuns ao governo ditatorial brasileiro.


As ditaduras do Cone Sul foram eficazes em negar o sema de tantos homens e mulheres que foram marcados como seus inimigos. Os desaparecidos políticos são um trauma comum em nosso continente. A ditadura torturava e matava, mas também ocultava e sumia com os rastros, uma dupla negação da vida. Mas, no presente, é possível enfrentar os crimes do passado. O ditado iorubá se mostra acertado: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.


Dez anos depois, com os ventos da distensão política, os familiares de Marighella conseguiram transladar o corpo para Salvador. Lá, foi sepultado, com um túmulo, desta vez físico e nem por isso menos simbólico, criado pelo arquiteto Oscar Niemeyer:


Túmulo de Carlos Marighella no cemitério Quinta dos Lázaros, Salvador-BA. Reprodução Twitter.

Túmulos e signos que assustam o poder protofascista que hoje governa o Brasil, vide a censura do filme Marighella, dirigido por Wagner Moura. Como disse o filósofo Walter Benjamin: “Nem os mortos estarão em segurança se o inimigo continuar a vencer.”



 
  1. Como é o caso dos textos Um herói brasileiro, de Antônio Cândido, e Aqui inscrevo seu nome de baiano, de Jorge Amado.


Bibliografia:


GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SANDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.


ROLLEMBERG, Denise. Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memória de dois revolucionários. In: FERREIRA, Jorge. REIS, Daniel A. (Orgs) Revolução e democracia (1964 - …). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.


RUSSO, Pedro Fernandes. Um estudo sobre a construção da memória acerca dos mortos e desaparecidos políticos da Ditadura Civil-militar brasileira (1974-1985). In: Anais do 30° Simpósio Nacional de História - História e o futuro da educação no Brasil / organizador Márcio Ananias Ferreira Vilela. Recife: Associação Nacional de História – ANPUH-Brasil, 2019.


WOHLFARTH, Irving. Apagar os vestígios: Sobre a dialética de um lema. SANDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.


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