Contra o arbítrio e a violência: o portal do Presídio Tiradentes
Atualizado: 4 de mai. de 2022
A memória é um instrumento de grande importância para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas. A memória política é, então, elevada a outro patamar no interior dessas sociedades, uma vez que, para as democracias contemporâneas – ao menos nos discursos – baseadas nas práticas de conciliação e justiça, não se ajustaria uma História obscura, principalmente quando se reproduz a partir da violência cometida pelo mesmo Estado hoje responsável por construir uma sociedade com alicerces na justiça. Neste âmbito, o direito à verdade é reconhecido como forma de se consolidar uma ordem em que a justiça seja possível (Santos; Teles; Teles, 2009). “A memória, como construção social, é formação de imagem necessária para os processos de construção e reforço da identidade individual, coletiva e nacional” (Meneses, 1999). Nesse sentido, colaborar para a preservação da memória é fundamental.
Além do uso recorrente do tombamento como medida única de salvaguarda, é comum que o principal critério utilizado para avaliar a importância de um bem seja sua importância arquitetônica. Como diz Maria Cecília Londres Fonseca, “a constituição do patrimônio no Brasil foi realizada a partir de uma perspectiva predominantemente estética”. De fato, esta é uma dimensão importante, mas não a única a ser observada, especialmente quando são consideradas histórias e memórias marcadas pela violência e pela violação de direitos.
A ditadura militar brasileira, talvez por ser um processo histórico recente e identificado pelo arbítrio, marcou com memórias a história de diversos bens edificados, seja por esses lugares representarem a trajetória daqueles e daquelas que resistiram ao regime militar, ou por estarem marcados pela violência, pela tortura e pela morte.
Refletir sobre o papel destes lugares significa refletir sobre justiça, sobre reparação à memória daqueles que sofreram violações de seus direitos, e sobre a dívida que este país tem com sua história. Caso contrário, persistiremos em “uma história que é ao mesmo tempo, recente e esquecida” (Ferreira; Delgado, 2007).
O primeiro dos lugares preservados no Brasil por ter sua importância como testemunha de acontecimentos durante o período da ditadura foi o Arco de Pedra, que marcava a entrada do antigo presídio Tiradentes, em São Paulo. Hoje, porém, o monumental arco faz a entrada do pátio de uma agência bancária.
O monumento está localizado na altura do número 451 da Avenida Tiradentes, ao lado de uma das saídas da estação homônima do metrô, no bairro do Bom Retiro. Esse singelo vestígio do passado, de grande extensão arquitetônica, situa-se em uma região de intensa atividade cultural, apesar de nem sempre percebido como parte disso. O Arco está próximo do Centro Paula Souza, do Museu de Arte Sacra, do Arquivo Histórico Municipal, do Parque da Luz e da Pinacoteca, ficando a poucas quadras da estação da Luz, Estação Pinacoteca e Memorial da Resistência.
Em 1837, a construção de um edifício para abrigar a prisão foi autorizada e, por meio de uma comissão, decidiu-se instalar a obra em um terreno ao lado do então Jardim Botânico, onde hoje é o Parque da Luz. O responsável pela obra foi o marechal reformado Daniel Pedro Müller, que seguiu, em menores proporções, a planta utilizada para a construção da prisão de Nova Iorque, em Auburn, elaborada pelo seu vice-diretor, William Powers (Gonçalves, 2010). Desde os primeiros anos de funcionamento, o local já contava com a existência do Arco de Pedra, funcionando como pórtico de entrada das instalações da prisão, o que nos permite entender que sua presença foi considerada desde o projeto inicial.
Seu tombamento teve início com um ofício emitido pelo sindicato dos jornalistas de São Paulo em 25 de outubro de 1984 e foi direcionado ao então Secretário de Cultura do Estado, Jorge da Cunha Lima. No documento, assinado por representantes de diversas organizações, destacam-se alguns argumentos em favor do tombamento, dentre os quais estão a importância de preservar a história política. Além disso, o potencial educativo desse tipo de ação é anunciado “como forma de conscientizar a nação e denunciar a existência de dias de dor e vergonha” (CONDEPHAAT, 1985). Essa ideia é retomada ao final do documento, no qual se lê: “Uma vez tombado, as entidades teriam ainda outro pedido a formular: que o arco seja transformado em monumento público, reverenciando a memória de todos que, durante toda a história do Brasil, se colocaram ao lado do povo na luta contra o arbítrio e a repressão” (Gonçalves, 2010).
Tal documento adianta muito do que se discutiu em termos de preservação de lugares de memória naquele momento, uma vez que o ano de emissão do ofício coincide com o da publicação da obra organizada por Pierre Nora sobre os lugares de memória franceses, em 1984. Além disso, o contexto de reconhecimento da importância histórica desses lugares para o entendimento do passado autoritário recente pode ser entendido de modo mais amplo, o que se evidencia também para o caso argentino na produção do relatório da Comisión Nacional sobre la desaparición de personas (CONADEP), também em 1984.
Após idas e vindas dos procedimentos administrativos, ocorreu a consequente aprovação da abertura de estudos para o tombamento pelo conselho do órgão, sendo tais ideias corroboradas no parecer do conselheiro Lúcio Felix Frederico Kowarick, que diz:
Considerando o valor histórico do ARCO DA PEDRA enquanto símbolo da luta contra o arbítrio e a violência, é meu parecer que ele deva ser tombado e posteriormente transformado em monumento público. Sendo arco, é forçosamente uma passagem, que simboliza o esforço atual para a plena redemocratização do país. (CONDEPHAAT.1985)
O processo de estudo foi então aberto em 11 de abril de 1985 e encaminhado à historiadora Sheila Schvarzman para estudo de tombamento. Na ocasião, Schvarzman desenvolveu um primoroso trabalho de pesquisa histórica, dividido em duas partes, sendo a primeira intitulada “Presídio Tiradentes”, na qual faz um grande esforço de compreender o sistema prisional em São Paulo, seus usos na mudança de regime político, até a criação do presídio Tiradentes como resposta à necessidade de ampliação de vagas para detentos em um contexto de rápido crescimento urbano. Na segunda parte, ela realiza um balanço sobre o processo de desenvolvimento urbano do bairro nos arredores do presídio. Além disso, faz apontamentos sobre o uso político da prisão na manutenção de regimes e poderes, como durante o Estado Novo, quando o local se converteu em uma prisão destinada, particularmente, aos presos políticos e demais indesejados durante a consolidação do regime varguista. Anos depois, a ditadura militar também se apropriou dessa estrutura, reservando as vagas aos presos e presas que, de alguma forma, tinham sido “formalizados” no sistema penal ditatorial.
Ao longo desse processo de modernização, a implantação de um sistema metroviário moderno foi uma das peças centrais para a Prefeitura durante a gestão de José Vicente de Faria Lima (1965-1969), um político antes ligado ao Movimento Trabalhista Renovador (MTR), mas que, em 1965, se vinculou à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o partido da ditadura.
Com a expansão das obras, o presídio acabou por se tornar um obstáculo. Ao menos foi essa a justificativa amplamente difundida naquele momento. Dessa forma, o obstáculo foi superado com a demolição quase total do presídio no ano de 1972.
Assim, o presídio, que simbolizava com suas paredes um período de modernização da cidade, dava lugar a um projeto da ditadura que metaforizava toda a política ditatorial: um projeto de destruição de obstáculos para a efetivação do regime.
Associado a isso, a construção do Carandiru e da Penitenciária do Estado – que recebeu os presos remanescentes –, arrematava o discurso de modernização, unindo a imponência de tal sistema prisional ao recente e ostentoso sistema de transportes, uma vez que o novo presídio podia ser “vislumbrado” pelas janelas do metrô entre as estações Carandiru e Tietê.
Torre das donzelas
Não se pode falar do Presídio Tiradentes sem lembrar o setor reservado às presas políticas, mulheres que combateram o regime de exceção. Por esta característica, ficou conhecido como “A Torre das Donzelas”.
A existência da torre e o encarceramento dessas mulheres nos anos 1970 são mais uma parte desse capítulo de nossa história marcado pela violência. As mulheres presas ali passaram por uma sucessão de violações. Normalmente presas de forma ilegal, foram perseguidas, torturadas, processadas em inquéritos militares, muitas vezes respondendo por crimes de terrorismo e segurança nacional.
A trajetória de violências perpetradas contra essas mulheres atingiam dimensões ainda mais profundas e complexas: muitas vezes cerceadas de protagonismo em suas organizações, além da violência física do autoritarismo ditatorial, eram reprimidas por sua identidade de gênero. O fato de serem mulheres fazia com que fossem submetidas a ameaças e violações de seus corpos e, até mesmo, a tortura específica de mulheres grávidas.
Mas a permanência dessas mulheres na torre não se resumia às violências que enfrentavam: havia ali uma história de solidariedade entre elas, que as fortalecia e encorajava a seguir em frente.
Considerações finais
E assim, como um revelador de silêncios, o antimonumento é preservado para lembrar aquilo que se configura como um esforço de esquecimento. Esquecer a culpa do Estado na violação de direitos, no caso do presídio Tiradentes, remonta a toda sua história de abusos contra negros, imigrantes e demais indesejados, mas, particularmente, à sistematização da violência de Estado. Como apresenta o parecer do estudo de tombamento:
O que este estudo nos traz de efetivamente novo é a visão do tombamento não apenas como um instrumento de preservação da memória, da história, e como guardião de bens culturais que se constituem em suportes de valores que formam sentido em nossa sociedade, mas também como copartícipe na identificação e manutenção de um espaço de recordação e homenagem de uma realidade histórica que muitos prefeririam negar, justamente porque o edifício não existe mais. Desta forma, o tombamento do arco ‘reconstitui’ o bem, reconhece, lembra e homenageia períodos da história e procedimentos que se gostaria enterrados e demolidos, como as próprias paredes do presídio (SCHVARZMAN , 1985).
É importante lembrar que o tombamento por si não basta como instrumento de divulgação dessas histórias e memórias. Ainda que, no Brasil, a patrimonialização seja vista como uma forma de permitir que a ferida, ou a dívida da sociedade e do Estado com a memória, permaneça viva (Neves, 2012); é necessário que outros dispositivos sejam mobilizados para comunicar e amplificar as histórias e memórias dessas feridas.
De todo modo, o portal permanece tombado e ergue-se como um símbolo de resistência ao esquecimento da violência de Estado. Resiste contra a memória institucional da Polícia Militar de São Paulo, cujo batalhão em frente ao pórtico orgulha-se de comemorar suas campanhas de violação de direitos, inclusive as da ditadura.
Dessa maneira, o Arco levanta-se como um bastião de pedra oitocentista contra o abuso da memória praticado ainda hoje, que se demonstra no esforço de se apagar memórias e lacerar a história. Configura-se como o antimonumento que rememora o vazio deixado pela destruição ditatorial em nome de um suposto progresso.
O colunista convidado, Elson Luiz Mattos Tavares da Silva, é mestre pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo e foi membro da Comissão da Verdade Marcos Lindenberg (UNIFESP), é também Servidor Técnico-Administrativo em Educação na mesma instituição. E-mail: elsonluiz@gmail.com.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Decreto–Lei N.25, 1937.
CONDEPHAAT. Processo 04180/84. São Paulo, 1985.
CONDEPHAAT. Processo 23345/85. São Paulo, 1985.
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeirda Neves (orgs.). O Brasil Republicano: O tempo da experiência democrática (1945–1964). 2a. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
GONÇALVES, Flávia Maíra de Araújo. Cadeia e Correção: sistema prisional e população carcerária na cidade de São Paulo (1830 - 1890). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2010.
ISTOÉ. A torre das donzelas. Revista IstoÉ. 2010.
MATEUS, Eliane Elias. A proteção do patrimônio cultural e o Tombamento. Leopoldianum: Revista de estudos e comunicações da Universidade Católica de Santos. Santos, n. 93–93, jan.–ago. 2008.
MEMÓRIAS da Ditadura. Mulheres. Disponível em: <http://memoriasdaditadura.org.br/mulheres/>. Acesso em 08 de junho de 2021.
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A crise da memória, história e documento: reflexões para um tempo de transformações. IN: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: UNESP/FAPESP, 1999, p. 11–29.
NEVES, D. R. L. Edifícios da(e) Repressão: a construção dos sentidos sociais através da patrimonialização Maria Antônia, Arco Tiradentes, El Olimpo e Club Atlético. In: Anais do XXI Encontro Estadual de História: trabalho, cultura e memória ANPUH–SP. São Paulo: ANPUH–SP, 2012.
SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. v.1 e v.2.
SCHVARZMAN, Sheila. Estudo de tombamento. In: CONDEPHAAT. Processo 23345/85. São Paulo, 1985. p. 40.
TORRE das donzelas. Direção: Susanna Lira. Produção: Modo Operante Produções. Brasil, 2018. Documentário. Color. Dur. 97min.
Como citar este artigo:
SILVA, Elson Luiz Mattos Tavares da. Contra o arbítrio e a violência: o portal do Presídio Tiradentes. História da Ditadura, 9 fev. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/contraoarbitrioeaviolenciaoportaldopresidiotiradentes. Acesso em: [inserir data].
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