Coronel Delmiro Gouveia e o “Cinemão da Embrafilme”
Por ocasião de seu falecimento, em fevereiro deste ano, o diretor baiano Geraldo Sarno (1938-2022) foi lembrado principalmente por duas realizações que ocupam os extremos cronológicos de sua filmografia: o documentário de média-metragem Viramundo (1965), sobre retirantes nordestinos em São Paulo, e o longa-metragem ficcional Sertânia (2020), um retorno ao cangaço, temática tradicional na história do cinema brasileiro. Trata-se, de fato, de pontos altos da carreira desse cineasta.
Sertânia é uma obra-prima impressionante, um desses encerramentos triunfais de uma trajetória profissional que poucos conseguem ter. Viramundo, por sua vez, marcou um momento bastante específico e importante da cinematografia nacional, com documentaristas fortemente interessados no registro e na reflexão sobre o outro-popular. Esse último, aliás, foi lançado à época como parte de um longa-metragem intitulado Brasil Verdade (1968), composto ainda por outros três episódios, todos voltados à investigação de grupos sociais marginalizados e de algumas de suas manifestações de naturezas diversas: Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, Nossa Escola de Samba, de Manuel Horácio Gimenez, e Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla.
No entanto, vale rememorar um outro longa ficcional realizado por Sarno num ponto intermediário de sua carreira e que é muito sintomático de determinado momento da história do cinema brasileiro: Coronel Delmiro Gouveia (1978). Essa cinebiografia do empresário que investiu na industrialização de Pernambuco na virada do século XIX para o XX foi realizada dentro da moldura do que ficou conhecido nos anos 1970 como “cinemão da Embrafilme”: produção de época bem cuidada, dramatização de eventos históricos do Brasil, formato narrativo convencional, possibilitador de um diálogo mais direto com o público e, é claro, investimentos consideráveis da empresa estatal de economia mista criada em 1969 e que, ao longo da década seguinte, ganhou protagonismo na produção cinematográfica nacional.
Nos anos finais do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e principalmente a partir da presidência de Ernesto Geisel (1974-1979), ocorreu uma aproximação bastante significativa entre a ditadura militar e cineastas ligados ao Cinema Novo, portadores de visões de mundo progressistas e realizadores de filmes que, na década de 1960, incomodaram os novos governantes. Tal aproximação se dava, nesse momento, sob princípios nacionalistas comuns aos dois lados – ainda que com especificidades: uma perspectiva mais atenta aos conflitos sociais por parte dos artistas de esquerda, um nacionalismo mais homogeneizante no âmbito governamental – e interesses decorrentes desses princípios, como a construção de uma política cultural protecionista. No campo cinematográfico, isso significava estimular a constituição de uma indústria própria e fazer frente à ocupação massiva do mercado pelo filme estrangeiro, principalmente norte-americano. A Embrafilme teve, então, suas atribuições ampliadas e passou a ser ator importante nesse processo.
O “cinemão” consistia na realização, por diretores outrora cinemanovistas ou próximos ao movimento, de filmes parcialmente financiados e/ou distribuídos pela empresa, que abordassem temas considerados sérios (como o Cinema Novo fazia) mas num formato mais comercial e com um tom politicamente mais moderado.
Filmes históricos e adaptações literárias eram estimulados. No primeiro caso, por mais que Independência ou Morte (1972), de Carlos Coimbra, tivesse feito sucesso com Médici e fosse um modelo para os militares, o que se tinha eram obras mais críticas ao passado brasileiro, ainda que distantes das proposições revolucionárias do cinema político sessentista. Um bom exemplo nesse sentido é Cacá Diegues, que, ao abordar o tema da escravidão no período colonial, foi do árido e radical Ganga Zumba (1964) ao festivo e moderado (ainda que não acrítico) Xica da Silva (1976). A expectativa governamental quanto aos filmes históricos não foi propriamente atendida.
Nesse contexto, surge Coronel Delmiro Gouveia. Este é um filme histórico até econômico, com cerca de uma hora e meia de duração, metragem incomum em obras do gênero. Mas, fora isso, Sarno segue à risca o esquema do “cinemão da Embrafilme”. Há na narrativa uma reverberação de valores políticos das esquerdas pré-1964 – sobretudo as comunistas: a defesa do papel fundamental de uma burguesia nacional para o desenvolvimento do país.
Coronel Delmiro Gouveia olha para o passado em busca desse modelo e o encontra no personagem título, interpretado por Rubens de Falco. Também aparece o embate com o imperialismo, tema caro ao Cinema Novo e que, no momento de realização do filme, espelhava a situação do próprio cinema (proto)industrial brasileiro. Por fim, vê-se uma imagem idealizada dos trabalhadores, apresentados como força transformadora se devidamente organizada.
Nesse aspecto ideológico, portanto, há um retorno aos princípios nacionais-populares do pré-golpe, tão duramente criticados dentro das próprias esquerdas após a tomada do poder pelos militares. O Cinema Novo pós-1964 foi construído em grande medida a partir dessa crítica, feita com contundência em filmes como Terra em Transe (1967).
Coronel Delmiro Gouveia é, sem dúvida, uma obra de esquerda produzida com apoio de uma ditadura militar de direita, mas seus valores progressistas surgem diluídos num discurso genérico e nada agressivo sobre justiça social e desenvolvimento nacional. Sarno articula abertamente a luta nacionalista quixotesca de Delmiro Gouveia com os enfrentamentos travados por trabalhadores contra as forças político-econômicas que os oprimem, propondo tal aliança como caminho para o desenvolvimento e libertação do Brasil. No entanto, extrapola parcialmente esse posicionamento nos instantes finais da narrativa.
A trajetória do protagonista é emoldurada por duas falas de trabalhadores, uma que abre e outra que encerra o filme. Na primeira, um sujeito que realmente conheceu Gouveia é entrevistado e apresenta o personagem e sua atuação na região: “antes dele chegar, a fome era grande [...] quando no tempo de seca que não tinha planta, a gente comia era macambira, xique-xique, esses frutos do mato. Xique-xique véi, assado. Com a chegada dele a gente nunca mais passou fome.” Já na segunda, o funcionário do protagonista interpretado por José Dumont diz: “Seu Delmiro mandou a gente fazer a fábrica, a gente fez. Os inglês veio e mandou quebrar as máquina e derrubar no rio, a gente quebrou e derrubou. Era os dono, os patrão. Os patrão manda, os trabalhador obedece. Ninguém perguntou pra nós o nosso pensamento. Se a gente queria ou não queria quebrar as máquina. Agora, o povo daqui nunca esqueceu o Coronel Delmiro. A fraqueza do Coronel é que ele era só, sozinho mesmo, e aí atiraram nele e mataram a fábrica. Tenho pra mim que ele foi como um exemplo pra nós tudo, mas penso também que o dia em que o povo fizer as fábrica pra ele mesmo, aí não tem força no mundo que pode quebrar nem derrubar. Porque não tem força maior que a do povo trabalhador, que trabalha como as máquina e pensa que nem gente.”
Ou seja, a idealização de Delmiro Gouveia estabelecida na primeira fala se mantém na última, com o empresário tomado por exemplo para os trabalhadores, mas é também superada na medida em que o personagem de Dumont se refere à necessidade de auto-organização popular para de fato realizar as transformações necessárias na sociedade.
O diálogo de Coronel Delmiro Gouveia com seu contexto de produção se dá também pela emergência do “novo sindicalismo” como força política na segunda metade da década de 1970: os trabalhadores novamente se organizando, conquistando autonomia nos sindicatos e ganhando a cena pública.
O formato convencional, portanto, não apaga as qualidades nem elimina totalmente o conteúdo crítico de Coronel Delmiro Gouveia. Sarno filma e monta o filme com elegância, produzindo uma síntese clara e objetiva da trajetória de seu biografado. Um belo exemplo do talento do diretor é a opção por apresentar o assassinato do protagonista entrecortado por brevíssimos frames da destruição das máquinas de sua fábrica, evento que se dá posteriormente na narrativa.
Essa ótima cena resume bem o discurso de Coronel Delmiro Gouveia, num gesto de montagem simples, mas muito bem realizado: a morte do empresário nacionalista pelas mãos do imperialismo significa a destruição (momentânea) das possibilidades de desenvolvimento nacional, entendido aqui como sinônimo de industrialização.
Com relação aos discursos políticos produzidos pelo filme, Sarno trabalha no que o crítico Jean-Claude Bernardet denominou “espaço legal” existente no “cinemão da Embrafilme”, possibilitado pelas contradições no interior do Estado e responsável por viabilizar esse tipo de produção. Por meio da valorização nacionalista e genérica dos trabalhadores e da capa de proteção do “filme histórico”, Coronel Delmiro Gouveia conseguiu introduzir, nos seus momentos finais, uma perspectiva política sintonizada com eventos contemporâneos à sua realização e que incomodavam o regime vigente.
Como citar este artigo:
ANDRIOLI, Wallace. Coronel Delmiro Gouveia e o “Cinemão da Embrafilme”. História da Ditadura, 12 dez. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/coronel-delmiro-gouveia-e-o-cinemao-da-embra-filme . Acesso em: [inserir data].
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