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Luiz Alves

Da política dos grandes números à vida cotidiana: as estatísticas na pandemia do novo coronavírus

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

Embora ainda esteja em curso (e todos esperamos que acabe o quanto antes), a pandemia da infecção pelo novo coronavírus já possui algumas simbologias marcantes. Uma delas é a recente fotografia do papa Francisco caminhando solitariamente pela Praça São Pedro para proferir sua benção Urbi et Orbi. Entretanto, as imagens das curvas epidêmicas em suas variações por países e regiões têm sido as mais representativas da relação que temos estabelecido com a pandemia e com o vírus.

Um indicativo significativo da relevância desses gráficos para nossa atribuição de sentido à pandemia é o uso do termo “achatamento da curva” (flattening the curve), que se refere à relação entre os números de casos da infecção diagnosticados e a capacidade de um determinado sistema de saúde em fornecer cuidado aos usuários adoecidos. Essa noção, comum ao vocabulário da Epidemiologia, ganhou nos últimos meses, com a intensificação do processo, grande espaço em conversas cotidianas, discursos políticos, postagens de redes sociais, textos de outros campos disciplinares e matérias jornalísticas.

A este ponto, é possível que o leitor deste texto já esteja familiarizado com o termo; e saiba que o principal esforço tem sido a prática do isolamento social para achatar a curva epidêmica e evitar colapsos nos sistemas de saúde, o que resultará em um número ainda maior de mortos. No fim de março, nos dias 26 e 27, um estudo liderado pelo Imperial College de Londres, reunindo diferentes instituições e grupos através da Organização Mundial da Saúde (OMS), trouxe outra camada de preocupação com a curva epidêmica, fazendo projeções sobre a pandemia que indicam a possibilidade de até 40 milhões de óbitos no mundo inteiro neste ano, caso não sejam tomadas medidas adequadas.

A circulação de todos esses números possui impacto social importantíssimo, eles são mobilizados das mais diversas formas pelas pessoas, tanto em âmbito individual quanto coletivo. O acompanhamento das estatísticas causa ansiedade e pânico em uns, enquanto promove um senso de controle e previsibilidade sobre a epidemia em outros. Estados usam esses dados como argumento para medidas de isolamento, como o fechamento de escolas e de comércios; negacionistas articulam discursos para descreditar os números, falando de erros de método ou de notificação exagerada. Em todos esses casos, um questionamento comum pode ser feito: por que as estatísticas possuem tanta relevância na forma como pensamos a pandemia?


Desde já, é necessário ressaltar que não se defende aqui o negacionismo das estatísticas e da epidemiologia. Como a História das Ciências e os Estudos Sociais das Ciências têm mostrado há décadas, é importante sim compreender o conhecimento como resultado de negociações e consensos entre atores e instituições, mas, para que isso seja feito, é preciso levar esse conhecimento a sério. As estatísticas não são inventadas pela Epidemiologia, elas são resultado de um trabalho metodologicamente organizado e realizado por profissionais treinados (o que não significa que não possam errar). Além disso, mesmo havendo ampla discussão sobre a produção das estatísticas em saúde, o interesse aqui é outro, ou seja, os usos e significados destas no cotidiano. Vale ressaltar o tema da subnotificação e sua relação com o acesso aos testes diagnósticos.


O primeiro tópico a ser colocado é que a própria noção de estatística possui uma história. Até o século XVIII, como indica Ian Hacking, costumava-se acreditar que os fenômenos do mundo obedeciam a determinismos; fossem de ordem divina ou da natureza. Tudo poderia ser resumido a leis e a ordens compreensíveis[i]. A ideia de elaborar estatísticas para compreensão de fenômenos sociais, ou mesmo para fazer projeções, tem raiz na organização dos Estados Nacionais nos séculos XVIII e XIX e na atuação das companhias de seguro, principalmente na Europa e nos Estados Unidos.

Prêmio Oswaldo Cruz de Teses 2019 | Luiz Alves Araújo

Um conceito fundamental para a formulação desse sentido de estatística foi o de população. Em épocas anteriores, a ideia de povo era comumente associada à pobreza e à subalternidade[ii]. No final do século XVIII, a noção de população, esse conjunto de pessoas que é governado por um Estado por meio de diferentes dispositivos de poder[iii]. Com essa nova noção, não bastava aos Estados intervirem e controlarem os indivíduos; também eram necessárias ações e dispositivos de gerenciamento da vida para o conjunto das pessoas.

Não pretendo entrar no denso e complicado debate sobre população, poder e Estado. Aqui, importa destacar que a emergência do conceito de população e do uso de estatísticas para compreender fenômenos coletivos e determinar cursos de ação para governos e empreendimentos privados traçou o que Alain Desrosières chamou de “razão estatística”[iv]. Essa “razão” consistiu na articulação do pensamento científico estatístico ao imperativo administrativo dos Estados, levando a uma governança pelos números.

No século XX, essa razão estatística ganhou ainda mais complexidade, sendo fortalecida nas burocracias estatais (as instituições e profissões públicas). No campo da saúde, a ideia de que nomenclaturas, práticas e dados deveriam ser padronizados e replicáveis ampliou a importância das estatísticas[v], bem como o desenvolvimento da Epidemiologia, uma disciplina especificamente dedicada a estudar as doenças como fenômenos coletivos. Além disso, as estatísticas passaram cada vez mais a ser associadas a instituições; o que significa que a confiança nos números depende da confiança em quem os produz e os divulga[vi]. Esse é um ponto fundamental para pensar nossa relação atual com as estatísticas.

Desde a segunda metade do século XX, com variações regionais, as estatísticas passaram a não somente ter papel decisivo na padronização e na administração em saúde, mas também nas práticas médicas e nas tomadas de decisão. A ideia de que grandes bases de dados replicáveis são indicativos de objetividade (outro termo envolto por profundas discussões, que não serão abordadas neste artigo) levou a uma primazia das estatísticas em todas as dimensões das práticas de saúde[vii]. Dito de outro modo, vivemos em um período em que a produção de dados sobre as doenças não só possui maior profusão e credibilidade científica devido ao desenvolvimento de métodos de quantificação, coleta e análise, mas também em razão da maior centralidade dos números em nossas formas de entender as doenças.

Mas se essa relação com as estatísticas é resultado de um longo processo histórico, porque estamos lidando com os números desta pandemia de maneira diferente de outros momentos, como no caso da influenza H1N1 em 2008, por exemplo? Primeiramente, é necessário retomar o ponto de alguns parágrafos atrás: a confiança em quem produz e divulga as estatísticas. Em um cenário tomado por negacionismos às ciências e por descréditos às instituições, a relação com os números da pandemia torna-se mais confusa. Se, por um lado, a negação e a dúvida levam ao questionamento dos dados (principalmente quanto às notificações de casos); por outro, a realidade concreta do processo epidêmico, mais pessoas adoecendo e morrendo, faz com que muitas pessoas rapidamente “se convertam” à razão estatística ou alternem posicionamentos de forma constante.

E aí voltamos ao “achatamento da curva”. Esta pandemia ocorre em um momento de amplo e diversificado uso das redes sociais, articulado a outros mecanismos da internet[viii], o que permite uma rápida proliferação dos dados produzidos e de suas interpretações e repercussões. Basta pensar em quantas mensagens você já recebeu em grupos de WhatsApp com toda sorte de números sobre o coronavírus. Essa amplitude da circulação e da apropriação das estatísticas torna sua presença mais significativa na experiência da epidemia/pandemia do que em outros momentos. Se, nos séculos XIX e XX, a comunicação dos dados era exclusividade da autoridade do Estado, das sociedades científicas e da mediação da mídia, agora ela ocorre quase sem mediadores.

Outro aspecto que traz a centralidade dos números a essa pandemia é a ausência de um alvo específico. O exemplo da pandemia de HIV/Aids pode ser ilustrativo. No caso da Aids, discursos preconceituosos e moralistas rapidamente associaram a doença aos homossexuais, tornando-os a “cara” da epidemia[ix]. No caso do coronavírus, embora haja estigmatização dos chineses, a caracterização de uma infecção que poderá atingir uma parcela imensa da população mundial parece trazer a dimensão numérica como uma forma de representação social.


Mas, tudo bem, as estatísticas têm centralidade na compreensão social da epidemia, e essa relação com os números é historicamente construída. E daí? O que isso impacta, efetivamente, na vida cotidiana?

Uma crítica comum a enunciados da Epidemiologia, ou de estudos estatísticos mais gerais, é a sua tendência a esquecer das pessoas. Essa, por sinal, tem sido uma discussão central no campo da saúde, principalmente a partir das leituras de antropólogos[x]. O olhar populacional, embora fundamental no enfrentamento de uma pandemia, pode alimentar discursos e proposições autoritárias em nome do “bem comum”, o que é um perigo, principalmente em países com fortes tendências autoritárias, como o Brasil. É necessário levar em consideração aquilo que os números não mostram; ou, pelo menos, o que não cabe na política dos grandes números: o sofrimento e a exposição ao perigo dos moradores de rua, a solidão e o medo dos idosos, a exploração dos trabalhadores informais etc.

Além disso, há outra tendência complicada de naturalização e reação passiva frente aos números. Como já dito no começo deste texto, é preciso confiar na ciência e nas estatísticas, mas sem esquecer que elas são produzidas socialmente e que traduzem contextos específicos de produção. Basear preocupações e interpretações somente no achatamento de curvas ou mesmo nas variações de incidência fornece visões limitadas do processo social que está em curso. Por mais difícil que seja neste momento, é preciso reconhecer a complexidade da pandemia, e olhar criticamente e atentamente para os números, sem esquecer das pessoas.

Luiz Alves é doutor em História das Ciências e da Saúde, bolsista de pós-doutorado pela FAPERJ e membro do Observatório História e Saúde (COC/Fiocruz).

 

Referências

[i] Ian Hacking. La Domesticación del Azar: la erosión del determinismo y el nacimiento de las ciências del caos. Barcelona: Gedisa, 1995.

[ii] Christopher Hill. O Mundo de Ponta Cabeça: Ideias Radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[iii] Michel Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2011.

[iv] Alain Desrosières. La Politique des Grands Nombres: la histoire de la raison statisque. Paris: La Découverte, 1993.

[v] George Weisz e colaboradores. The Emergence of Clinical Practice Guidelines. Milbank Quarterly, 2007, 85 (4): 691-727.

[vi] Theodore Porter. Trust in Numbers: the pursuit of objectivity in Science and Public Life. Princeton: University of Princeton Press, 1995.

[vii] Alberto Cambrosio e colaboradores. Regulatory objectivity and the generation and management of evidence in medicine. Social Science & Medicine, 2006, 63 (1), 189-199.

[viii] Destaco a excelente iniciativa da John Hopkins University, que permite acompanhar o curso da pandemia em tempo real em escala global. Ver: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6

[ix] Dilene do Nascimento. As pestes do século XX: tuberculose e Aids no Brasil, uma história comparada. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.

[x] João Biehl e Adriana Petryna (ed.). When People Come First: Critical Studies on Global Health. Princeton: University of Princeton Press, 2013.

 

Crédito da imagem destacada: Photo by Ruthson Zimmerman on Unsplash

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