De líder impopular a “homem-símbolo da Revolução”: representações de Humberto Castello Branco
Atualizado: 20 de mai.
O cearense Humberto de Alencar Castello Branco se tornou personagem histórico conhecido por ser o primeiro presidente da ditadura militar brasileira. Com uma atuação militar categorizada como “exemplar” por amplos segmentos das Forças Armadas, o marechal teve envolvimento direto nas articulações que culminaram no golpe de 1964, responsável pela deposição de João Goulart e o estabelecimento do regime autoritário. Em seu mandato presidencial, Castello exerceu papel fundamental para a consolidação e institucionalização da ditadura. Implementou o bipartidarismo, a Lei de Imprensa, a Lei de Segurança Nacional, fechou o Congresso e outorgou a Constituição de 1967.
De Norte a Sul, no interior e nas capitais, é comum encontrarmos o nome do marechal em ruas, rodovias e viadutos. Além disso, chamam atenção os diversos espaços de memória construídos com o objetivo de homenagear a memória de Castello Branco, como o monumento em Porto Alegre (RS) e o mausoléu que abriga seus restos mortais, em Fortaleza (CE) – em vias de ter seu espaço ressignificado para abrigar um Museu da Abolição (O GLOBO, 2023).
Em alguns momentos do passado recente, a figura complexa de Castello Branco foi associada pelos meios de comunicação a uma fase mais benevolente do regime, uma espécie de “ditabranda”, nas palavras de um polêmico editorial da Folha de S. Paulo de fevereiro de 2009 (LIMITES..., 2009, p. A2). Contudo, a historiografia demonstrou que essa concepção é equivocada, uma vez que o mandato do marechal foi marcado por intensa perseguição política, inúmeros expurgos e aposentadorias compulsórias, além da implementação das já mencionadas legislações autoritárias.
Entretanto, se recuarmos temporalmente, é possível observar que a construção das representações de um Castello legalista é anterior ao período de redemocratização. Suas raízes remontam à própria ditadura militar, quando o personagem passou por um processo de remodelamento e heroificação. A passagem dos aniversários do golpe de 1964 constitui momento oportuno para observarmos essas transformações.
Revezes da memória: exaltação e ostracização de Castello Branco (1965-1967)
Em 1965, no primeiro aniversário do golpe de Estado, Castello Branco se envolveu de forma significativa nas comemorações do 31 de março. A programação festiva foi fixada entre os dias 25 e 31 de março e os preparativos se iniciaram no começo daquele mês, quando o presidente determinou a criação de uma Comissão Festiva, chefiada pelo ministro interino da Educação, Raimundo Muniz de Aragão. O marechal participou de diversos eventos nos meios civil e militar, discursou no Congresso Nacional, aprovou a Lei do Estatuto da Terra e abriu as solenidades da I Conferência Nacional de Educação. Sua presença nos desfiles militares de Brasília e Belo Horizonte recebeu muita atenção da imprensa, que noticiou a recepção calorosa do público ao presidente (ZIMMERMANN, 2023).
No ano seguinte, porém, a atmosfera do aniversário foi diferente. O ambicioso projeto econômico liberal-internacionalista de Castello Branco, embora tenha viabilizado uma queda nos índices brutos de inflação, provocou uma série de medidas recessivas na política salarial, que impactaram negativamente a realidade da população com a redução do valor de compra dos salários e a queda de atividades do setor industrial. Nesse contexto, uma atmosfera de descontentamento pairou sobre a ditadura, o que demandou um esforço maior na promoção de festividades para aproximar as classes empresariais e os trabalhadores. Esse foi o caso da inauguração da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Santos, que contou com a presença de Castello Branco. Os meios de comunicação destacaram que o presidente foi ovacionado pelos trabalhadores e enalteceram sua suposta postura amigável, acenando para os presentes e permitindo ser fotografado junto às autoridades locais (PRESIDENTE..., 1966, p. 17; INAUGURADA..., 1966, p. 6).
Todavia, os reveses da política econômica ditatorial, somados ao impacto da outorga das legislações autoritárias, fez com que, em 1967, a imagem de Castello Branco estivesse extremamente desgastada na opinião pública. Embora, em alguns momentos, o então presidente tenha sido exaltado por suas virtudes como estadista, a imprensa de grande circulação teceu críticas agudas a determinadas iniciativas governamentais, como a Lei de Imprensa, a Constituição de 1967 e a Lei de Segurança Nacional, todas sancionadas no final de seu mandato. As maiores críticas à postura de Castello voltaram-se à sua administração, sendo condenado por seu “poder discricionário” e sua “ideologia militarista” (TRÊS ANOS..., 1966, p. 6). O isolamento político do ex-presidente também pode ser observado na forma como se comportou durante as comemorações do terceiro aniversário do golpe, abstendo-se de fazer qualquer tipo de pronunciamento e mantendo-se na privacidade de sua residência durante todo o dia 31 de março (CASTELO..., 1966, p. 7).
O homem-símbolo da “Revolução”: morte e heroificação de Castello Branco
O falecimento abrupto de Castello Branco em um acidente aéreo, em julho de 1967, constituiu um ponto de inflexão para as construções de memória em torno de sua atuação na condição de primeiro presidente do novo regime. Somado a isso, os anos posteriores da ditadura, marcados pelo recrudescimento da repressão e censura política, contribuíram para moldar uma visão de Castello como líder austero e moderado.
É curioso observar que as homenagens prestadas ao ex-presidente no transcorrer das comemorações do golpe não se limitaram às inaugurações de obras públicas, mas se tornaram práticas inerentes a diversos espaços de sociabilidade. Diversos textos, discursos e manifestações comemorativas foram registrados em vários suportes (livros, jornais, revistas, produção propagandística) e produzidas por diferentes agentes políticos e sociais.
Apenas para registrar alguns casos interessantes, a passagem dos aniversários do golpe fomentou homenagens prestadas pelos conselheiros do Conselho Federal de Cultura (CFC), que insistiram no perfil democrático de Castello Branco e do “movimento” de 1964 (MAIA, 2021). Essas narrativas também encontravam respaldo em manuais pedagógicos relacionados à disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC). Em livro didático publicado em 1970, Castello Branco foi mencionado na seção de “heróis nacionais” e referenciado por “sua serenidade, energia, dedicação aos estudos e às causas políticas”, sendo responsável ainda por reimplantar a “austeridade de governo” em seu mandato presidencial (KELLY, 1970, p. 116).
Um grande volume de textos foi publicado nas páginas da grande imprensa que, apesar de diversa em seus posicionamentos, concedeu grande visibilidade aos aniversários do golpe, publicando diversos editoriais comemorativos, colunas opinativas, notícias de caráter “histórico” e relatos sobre as programações festivas. A íntegra de pronunciamentos comemorativos de autoridades políticas civis e militares, como o presidente da República, ministros de Estado e das Forças Armadas, e de intelectuais brasileiros, também constituíram espaço privilegiado para as narrativas que exaltavam Castello Branco e seus feitos.
Os principais temas mobilizados por esse conjunto multifacetado atribuíam um caráter legalista ao marechal em sua passagem pela Presidência da República. Em editorial comemorativo publicado pelo jornal O Globo em 1973, elementos como a manutenção de eleições parlamentares em 1965 e a Constituição de 1967 foram apresentados como provas de sua suposta essência democrática (UMA OBRA..., 1973, p. 1). No ano seguinte, a Folha de S. Paulo julgou que as ações autoritárias promovidas pelo ex-presidente, notadamente a outorga do AI-2 e a decretação de recesso ao Congresso Nacional, foram realizadas a contragosto (O PREÇO..., 1974, p. 5). Essas narrativas também se empenharam em justificar a impopularidade de Castello Branco no final de seu mandato: o presidente teria se sacrificado ao tomar decisões difíceis para alcançar os objetivos de “grandeza” propostos pelo governo. Nesse caso, a morte repentina do marechal era retomada para reafirmar seu caráter de mártir, sendo alcunhado por Armando Falcão (que posteriormente ocupou o cargo de Ministro da Justiça no governo Ernesto Geisel), como “homem-símbolo do Brasil-Revolução” (FALCÃO, 1970, p. 10).
Os investimentos na heroificação de Castello Branco se estenderam não somente ao campo discursivo, mas também à construção de lugares de memória. Em 1974, na conjuntura do décimo aniversário do golpe, o governador do Rio de Janeiro, Chagas Freitas, inaugurou na capital fluminense uma enorme estátua de Castello Branco, localizada na Praça Júlio de Noronha, próxima ao Forte Duque de Caxias, no bairro do Leme. O cerimonial ocorreu em 20 de setembro de 1974, data escolhida especialmente para coincidir com o aniversário do marechal, e contou com a participação de sua viúva e filhos, além do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici (RIO..., 1974, p. 7). O monumento de quase três metros de altura – que se encontra na praça até os dias de hoje – foi confeccionado em bronze e mármore pelo artista plástico Dante Crocce, e representa Castello Branco em trajes civis e portando papéis na mão direita.
Significativamente, a inauguração da enorme estátua no Rio de Janeiro constituiu guinada importante nos festejos do 31 de março, que passaram a ocorrer em frente ao monumento, com vistas a homenagear conjuntamente a passagem da data e a memória do marechal. As solenidades ocorreram entre os anos de 1975 e 1979, majoritariamente organizadas pela prefeitura da capital em parceria com o I Exército e tendo como principal público membros das Forças Armadas, estudantes das escolas primárias e seus familiares, representantes das Regiões Administrativas, de clubes sociais e esportivos, empregados da indústria, comércio e bancos, grupos escoteiros, sindicatos e ex-combatentes militares (DIA..., 1976, p. 3).
As comemorações envolveram cantos de hinos e canções do Exército, hasteamento de bandeiras nacional e dos estados, soltura de balões verde-amarelos, revoadas de pombos, salvas de canhão e artilharia, toques de clarins, desfiles de belonaves da Marinha de Guerra e saltos de precisão efetuados pela Brigada de Paraquedistas do Exército. Outro ritual amplamente realizado nas comemorações consistiu na deposição de coroas e buquês de flores (sobretudo rosas amarelas) aos pés da escultura de Castello Branco, realizadas prioritariamente por estudantes que nasceram no dia 31 de março de 1964. Portanto, a iniciativa governamental em construir uma estátua de grande porte para homenagear Castello, além de contribuir para o processo de heroificação da personagem, acabou por criar um espaço que se tornou ponto de convergência para as comemorações do golpe em meados da década de 1970 (ZIMMERMANN, 2023, p. 169-172).
A partir do conjunto de representações construídas em torno da imagem de Castello Branco, é possível observar a mobilização de simbologias que associavam o ex-presidente a uma espécie de “herói” da “Revolução de 1964”. As construções narrativas difundidas nos aniversários do golpe foram responsáveis por remodelar a imagem do ex-presidente, contrastando sobremaneira com a forma como ele foi tratado em 1967. Portanto, após sua morte, Castello Branco passou por um processo de heroificação, no qual foram exaltadas suas supostas virtudes legalistas. Essa narrativa, construída ainda no transcorrer da ditadura militar, encontra ecos em alguns discursos na contemporaneidade, os quais buscam reabilitar sua figura como ditador “benevolente”, por mais contraditório e negacionista que isso seja.
Referências:
CASTELO manteve silêncio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano LXXXVIII, n. 28.208, 01 abr. 1967. Primeiro Caderno, p. 7.
DIA da união Nacional: Hoje concentração de 20 mil pessoas no Leme. O Globo, Rio de Janeiro, ano LI, n. 15.516, 31 mar. 1976. Primeiro Caderno, p. 3.
FALCÃO, Armando. Castelo Branco. O Globo, Rio de Janeiro, ano XLV, n. 13.464, 31 mar. 1970. Primeiro Caderno, p. 10.
INAUGURADA pelo presidente a Usina da COSIPA. O Globo, Rio de Janeiro, ano XLI, n. 12.237, 01 abr. 1966. Primeiro Caderno, p. 6.
KELLY, Celso. Introdução à Educação Moral e Cívica. Rio de Janeiro: Reper/Renes, 1970.
LIMITES a Chávez. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano LXXXVIII, n. 29.175, 17 fev. 2009. Primeiro Caderno, p. A2.
MAIA, Tatyana de Amaral. De “soldado exemplar” a “extraordinário estadista”: os intelectuais e a construção do consenso na ditadura civil-militar: homenagens a Castello Branco (1967-1975). In: ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaína Martins (org.). Por uma revisão crítica: ditadura e sociedade no Brasil. Salvador: Sagga, 2021. p. 282-304.
O PREÇO da impopularidade. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano LIV, n. 16.356, 31 mar. 1974. Primeiro Caderno, p. 5.
PRESIDENTE vem hoje para ficar 12 horas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano LXXXVII, n. 27.898, 31 mar. 1966. Primeiro Caderno, p. 17.
QUEM foi Castelo Branco, presidente que pode ter mausoléu substituído por monumento a abolicionistas cearenses. O Globo. 02 set. 2023.
RIO homenageia Castelo com monumento junto ao Forte Duque de Caxias. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXXIV, n. 166, 21 set. 1974. Primeiro Caderno, p. 7.
TRÊS ANOS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXVI, n. 74, 31 mar. 1967. Primeiro Caderno, p. 6.
UMA OBRA vertical. O Globo, Rio de Janeiro, ano XLVIII, n. 14.430, 31 mar. 1973. Primeiro Caderno, p. 1.
ZIMMERMANN, Ana Carolina. O 31 de março e a invenção da Revolução”: comemorações e atitudes sociais nos aniversários do golpe de 1964 durante a ditadura militar brasileira. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.
Como citar este artigo:
ZEMMERMANN, Ana Carolina. De líder impopular a “homem-símbolo da Revolução”: representações de Humberto Castello Branco. História da Ditadura, 20 mai. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/de-lider-impopular-a-homem-simbolo-da-revoluca-representacoes-de-humberto-castello-branco. Acesso em: [inserir data].