Desejar uma guerra e sorrir para a morte do outro
Aposto que você viu, nesses últimos dias, alguma análise sobre a guerra na Ucrânia – na TV, nas redes sociais ou em conversas de mesas de bar. Seria preciso um esforço enorme para evitá-las. Afinal, a invasão russa ao território ucraniano mexe com potências bélicas, com arsenais nucleares e com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Todas essas discussões têm suas razões de ser. Esse conjunto de análises é, em sua maioria, parte de modelos racionais e/ou iluministas. Tudo muito bem explicadinho como deve ser, agradando ao editor do telejornal, ao assinante do feed do portal de notícias, ao seguidor de algum youtuber ultrapolitizado, ou ao seu interlocutor na mesa do bar.
Mas, algo passa despercebido em muitas dessas análises: o fato de que a guerra é, também, a irracionalidade ao extremo. O que leva um jovem a levantar de madrugada, fazer a barba, pegar seu fuzil e sair para um país estrangeiro. Parafraseando os protestos hippies contra a Guerra do Vietnã: ter aventuras, viajar, conhecer pessoas e matá-las? Com certeza não só o gás que seu país vai ter acesso para vender ao resto da Europa, nem apenas alguma eventual anexação de territórios. Além disso, é possível dizer que o jovem soldado vai à guerra pois a deseja. Sim, isso mesmo, a guerra é um local de desejos. Um desejo que teme dizer seu nome, mas que vamos chamar de desejo de morte.
Jacques Lacan escreveu que “o inconsciente é a política”. Carl Von Clausewitz afirmou que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Michel Foucault, por sua vez, chegou à conclusão de que a política é uma extensão da guerra, invertendo o sentido da frase anterior. Pensando na contribuição desses pensadores tão díspares entre si, podemos pensar uma “guerra política” ou uma “política da guerra”, que leva em consideração o inconsciente e com isso toda a irracionalidade ligada a ele.
Uma matéria publicada no Diário de Pernambuco noticiava um soldado russo que fez uma selfie durante o lançamento de mísseis contra o território ucraniano. Em seu rosto, um riso discreto, mas constante, enquanto os mísseis eram ejaculados contra a Ucrânia.
O sorriso acima é como a descarga da satisfação de um desejo. Desejo inconsciente – ou nem tanto – de destruir o outro. Desejo de morte gestado politicamente em nossa sociedade, entendida aqui na radicalidade da palavra política, que é a forma de ocupar a pólis, ou seja, a forma de estar no mundo. É claro que o treinamento militar é fundamental para criar essa demanda por destruição, por guerra, mas esse não é o único fator. A guerra capturou nossas possibilidades imaginativas. Pensemos em produtos da cultura de massa: Star Wars leva a guerra para galáxias distantes da nossa; Matrix é uma guerra contra as máquinas; Senhor dos Anéis é um rico mundo criado para nos brindar com a Guerra do Anel; Harry Potter imagina um mundo de bruxos em guerra; mais recentemente a Marvel nos entregou Vingadores - guerra infinita.
A humanidade tem conseguido imaginar máquinas sencientes, seres fantásticos, mundos paralelos, heróis fabulosos, mas não imaginamos um mundo sem guerra. Enquanto isso, o governo dos Estados Unidos financia jogos de guerra de vídeo game com o intuito de atrair jovens para as fileiras das Forças Armadas. Temos nossa imaginação empobrecida e capturada, e a guerra é, ao mesmo tempo, causa e efeito.
Essa forma de gestar integrantes da pólis dá vazão para desejos sádicos, para a crueldade e para o desejo da morte do outro, criando formas de gozá-los sem restrições. Ou, talvez, se goza por superar as restrições. Gozar na teoria psicanalítica, de maneira geral, é a satisfação de desejos inconscientes e reprimidos, mas que se manifestam por outros gestos.
Podemos pensar numa famosa imagem, esta que pode ser falsa ou verdadeira, mas isto pouco importa diante da sua própria narrativa:
A imagem “heroica” de um grupo de soldados estadunidenses, na Segunda Guerra Mundial, em um esforço coletivo de levantar o pau da bandeira para enfiar nas terras de Iwo Jima no front oriental, é fálica. Os soldados, naquele instante, não lutavam apenas para vencer o inimigo, mas para penetrá-los com sua bandeira. Racionalmente é dito que os Estados Unidos foram levados à guerra por interesses econômicos – o que não deixa de ser verdade. No entanto, se os soldados lutavam apenas por isso, qual a razão de efetuar mais um esforço depois da batalha? E assumindo que esta foi uma imagem forjada para a propaganda americana, qual a razão de sua construção? Entre as opções de respostas às perguntas, uma – mesmo que não seja a única possível – parece ser fundamental: saciar desejos, principalmente os inconscientes, sejam eles quais forem, quer os envolvidos os entendam ou não.
Por isso, é preciso pensar a guerra para além da racionalidade. Ela pode ser organizada de maneira cartesiana, mas isso não explica sua totalidade. Entender como se goza uma guerra é primordial para libertar as fantasias em direção a possibilidades mais interessantes e menos canhestras. Possibilidades nas quais a guerra é um absurdo que não seria fantasiado, e muito menos realizado.
Como citar este artigo:
BRITO, Tásso. Desejar uma guerra e sorrir para a morte do outro. História da Ditadura, 7 jun. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/desejarumaguerraesorrirparaamortedooutro Acesso em: [inserir data].
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