Desmembrando o livro: uma introdução
Foi provavelmente em abril de 2007, durante uma aula de Química do terceiro ano do ensino médio. Abri, um tanto entediado, a apostila em alguma parte de Literatura Brasileira e comecei a ler um capítulo sobre “poesia contemporânea”. Ao fundo, o professor se esforçava para explicar as minúcias do número de oxidação dos átomos — me perdoem os entusiastas da Química caso a expressão esteja incorreta: minha lembrança desta aula não vai muito mais longe do que isso. O fato é que o interesse por poesia me prendeu àquelas páginas e, tal qual o sujeito que compra um aparelho que não conhece e se mete a utilizá-lo sem antes ler o manual, pulei os textos explanatórios e fui direto aos poemas. Havia ali cinco deles, de cinco autores: Augusto de Campos, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Torquato Neto e Ferreira Gullar. Minha lembrança se fixou tanto no último que não lembro dos demais.
O poema de Gullar se chama Agosto 1964:
Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do horror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira
Me lembro de desenhar uma moldura a lápis ao redor do poema assim que terminei de lê-lo pela primeira vez. Algo ali me pegou pelo colarinho. Alguém dá adeus à juventude enquanto recorta a noite dentro de um ônibus. O terror, a tortura e a humilhação espreitam. Precisamos construir um artefato… Retornei ao poema diversas vezes ao longo do ano, rasguei a página e a colei na parede do quarto. Tal qual o sujeito que se mete a consertar um objeto sem ler o manual, eu não possuía nada parecido com uma metodologia para analisar esses versos, excetuando-se minha própria curiosidade. Nem mesmo uma noção muito clara do contexto em que ele se passa, à parte o óbvio — poucos meses após o golpe de 1964 —, me foi explicada pela apostila.
Tamanha falta de informações, até mesmo quanto à data, não me permitiu, inclusive, atentar para um problema importante: por que este poema está num livro de 1975? O que, naturalmente, levaria a outras perguntas: o que há nesses onze anos que explica tal distância? O que se passou com o autor nesse período? Em quais circunstâncias se concebeu o livro? Quem mais participou deste processo?
Em 2007, contentei-me com o texto em si, e prossegui em leituras que, hoje, classifico minuciosamente como uma gambiarra impressionista, cuja teoria me limitava a elaborar perguntas impossíveis de terem suas respostas encontradas nos versos. Ainda muito longe de passarem pela minha cabeça noções mínimas de leitura adequada e pormenorizada de poesia, aos poucos fui abandonando minha teoria e, tendo todos os versos já memorizados ao longo dos meses, aos poucos fui deixando de retornar ao poema. Acabou reposto, na parede, por uma foto do System of a Down, banda de armênio-americanos que eu idolatrava, e que vivia seu auge.
Dez anos depois, eu retornaria a Gullar, mas não à poesia. Durante a graduação em História — concluída em 2013 —, desenvolvi um interesse pelos debates culturais brasileiros das décadas de 1960 e 1970. Gullar, como se sabe, é um dos agentes mais proeminentes do período. Voltei a ele por meio de um trabalho para a disciplina História Social da Arte, na qual analisei um trecho de Vanguarda e subdesenvolvimento (1969), livro a partir do qual Gullar, já desde o título, explora a noção de “subdesenvolvimento” — bastante em voga à época — como fator indelével nas discussões a respeito da arte de vanguarda no Brasil.
Tendo em mãos, enfim, metodologia apropriada, desta vez não troquei uma obra de Gullar por uma foto do System of a Down. Em 2017, dei início a um mestrado no qual adoto como fonte primária justamente um livro seu: Cultura posta em questão (1965), primeiro livro de ensaios de Gullar, quatro anos anterior a Vanguarda e subdesenvolvimento. Nele, dentre outros assuntos, o autor propõe a “cultura popular” como meio de desenvolvimento de uma consciência revolucionária por entre o “povo”, além de defini-la e analisar a situação do artista e daquele que hoje chamaríamos de “produtor cultural” diante das expectativas que as forças mobilizadas das esquerdas, durante o governo de João Goulart, viam como ascendentes.
Retomarei as especificidades dessas discussões em outra oportunidade. Por ora, quero falar um pouco mais a respeito da “metodologia apropriada” do parágrafo anterior. Parte do que o estudo histórico de livros enquanto, digamos, objetos culturais (ou “artefatos”) demanda é a investigação de sua construção, anterior ao texto. Em outras palavras, trata-se de observar que o livro e todas as suas partes — capa, índice, página de rosto, colofão, lombada, tipografia, diagramação, orelha, prefácio, epígrafe etc. — compõem material frutífero para a pesquisa histórica tanto quanto (e na sua relação com) o texto em si. A estes elementos denominamos paratextos, e passa longe de ser um exagero que cada um deles, além dos muitos outros que não listei, possui uma história própria. Um outro aspecto inextricável da análise histórica de livros passa pela investigação de sua “montagem”, isto é, o caminho pelo qual os elementos que compõem o livro percorreram até chegarem em sua versão final, nas mãos do público. Ambos os aspectos, porém com maior destaque ao segundo, muito provavelmente exigirão documentação externa ao livro em si, e sua obtenção varia muito, em termos de dificuldade, conforme cada caso. Ressalto a importância da pesquisa minuciosa dos elementos de um livro, pois não raro aí pesquisadoras e pesquisadores encontrarão informações que lhes permitirão avançar um bocado na contextualização de suas fontes, bem como olhar para o livro enquanto o resultado de um processo por vezes complexo e cheio de idas e vindas.
Esta coluna será um espaço dedicado aos livros e seu universo próprio, enquanto fontes de pesquisa. Para especificar um pouco mais, adianto que, ao menos inicialmente, pretendo me centrar no cenário editorial brasileiro, uma vez que minha própria pesquisa me levou a reunir alguma documentação, além de ser um recorte com o qual tenho maior familiaridade. Como pós-graduando que sou, sinto uma forte necessidade de falar sobre minhas próprias investigações. Me comprometo desde já, entretanto, a não trazer a este espaço uma experiência de imersão exclusiva a meu próprio trabalho, ainda que, por vezes, me veja na necessidade de falar dele. No próximo texto, por exemplo, comentarei um caso específico da abordagem aqui elaborada, a partir do já citado Cultura posta em questão, de Ferreira Gullar. Até lá!
Créditos da imagem destacada: Photo by Jaredd Craig on Unsplash.
Hoje percebo que a expressão “contemporânea” no nome do capítulo se mostrava, digamos, um tanto imprecisa.
In: GULLAR, F. Dentro da noite veloz, 2018. p. 39.
A referência bibliográfica do poema, na apostila, contava apenas com o nome do livro.
Vê-se que havia mais gambiarra do que impressionismo no processo.
Essa disciplina foi ministrada pelo Prof. Dr. Francisco Alambert, que posteriormente viria a ser meu orientador de mestrado, sobre o qual falarei logo adiante. Mal sabia ele onde estava se metendo.
Como uma espécie de prenúncio do que será o tema desta coluna daqui em diante, são na verdade seis anos, porém deixarei para explicar o motivo num próximo texto.
Um guia indispensável para sua análise é o livro Paratextos editoriais, de Gérard Genette, do qual empresto o termo evidenciado no título.
Bibliografia
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê, 2009. Trad. Álvaro Faleiros.
GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão, Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
_____. Dentro da noite veloz. São Paulo: Companhia das letras, 2018 [1975].