Dia Internacional das Mulheres: dia de luta contra a transfobia
No último dia 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, o recém-empossado deputado federal Nikolas Ferreira (PL) tomou a tribuna da Câmara dos Deputados para fazer um discurso carregado de transfobia. Alegando ter sido repreendido pela “esquerda” por não estar em seu lugar de fala para aludir ao dia em questão, Nikolas colocou uma peruca e disse estar “sentindo-se mulher”. Afirmou também que mulheres estão perdendo espaço para “homens que se sentem mulheres”, e discorreu a respeito de uma série de “perigos” como a possibilidade de “marmanjos” entrarem em banheiros femininos e de mulheres perderem seus espaços nos esportes e em concursos de beleza. Ainda listou marcas que elegeram o dia da mulher para homenagear “homens que sentem mulheres”. Terminou por dizer que as mulheres nada devem ao feminismo, visto que este ignora e monopoliza virtudes como a coragem e deixa de exaltar o papel de mulheres bíblicas. A última fala foi um chamado de retorno à feminilidade, à maternidade e ao papel da família.
Num contexto global de ataque aos direitos LGBTQIA+ e, principalmente, de policiamento público das expressões de gênero [I], a fala do deputado retoma aspectos fundamentais do discurso conservador em relação ao tema: transfobia, repúdio ao feminismo e sua associação com a “esquerda” e valorização de um essencialismo biológico do papel da mulher na sociedade. Nesse âmbito circula, um medo social da população LGBTQIA+ covardemente disfarçado de preocupação com as crianças. No Brasil, Damares Alves ficou conhecida por levantar essas pautas nos últimos anos enquanto ministra dos Direitos Humanos, valendo-se de fake news para alimentar um pânico moral. Esses discursos são sintoma de uma contra-ação reacionária incomodada com os avanços nas políticas LGBTQIA+ das últimas décadas. Os conservadores se importam com a visibilidade, com a ocupação de espaços antes restritos às pessoas cisgêneras e com o papel preponderante que mulheres trans e travestis ocupam na sociedade.
Parece paradoxal: ao mesmo tempo em que vemos um agravamento do discurso de ódio à população LGBTQIA+, também experienciamos vitórias significativas, tanto materiais quanto simbólicas, no campo dos Direitos Humanos. Eleita por Minas Gerais, o mesmo estado de Nikolas Ferreira, Duda Salabert (PDT) foi a deputada federal mais votada no estado. Erika Hilton (PSOL), eleita pelo estado de São Paulo, também tomou posse em 2023. As duas são as primeiras travestis deputadas federais na história do Brasil [II]. No Poder Executivo, Symmy Larrat, antes presidenta da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) é a primeira travesti a ocupar o cargo de Secretária Nacional LGBTQIA+ no Ministério dos Direitos Humanos [III]. Além disso, o discurso de Silvio Almeida em sua posse no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, afirmando que lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, pessoas intersexo e não binárias existem e são valiosas para o país, sinaliza uma guinada positiva na valorização das pessoas LGBTQIA+ e na luta por direitos e por cidadania. [IV]
A trajetória da população trans no Brasil é marcada pela resistência à repressão e pela busca por cidadania. No início do século XX, discursos médicos difundiram a ideia de “correção” de um suposto descompasso entre corpo e mente, dando legitimidade para o conceito de transexualidade, ainda que sob o viés da medicalização. A identidade travesti também é marcada por historicidade e pelo surgimento de tecnologias e práticas de gênero que possibilitaram a transição e a materialização do gênero feminino. Na década de 1960, shows populares de travestis circularam o Brasil e, na década de 1970, o trabalho sexual se tornou um denominador comum dessas experiências [V]. As travestis pertenciam à noite e aos bailes de Carnaval, mas ainda assim eram severamente reprimidas pela polícia nos seus locais de trabalho e lazer. Na década de 1980, a epidemia de aids contribuiu para aumentar a violência policial e a marginalização, mas também possibilitou coalizões políticas. Ligados a iniciativas de prevenção à aids, os primeiros grupos organizados a favor dos direitos de travestis e transexuais surgiram década de 1990. No início, a luta concentrava-se na sobrevivência e no enfrentamento da violência nos pontos de prostituição, mas logo passou a incorporar programas de prevenção à aids e outras ISTs, além de programas profissionalizantes e demandas por direitos como a troca de nome e sexo no registro civil e o oferecimento de cirurgias de afirmação de gênero pelo SUS.
Na última década, pessoas transmasculinas e homens trans também se organizaram em redes autônomas na luta por direitos. Os movimentos LGBTQIA+ da sociedade civil, que incluem outras identidades políticas, são amalgamados por essas demandas coletivas. São os resultados dessa luta que possibilitaram as eleições de Duda Salabert e Erika Hilton para a Câmara dos Deputados. A organização autônoma da população trans e travesti é responsável pela mudança na percepção social e uma positivação de identidades antes marginalizadas, porém ainda vulneráveis: lembre-se que, só em 2022, foram 131 assassinatos de pessoas trans e não-binárias no Brasil. [VI]
A história das mulheres trans e travestis denota seu esforço coletivo de organização e luta. Não há nenhuma contradição em sua presença nas celebrações do dia 8 de março e nos outros dias do ano, mas a sociedade precisa responder à violência que as vulnerabiliza. Contrariamente ao que diz Nikolas, não são pessoas trans e travestis que apresentam perigo nos banheiros: são homens cisgêneros que violentam e abusam, sem necessidade de assumir uma identidade feminina.
Os ataques verbais e físicos perpetrados contra a população LGBTQIA+ são fomentados por discursos de ódio como o de Nikolas, que infelizmente representa parcela significativa da população O Ministério Público Federal já apura junto à Câmara se ele incorreu em violação da ética e quebra decoro parlamentar em seu discurso. Uma petição também pede a sua cassação. Todas as iniciativas são fundamentais, visto que a população LGBTQIA+ já conquistou arcabouços legais de proteção. No entanto, mesmo ocupando espaços importantes na política institucional e nos movimentos sociais, grupos LGBTQIA+ passaram a ser questionados no âmbito da sua própria existência. Em reação aos discursos que buscam desestabilizar o gênero e trazer atenção para seu aspecto construído – que envolve elementos sociais e políticos, da ordem do desejo e da normatividade –, emerge um discurso conservador que quer determinar os termos do reconhecimento, estabelecendo normas que separam as “verdadeiras” mulheres de “homens que se sentem mulheres”. Nikolas é o novo porta-voz dessa mensagem no Brasil e deve ser punido por transfobia por seu discurso na tribuna, além de ter seu mandato cassado.
Créditos da imagem destacada: Nikolas Ferreira. Foto: Reprodução/TV Câmara.
Notas:
[I] McLEAN,Craig McLean The Growth of the Anti-Transgender Movement in the United Kingdom. The Silent Radicalization of the British Electorate, International Journal of Sociology, 51:6, 473-482, 2021; ROJAS, Rick; COCHRANE, Emily; SASANI, Ava; et al. Tennessee Law Limiting ‘Cabaret’ Shows Raises Uncertainty About Drag Events. The New York Times, 2023.
[III] Quem é Symmy Larrat, primeira travesti secretária nacional no governo brasileiro. Brasil de Fato.
[IV] “Vocês existem e são valiosos para nós”: leia a íntegra do discurso de Silvio Almeida. Congresso em Foco.
[V] DUARTE, Marina. Trans histórias de uma brasileira no Bois de Boulogne. História da Ditadura, 15 mar. 2022.
[VI] BENEVIDES, Bruna G. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2023.
Como citar este artigo:
OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. Dia Internacional das Mulheres: dia de luta contra a transfobia. História da Ditadura, 15 mar. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/dia-internacional-das-mulheres-dia-de-luta-contra-a-transfobia. Acesso em: [inserir data].
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