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Foto do escritorHistória da Ditadura

Diretas Já: ontem, hoje

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Se, por um lado, persistem as disputas teóricas sobre o papel do indivíduo na trama da história, por outro, parece haver certo consenso de que ações e comportamentos individuais podem simbolizar os desejos e os sentimentos da coletividade. Algumas vezes, o desempenho de alguns personagens se torna símbolo de uma etapa da história: a resistência do povo inglês espelhada nos discursos de Churchill, a coragem do povo chinês no homem desconhecido da praça da paz celestial, por exemplo. Por vezes, também, identifica-se o indivíduo com o término de uma era ou de um governo. Nos últimos dias, a atuação do presidente Michel Temer, em face das graves denúncias que o envolvem, é símbolo da crise política brasileira e do colapso da aliança conservadora que provocou o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, poder-se-ia dizer que é símbolo inegável da falência de nosso sistema político, em seu sentido mais amplo. Não apenas nas relações duvidosas entre a iniciativa privada e os partidos políticos, mas, também, no comportamento inapropriado e ilegítimo dos membros do Poder Judiciário, do desrespeito diário às regras básicas legais pelo sistema policial e da fragilidade de instituições, como o próprio Supremo Tribunal Federal, que atuam guiadas por interesses particulares.

Para muitos analistas, apenas a realização de eleições diretas seria capaz de contornar a crise atual. Nos últimos dias, essa convicção passou a incentivar uma espécie de campanha por “Diretas Já”, que ganhou o apoio de alguns segmentos da população brasileira. O uso do slogan – Diretas Já! – nos remete ao amplo movimento civil que, nos anos finais da ditadura militar, exigia eleições diretas para a escolha do presidente da República. A comparação entre as duas crises – a crise política atual e o esgotamento da ditadura iniciada em abril de 1964 – é um recurso válido; sobretudo, quando procura identificar diferenças, onde se desejam semelhanças (e o contrário). Particularmente, vejo pouquíssima semelhança entre os dois processos; mas, assim como a atuação de Michel Temer parece simbolizar a fragilidade de um governo ilegítimo na atual crise, o colapso da ditadura seria personificado pela performance de um general, que havia sido chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).

No dia 25 de abril de 1984, o então Comandante Militar do Planalto, o general Newton Cruz, era o próprio símbolo do autoritarismo impotente da ditadura militar, que se aproximava de seu fim. Diante da constatação de que o regime perdera a capacidade de controlar a aliança conservadora, que desde abril de 1964 comandava o país, o general, em um ataque de fúria, demonstrava perder, ele mesmo, a capacidade de impor seus desejos arbitrários de controle social. Era o término da ditadura. Era o início de uma nova expressão política.

Nas ruas de Brasília, diante do Congresso Nacional, o povo se manifesta e exige o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República (Imagem: Arquivo Agência Brasil – Creative Commons: Link)


Naquele dia, a Câmara dos Deputados apreciaria a Proposta de Emenda Constitucional n. 5, que ficaria conhecida como a emenda Dante de Oliveira ou, simplesmente, a emenda das Diretas Já! O projeto tinha o intuito de reestabelecer as eleições diretas para a escolha do presidente da República, que seria empossado com o término do governo do general João Batista Figueiredo. O jovem deputado Dante de Oliveira, autor da proposta, havia sido eleito nas eleições gerais de 1982 pelo estado do Mato Grosso. Representante do PMDB, o deputado conseguira recolher o número de assinaturas necessárias para a apresentação da proposta e, ainda em março de 1983, encaminhou o projeto, que se tornaria o tema central dos debates políticos nacionais até abril de 1984.

A proposta de reforma do texto constitucional chegaria às ruas do país. A partir de 1983 surgia um movimento civil, que demandava o direito popular e elementar de escolher o presidente da nação. A princípio, a movimentação popular em torno da ideia era capaz de mobilizar, em pequenos comícios, apenas alguns poucos milhares de brasileiros e brasileiras que começavam a se manifestar em diversas cidades do Brasil: Goiânia, Teresina, Olinda, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba. O movimento se espalhava. Se, nos primeiros eventos, o público era contado em centenas, ou em milhares de pessoas, aos poucos, as ruas ganhavam a companhia alegre e festiva de centenas de milhares e, mesmo, de mais de 1 milhão de pessoas, como aconteceria nos comícios da Candelária (Rio, 10 de abril de 1984) e da Praça da Sé (São Paulo, 16 de abril de 1984).

Aos poucos, os comícios das Diretas Já assumiam o papel de expressão da vontade popular, de retomada do orgulho nacional, de manifestação contra as duas décadas de ditadura, que não foram capazes de cumprir as promessas dos “revolucionários de quartel”: a crise econômica, a explosão inflacionária, a precariedade da vida e a violência estatal eram lembranças diárias do fracasso do autoritarismo. Todos esses dados se somariam ao desejo reprimido de participação na vida nacional, à retomada da mobilização das entidades de classe, ao ressurgimento dos sindicatos, das novas correntes políticas, do retorno dos asilados e dos banidos.

Em um primeiro momento, ainda em 1983, o governo tentou reprimir as manifestações e classificá-las como expressões da subversão e do vandalismo – como vinha fazendo com todos os movimentos de caráter popular desde 1964. A imprensa, em especial, as organizações Globo, recorreram a um conjunto de recursos abusivos e antiéticos para ocultar do conhecimento público a realização dos comícios. Entretanto, o movimento crescia e ganhava adeptos. Nos primeiros meses de 1984, personalidades da vida política e artistas começaram a se engajar na organização do movimento. No dia 25 de janeiro de 1984, data do aniversário da cidade de São Paulo, o movimento explodiria em um evento realizado no Vale do Anhangabaú. Centenas de milhares de pessoas acompanhavam as (novas) lideranças políticas que exigiam o voto direto: Tancredo Neves, Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Mário Covas e, muitas outras lideranças, inclusive dois personagens que, sem o saber, chegariam à presidência da República pelo voto direto dos brasileiros: Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Brasília – O ex-deputado federal Ulysses Guimarães, o “Senhor Diretas”, defende no plenário da Câmara a redemocratização do Brasil (Imagem: Arquivo Agência Brasil – Creative Commons: Link)


Com a proximidade da votação na Câmara dos Deputados, o general Figueiredo, percebendo o crescimento da mobilização popular, resolveu adotar medidas autoritárias, com o intuito de intimidar tanto parlamentares, como cidadãos que se dirigiam à Brasília para manifestar seu desejo pela aprovação da proposta. Na véspera, o governo adotaria medidas de emergência tanto no Distrito Federal, como em muitos dos municípios limítrofes situados no estado de Goiás. Sob o comando do general Newton Cruz, tropas do Exército ocupariam toda a Esplanada dos Ministérios, promovendo um cerco ao Congresso Nacional e a outros edifícios. Antes disso, o governo impôs censura sobre a imprensa e buscou controlar manifestações dissidentes com o uso de prisões arbitrárias e por meio da violência policial.

Nas horas que antecederam a votação, o general Newton Cruz se irritou com o “buzinaço” que os motoristas, que apoiavam as Diretas Já, promoviam nas ruas que dão acesso ao Congresso Nacional. Da janela de seu gabinete, ordenou a prisão dos manifestantes. De acordo com reportagem da Folha de São Paulo, mais de cem carros foram apreendidos. Inquieto e insatisfeito com a continuidade das manifestações pró-diretas, o general desceu até o meio dos carros e, em um ataque de fúria, desferiu golpes de chicote em alguns dos veículos que passavam pela avenida. “Eles não podem me desmoralizar na frente do meu quartel. Ainda vai ter que levar muito tempo para alguém conseguir fazer isso”, diria o general em uma de suas agressivas declarações.

Do lado de dentro do Congresso, a Câmara dos Deputados derrotaria a emenda de Dante de Oliveira e o desejo popular pelo direito de eleger o próximo presidente da República. 298 deputados votaram a favor da emenda. 65 se manifestaram contrários. Ainda houve 3 deputados que se abstiveram de votar e, como o voto era aberto e nominal, 112 deputados simplesmente não comparecem à sessão. A emenda recebeu os votos da maioria, mas não obteve o quórum necessário para a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (2/3 da Câmara): faltaram 22 votos.

A derrota adiaria a escolha do presidente da República pelo voto popular. Apenas em 1989 o povo voltaria a eleger o presidente da República. A derrota da emenda, entretanto, escondia uma vitória: no dia seguinte, Fernando Henrique Cardoso, então senador por São Paulo, chamaria a atenção de alguns políticos para o seguinte fato: não temos quórum para mudar a Constituição, mas podemos vencer as eleições indiretas. Era o início da campanha parlamentar “Mudança Já”. De fato, a previsão do senador Fernando Henrique estava certa, a oposição venceria as eleições indiretas de 1984. Tancredo Neves, o primeiro presidente civil desde 1964, contudo, morreria antes de assumir o cargo.

O político brasileiro Tancredo Neves em Brasília. Mais ao fundo seu neto, Aécio Neves (Imagem: Arquivo Agência Brasil – Creative Commons: Link)


A transição política brasileira seria um drama de muitos atos marcados pelo traço da frustração e do ressentimento. O cenário atual parece preservar muitas dessas características. Alguns dos atores políticos que em 1984 manifestaram seu desejo pelo retorno da democracia e pela necessidade de eleições diretas, hoje repudiam a iniciativa, singularizada como ameaça ao ordenamento constitucional. Em contrapartida, os críticos da “solução constitucional” apontam a falta de legitimidade do Congresso brasileiro, composto por uma maioria de parlamentares acusados de envolvimento em atividades ilegais.

Em todos os casos, não é possível objetivamente afastar interesses imediatos evocando uma suposta nobreza de princípios. O impasse político nacional é resultado de uma longa sequência de desrespeito aos princípios constitucionais e legais que, desde 1988, representam o “acordo” político possível no cenário nacional. A eleição direta do presidente da República, entretanto, poderia indicar o primeiro passo na construção de consenso sobre a ideia de que, em crises políticas nacionais, o melhor caminho é ouvir o desejo popular.

Pedro Teixeirense é historiador e editor do site História da Ditadura.

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