Ditadura à francesa
Atualizado: 15 de out. de 2020
Quando pensamos na França, nossas mentes imediatamente associam essa nação aos seus estereótipos: Paris, a cidade romântica, o refinamento, a erudição, os perfumes, a culinária sofisticada ou até a simples baguete. Historicamente, buscamos reproduzir os modelos franceses, mesmo que com resultados pouco animadores. Quem não se lembra daquela aula de Primeira República em que se aprendeu sobre a reforma do prefeito Pereira Passos? A elite política desejava transformar o Rio na Paris tropical. As pessoas compravam uma série de objetos de vestuário, mobiliário, para imitar os franceses. As pobres moças eram obrigadas a usar o terrível espartilho, quase sufocando. Ainda hoje, de certa forma, perdura no Brasil uma visão positiva da França.
Há um outro país que não compartilha da mesma boa fama. Falo obviamente dos Estados Unidos da América, o “grande irmão do Norte”. Durante muito tempo, coube aos norte-americanos um papel de “vilões” na História do Brasil. Sua cultura foi caracterizada como a do “capitalismo selvagem”, da busca exacerbada pelos bens materiais. O grande irmão do Norte seria responsável por todas as mazelas econômicas do Brasil e da América Latina. Seu sistema de exploração econômica dos países periféricos garantiria o conforto e o desenvolvimento de seu território enquanto aos vizinhos dependentes caberia a pobreza e a miséria.
Visita do presidente francês, o general Charles de Gaulle, ao Brasil em outubro de 1964. (Imagem: Arquivo Nacional)
Ora, quem não se lembra daquela aula sobre a ditadura militar em que o professor disse que o golpe de 1964 teve apoio dos EUA? Que a ditadura adotou a Doutrina de Segurança Nacional norte-americana? Que os militares brasileiros foram aprender sobre repressão e tortura na “Escola das Américas”? Edmar Morel chegou a escrever que O Golpe começou em Washington. Teria cabido aos EUA o papel de armar um golpe no Brasil para evitar o desenvolvimento independente da nossa economia. A ditadura militar teria copiado a ideologia norte-americana da segurança nacional para montar um Estado repressor de qualquer grupo que tentasse desvirtuar seus objetivos de segurança e desenvolvimento. Em última instância, essa interpretação gerou uma ideia de que os militares brasileiros seriam meras marionetes dos EUA, colaborando com os grandes culpados por praticamente todos os males do Brasil contemporâneo.
Entretanto, pesquisas mais recentes têm demonstrado que os militares brasileiros não foram doutrinados por um país ou por outro. De fato, é inegável a influência norte-americana na ditadura, mas isso não significa que os militares não tenham construído, com bastante autonomia, o seu próprio conjunto de ideias a respeito do seu ideal de Estado e de sociedade. Nesse sentido, a montagem do aparato repressivo brasileiro sofreu diversas influências, podendo ser citadas a norte-americana, a inglesa, a francesa, a argentina, a portuguesa e até mesmo a israelense.
Durante minha vida acadêmica, ainda na graduação visitei a biblioteca da Escola Superior de Guerra (ESG) com o propósito de procurar fontes para um trabalho de fim de curso. A ESG tinha a fama de ser uma escola militar copiada de similares norte-americanas. Ela também teria sido o centro irradiador da Doutrina de Segurança Nacional brasileira, essa também copiada dos EUA. Enquanto pesquisava, me surpreendi com a quantidade de documentos dedicados a um tema que desconhecia: a Doutrina Francesa de Guerra Revolucionária. Ué, franceses?
Acabei descobrindo que os militares franceses estavam cansados de perder guerras. A derrota fulminante na 2ª Guerra Mundial havia mexido com o orgulho dos militares. Depois de 1945, o movimento de descolonização da África e Ásia colocou em risco de extinção os antigos impérios coloniais das nações europeias. Oficiais franceses lutaram e perderam por uma série de motivos parte de seu império na Guerra da Indochina (1945-1954), região formada pelos atuais Laos, Camboja e Vietnã.
O principal motivo que levou à derrota foi a aplicação brilhante da tática da guerra de guerrilhas, a qual subvertia a maneira ocidental tradicional de fazer guerras. A guerrilha é a guerra empreendida por pequenos grupos irregulares contra forças militares superiores. Esses grupos atacariam as forças inimigas, realizando emboscadas e ataques rápidos, evitando a todo custo um combate em larga escala contra o inimigo.
Não querendo perder mais uma, os franceses rapidamente criaram a Doutrina (francesa) de Guerra Revolucionária, pensada na medida para reprimir esses pequenos grupos guerrilheiros. A Doutrina foi desenvolvida enquanto era aplicada num novo conflito do Império francês: a Guerra da Argélia (1954-1962). Nessa guerra, seriam testadas algumas técnicas como a concessão de poderes especiais ao Exército para o combate à insurreição, a possibilidade de executar sumariamente toda sorte de suspeitos de apoio à guerrilha. Técnicas de investigação policial, interrogatório, torturas, todas foram depois ensinadas por veteranos oficiais franceses a colegas norte-americanos, argentinos e brasileiros. A montagem de nossa ditadura teve forte influência francesa. Para compreender melhor nosso passado, devemos olhar menos para o Tio Sam e mais para Marianne.
Daniel Accioly é professor de História e historiador.